2007/10/06

Estranha forma de liberdade

Saio do meu habitual torpor bloguístico para mostrar alguma solidariedade com os textos do Filipe e do Tiago.

1) Liberdade contratual - pois é, nunca existiu em contextos de coacção. Qualquer lei que se conheça, permite a um contraente anular um contrato se tiver sido vítima de coacção, não precisando esta de consistir no exemplo paradigmático da pistola apontada à cabeça. Mal seria se a ameaça de perda de emprego, humilhação pública, ostracismo social, desde que séria e levado à sério por aquele que consente, não contassem como coacção moral. No que diz respeito à praxe, existe, como aliás o João reconhece, uma ameaça explícita ou implícita de ostracismo caso um caloiro não aceite ser praxado.
Dir-se-á: só um totó é que se sente ameaçado por um bando de analfabetos. Para o caso pouco importa, a capacidade de consentir e, consequentemente, a validade do consentimento tem de ser avaliado de acordo com as qualidades de quem consente. A vontade é individual: é daquela pessoa e de mais ninguém. Pessoas mais tímidas ou influenciáveis não prestem um consentimento válido se ameaçadas daquilo que mais temem. Por exemplo, de solidão numa cidade que não a sua.

2) Por outro lado, estranho conceito de consentimento revela o João. É que o consentimento vale para cada acto considerado de forma isolada. Se um "doutor" atira farinha ou ovos a um caloiro não há obviamente consentimento nenhum, a menos que o caloiro tenha expressamente aceite a agressão ou que esta decorra do contexto em que esse consentimento foi dado. Quantos actos isolados há, no decurso das semanas da praxe, que ocorrem sem consentimento dos visados? Imagino que muitos. Não é que um "doutor" peça autorização ao caloiro sempre que lhe dá um cachaço ou lhe corta o cabelo ou ainda o molha com cerveja.

3) E a comparação com o Abu Ghraib não me parece minimamente despropositada: a crueldade conhece obviamente graus, mas a natureza dos actos cruéis é essencialmente a mesma. Assim como aqueles soldados americanos revelaram prazer na tortura, os doutores sentem prazer na humilhação pública. Reconhecê-lo parece-me senso comum e não propriamente uma minimização de Abu Ghraib ou, o que para o caso pouco interessa, do Holocausto. Por isso, o Tiago chama à praxe a Abu Ghraib dos pequeninos. É isso mesmo. Uma questão de grau.

Dito isto, nunca fui praxado nas duas universidades que frequentei e também nunca mexi um dedo para acabar com a praxe. Não sou dado a esforços inúteis. Mas que é uma coisa que mostra o subdesenvolvimento português, é. Sem dúvida. Compare-se a recepção aos estudantes nas universidades alemãs ou inglesas com o que acontece em Portugal. Quanto mais não seja, por uma questão de estilo e gosto seria normal que se quisesse que a praxe acabasse e que nos tornássemos, enfim, um bocadinho melhores que isso.

2 comentários:

Carlos Guimarães Pinto disse...

"Mal seria se a ameaça de perda de emprego, humilhação pública, ostracismo social, desde que séria e levado à sério por aquele que consente, não contassem como coacção moral. A vontade é individual: é daquela pessoa e de mais ninguém. Pessoas mais tímidas ou influenciáveis não prestem um consentimento válido se ameaçadas daquilo que mais temem. Por exemplo, de solidão numa cidade que não a sua."

Estas a admitir que alguem podera anular um contrato baseado no argumento: "Ele disse que se eu nao assinasse, nunca mais seria meu amigo"?
Pode ser uma atitude moralmente condenavel, mas se comecamos a legislar sobre tudo o que e' imoral...

"Compare-se a recepção aos estudantes nas universidades alemãs ou inglesas com o que acontece em Portugal."

As praxes existem por todo o lado, em especial nas universidades mais antigas. Porventura em Portugal estao mais institucionalizadas (coisa com a qual nao concordo), mas se googlares por "fraternities" e "initiation" vais encontrar praticas em universidades inglesas e americanas semelhantes 'as que se praticam por ca (http://www.youtube.com/results?search_query=fraternity+initiation). Ou piores, como o paddling nas fraternities americanas.

abraco

Anónimo disse...

Carlos,

Repito o que disse:

Aco contrário de ti, eu acho que se pode e deve proibir a praxe. Mas quem tem autoridade para o fazer são as direcções das universidades e mais ninguém. Fora do espaço da universidade, participa na praxe quem quiser, porque estamos ou devíamos estar numa sociedade livre.

Quanto ao resto, o consentimento é válido desde que consciente, informado e livre. Quem consente por temor de um mal futuro, sendo a ameaça séria e levada a sério, não presta um consentimento livre, logo este não é válido.

Quanto às universidades americanas, estou-me a borrifar para elas. O que importa é que em muitos países tal não acontece, o que prova que, em termos de costumes universitários, estamos num estado de subdesenvolvimento.