2007/02/07

Confusões

A crítica do Willespie enferma, quanto a mim, de várias confusões. Tendo sido este blog visado directamente, proponho-me contribuir para um eventual esclarecimento:

Primeira: Este blog não é um blog "libertário". Aliás, como julgo que não o serão a grande maioria dos outros que elenca. Em primeiro lugar, porque não há sequer uma opinião única e transversal aos seus membros, e porque, mesmo tirando uma dominante, essa será sim a do Liberalismo, e não aquilo que refere como "Libertarianismo". Cada pessoa aqui pensa com a sua própria cabeça e tem pouca vontade de aderir a estereótipos ou sofrer de clubismo, como se poderá discernir pelas sucessivas posições divergentes entre os seus membros, e as sistemáticas trocas de argumentos. Gostamos e favorecemos o pluralismo de opiniões, e não alinhamos pelo pensamento único.

Segunda:A utilização que o Willespie faz do termo "Libertarianismo" está, quanto a mim, equivocada. O Libertarianismo, termo em grande parte cunhado para diferenciar o que geralmente se rotula como "Liberalismo Clássico" da apropriação feita do termo "Liberalismo" pelo Partido Democrata americano (e que historicamente o precede), não se enquadra na descrição que posteriormente faz das falhas desse "suposto Libertarianismo". Presumo que aquilo a que se esteja a referir, descrevendo a defesa da inexistência de um estado organizado mas a preservação da propriedade e da liberdade individual, será sim aquilo que se chama Anarco-Capitalismo, e não Liberalismo Clássico. Contudo, das várias tomadas de posição aqui na casa, não me parece (corrijam-me) que haja alguém que o suporte ou defenda.

Não me parece que ninguém aqui defenda que o estado não deve existir, e que não deve assegurar as competências clássicas de um estado mínimo, nomeadamente no âmbito da Justiça, da Segurança e Defesa, e dos Negócios Estrangeiros. Que o direito criminal e constitucional não devem ser um monopólio do estado, e que este não terá responsabilidades de supervisão e de gestão do domínio público.

Como vé, a sua tese de "coesão social", que não é mais quanto a mim do que a manutenção do Estado de Direito, é um ponto defendido pela generalidade dos Liberais Clássicos, Minarquistas, Objectivistas e outros "flavours" de Liberalismo. Quanto ao Anarco-Capitalismo, não me caberá a mim a sua defesa, naturalmente. O que não inviabiliza que não reconheça mérito e coerência em algumas das suas posições, e que ache que faz parte da família alargada do Liberalismo.

Terceira:A perspectiva de que a Rússia pós-queda do império Soviético é algo minimamente parecido com um balão-de-ensaio de Liberalismo Clássico é, quanto a mim, um abuso e uma tentativa de confundir as coisas. Uma coisa é a diminuição do estado, outra coisa é a sistemática falência moral e constitutiva das suas instituições. Na Russia não passou a haver menos estado. O que sucedeu foi que toda a infrastrutura deste colapsou, mantendo-se todos os intraves burocráticos, institucionais e de corrupção que lhe presidiam. O que instalou foi uma plutocracia que faz a gestão dos activos que "herdou" do estado Soviético, e que mantém uma mão de ferro na "gestão" das "liberdades e garantias".

Não há a mínima noção de Liberdade na Russia. Mesmo inculcada na personalidade dos seus cidadãos. Não há liberdade de imprensa, de expressão, nem a mínima noção de um julgamento justo, de privacidade ou de travão do estado. Existe uma ilha de plutocratas rodeada por uma selva de anarquia, próxima de um estado de natureza hobbesiano.

Confundir este statu quo com algo de sequer remotamente próximo de qualquer forma de Liberalismo, só se for num exercício tortuoso de humor.

Quarta:Os Estados Unidos não são um ideal de Liberalismo. Serão, sem dúvida, um bom exemplo de boas práticas a seguir, como nos pressupostos que presidiram à elaboração da sua Constituição, ou em vários exemplos de gestão e de defesa das liberdades em diversas áreas (muito mais por mérito do seu povo do que do seu "estado"). Mas são também o estado do "big spend" (basta olhar para a última proposta de orçamento), com uma presença demasiado omnipresente (passo o pleunasmo) e com laivos progressivos de limitação e perversão das liberdades que não podem agradar a nenhum liberal. Mas que são, apesar de tudo, pálidos face aos que se faz do lado de cá do Atlântico e, principalmente, são um exemplo de um povo com relutância em se deixar espezinhar e privar de algo que acha precioso.

"A saúde pública por exemplo, é considerada por todos os estados democráticos do mundo ocidental, excepto uma, como uma responsabilidade social. Para além de ser em termos económicos, senso comum. Qualquer escola de economia prega que a melhor forma de minimizar o risco humano, passa por criar o maior bolo possível de risco partilhado. Por isso mesmo que todos partilhamos os custos de protecção policial, bombeiros municipais e defesa nacional. O mesmo princípio aplica-se perfeitamente ao sistema de saúde."

Quinta:Pessoalmente, não acho que a existência de uma safety net, concretamente debaixo dessa perspectiva de "minimização do risco humano", seja incompatível com o pensamento liberal e com o Liberalismo Clássico. Eu próprio defendo uma iniciativa desse género, sustentada num contrato social espontâneo que compreenda e sustente essa decisão. Assim como reconheço os argumentos dos que defendem que tal não deverá existir, e que será o conjunto dos indivíduos a zelar por essa tarefa por sua iniciativa. Agora, curiosa é a afirmação seguinte:

"Nos EUA os que discordam com isto, têm na mesma que fazer face à ironia do sistema actual, em que qualquer cidadão tem acesso aos serviços básicos de emergência em hospitais, enquanto podem não estar a contribuir sequer um cêntimo de impostos dos seus rendimentos para tal."

E são esses exactamente os cuidados que fazem sentido ser prestados pelo estado: os que asseguram a integridade física do indivíduo, quaisquer que sejam os seus rendimentos. Sublinho, a sua integridade física. Não há nada de irónico aqui. Os outros, os que prefiram pagar para ter um tratamento diferenciado ou pretendam cuidados para além desse mínimo, terão que procurar a devida resposta no mercado de cuidados de Saúde.

Sexta (nota de rodapé):Folgo em saber que John Stuart Mill tem uma legião tão grande de seguidores no nosso país. Pessoalmente, reconheço o seu mérito e o seu contributo para o Liberalismo.

O problema é que a generalidade dos seus seguidores fazem um cocktail perigoso de utilitarismo com relativismo moral, distorcendo (quanto a mim irremediavelmente) a herança do senhor.

A perspectiva de maximização das liberdades individuais que enuncia é interessante e apelativa. O problema é quando se confere ao estado o direito de ser um avaliador exterior com poder de intervir no sentido de definir e equilibrar os tradeoffs que surgem entre liberdades individuais, em prol da maximização do "bem comum". A questão é que Stuart Mill não era relativista. Defendia a existência de direitos e de liberdade que não estavam sujeitas ao escrutínio e ao "equilíbrio" do estado e que eram, por definição, invioláveis. Quando tudo se torna "negociável" e quando a regra para a determinação do compromisso é a democracia, não é difícil de antever o cenário para que se caminha, e que o próprio antecipou. O problema é que muitos desses adeptos portugueses fazem uma leitura enviesada e limitada do conceito do utilitarismo, tornando-o numa espécie de plebescito permanente do caminho por onde se deve caminhar para que todos "fiquem satisfeitos".

Espero que o caro Willespie não seja mais um.

10 comentários:

Migas disse...

Cristalino, como sempre. Hear, hear.

Willespie disse...

Primeira: Embora o seu blog tenha sido visado directamente e brindado com a etiqueta de "libertário", eu assumo naturalmente a possibilidade de erro e como já indiquei, estou disposto para uma apreciação mais a fundo sobre temas específicos.

Gostamos e favorecemos o pluralismo de opiniões, e não alinhamos pelo pensamento único.

Sublinho e subscrevo e direi que não poderia realmente ser de outra forma.

Contudo mantenho a minha premissa inicial, uma vez que verifiquei noutro intercambio de ideias, que o JLP tinha um apreço especial e exclusivo pela “liberdade negativa”, coisa que não me espanta nem me perturba uma vez que vejo nela e o no seu conceito um valor inquestionável e insubstituível. No entanto na tua aversão visceral à liberdade positiva, tão características dos liberais clássicos, ou libertários, ou libertarianos, ou liberais-conservadores, ou neo-liberais, (et al exceptus: liberal) mas não necessariamente liberais, vejo aqui um desacordo total com o progressismo social, que diz respeito aos liberais contemporâneos, liberais sociais, enfim, liberais e que separam o liberal do libertário.

Segunda: Liberalismo clássico diverge e em muito do liberalismo que eu pessoalmente reconheço e vejo a ser defendido pelo (para utilizar um exemplo que anda mais por perto deste cantinho da Europa) Movimento Liberal Social.

Como vé, a sua tese de "coesão social", que não é mais quanto a mim do que a manutenção do Estado de Direito

Eu aqui direi que não conseguiste observar ou reter a conclusão que tirei do meu post.

Passo a citar: “A manutenção de ordem e lei i.e., coesão social, vai muito para alem do conceito de utilizar os impostos para poder colocar homens armados nas ruas com a missão de fazer a população cumprir as leis.”

i.e. O que acabaste de referir: a manutenção do estado de direito.

Continuando: “A resposta, é que os governos legítimos, através das suas instituições públicas, têm papéis fundamentais a exercer, tanto em relação à coesão social, quer em relação ao crescimento económico.

Parece-me que foi este ponto que não compreendeste. Quando me refiro a instituições públicas, falo naturalmente de competências clássicas de um estado mínimo, nomeadamente no âmbito da Justiça, da Segurança e Defesa, e dos Negócios Estrangeiros (…) direito criminal e constitucional, mas não só. Incluo também o ensino público (mesmo com vouchers), sistema público de saúde e de uma forma geral, o modelo de economia mista, como sendo alguns dos elementos que fazem parte de um conjunto de serviços estatais que têm um papel mais alargado do que teria para um libertário ou dito “liberal” da onda do “small-brêda” entre outras. Corrija-me se tiver enganado por favor. 

Penso que agora não restam dúvidas que não concordarás com esta abordagem liberal, que provavelmente chamarás de socialista e que alias alguns já chamaram o MLS um bando de bloquistas) ao paradigma e Português e Europeu mesmo que tenha sido assumido pelos partidos liberais europeus (e não só) e que não só tem raízes históricas não passíveis de serem ignoradas, como têm demonstrado resultados.


Terceira: Uma coisa é a diminuição do estado, outra coisa é a sistemática falência moral e constitutiva das suas instituições.

Sim, está certo, mas outra coisa ainda seria a abolição de instituições reguladoras e distribuidoras de serviços, mesmo que dantes funcionavam mal. Foram factores preponderantes na crise da Rússia, quer a inexistência destas quer o mau funcionamento de outras.

Confundir este statu quo com algo de sequer remotamente próximo de qualquer forma de Liberalismo, só se for num exercício tortuoso de humor.

Eu reconheço este discurso. Nomeadamente do nosso Partido Comunista residente, quando se defendem hoje das atrocidades Estalinistas de ontem. Se tem o mesmo tipo de aplicabilidade não sei, nem tão pouco me interessa, mas que é um discurso igual, lá isso é. Revisionismo à parte, o percurso económico da Rússia que levou à queda, está bem documentada e à vista de todos. Foi uma tentativa de liberalização completamente falhada. Os técnicos, autores e especialistas que se esforçaram em tentar perceber porquê, chegaram às conclusões que eu citei e ampliei.

Quarta: Os EUA são sem duvida uma fonte de inspiração da liberdade embora muitas vezes são levados ao ponto de perversidade. Tiveram a benesse (e ainda bem) que a Europa não teve, de popular um território amplo já com plenas liberdades, unidos em Republica desde o século 18, fazendo uma espécie de bypass à história feudal Europeia.

Quinta: Pessoalmente, não acho que a existência de uma safety net, concretamente debaixo dessa perspectiva de "minimização do risco humano", seja incompatível com o pensamento liberal e com o Liberalismo Clássico.

De um Liberal obviamente que é compatível. Enquanto que liberalismo clássico não me parece. A menos que façam campanha pela direita e governem pela esquerda, renegando um dos seus dogmas mais anacrónicos, tendo que os herdeiros contemporâneos do liberalismo clássico são os libertários. De qualquer forma, sendo mesmo verdade no teu caso, aplaudo.

Os outros, os que prefiram pagar para ter um tratamento diferenciado ou pretendam cuidados para além desse mínimo, terão que procurar a devida resposta no mercado de cuidados de Saúde.

Como por exemplo este senhor?

Sexta (nota de rodapé): Aqui demonstras um desprezo espantoso em relação ao processo democrático e também ao contracto social tão característico dos Libertários. Como é sabido, numa sociedade democrática o governo é o corpo administrativo eleito pelo povo para dirigir os assuntos do estado pelo povo. Eu penso que será muito difícil conceber qualquer acção governamental, com ou sem legitimidade democrática que não infrinja na liberdade de alguns (mesmo que temporariamente) para o benefício do maior número ou até mesmo todos. Mesmo no plano das liberdades negativas, porque mesmo aí existe a defesa positiva de direitos naturais, direitos esses que serão sempre discutíveis, talvez não no seu objectivo em si, mas sim na forma que ela é defendida e aplicada.

Enquanto é perfeitamente aceitável que eu diga como Liberal, que os princípios que nos motivam a prezar a liberdade, poderão ser igualmente invocados para colocar limites, restrições e regulamentos na liberdade económica, como é determinado por um governo eleito, não é ao mesmo tempo, aceitável dizer que vale tudo. Existem constituições, e outras convenções que têm de ser respeitadas.

A questão da tirania da maioria é uma problemática que penso que afectará qualquer democracia em maior ou menor grau, mesmo com os mecanismos constitucionais e processuais que permitem por vezes que as minorias retenham alguma capacidade de bloquear maiorias.

Já o John Stuart Mill dizia sem estar a referir-se especificamente à democracia, que: "The prevailing opinions within society will be the basis of all rules of conduct within society — thus there can be no safeguard in law against the tyranny of the majority."

No entanto ele também dizia: "That the only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilised community, against his will, is to prevent harm to others."

Concordo integralmente com o espírito e sentido desta frase.

O facto que leis atrozes podem existir, não invalida, na minha opinião, um sistema de governo. Para descrever um sistema que não admite a possibilidade do erro e sugerir que tal sistema poderá um dia existir é a confissão de uma espantosa presunção e falta de humildade.
Como sabemos, um sistema democrático pode cair em padrões de abusos generalizados. O potencial está lá. No entanto, ainda não foi engendrado nenhum sistema melhor, mesmo para a protecção das minorias. O erro é comum a toda a nossa espécie humana, e um governo constituído por homens irá sempre encontrar formas de falhar, independentemente dos sistemas de pressão para “performance” que lhe poderão estar assentes.

JLP disse...

"No entanto na tua aversão visceral à liberdade positiva, tão características dos liberais clássicos, ou libertários, ou libertarianos, ou liberais-conservadores, ou neo-liberais, (et al exceptus: liberal) mas não necessariamente liberais"

Isso está tudo no mesmo saco? Assim, acho que não vai dar para ir muito longe, pelo menos se se quiser manter alguma seriedade na conversa...

Também acho uma certa piada à disputa do "título" de "Liberal". Principalmente quando pareces anunciar que são os "liberais contemporâneos" (o que quer que isso seja) e os "liberais sociais", recentes e tímidos movimentos de pouca consistência política e que nasceram em grande parte de uma mescla, em partes mais ou menos variáveis, de social-democracia com a defesa de algumas "causas fracturantes" avulsas e com a preocupação de "fazer com que as pessoas paguem um bocado menos de impostos", são "estes sim" os "berdadeiros porta-bandeiras" de um termo com um peso de vários séculos de história, e com provas dadas em termos de ciência política por este Mundo fora.

É no mínimo algo de pretensioso anunciar como verdade revelada um "Liberalismo" que parece ignorar que este já existia há muito tempo para lá deles. Aliás, lendo o teu texto e o meu, não se pode deixar de notar uma diferença: enquanto, no meu caso, me esforcei por construir uma perspectiva aglutinadora do que é o Liberalismo, discernindo os mínimos pontos de contacto entre as suas diversas variantes, verifico que da tua parte parece haver uma particular vontade em dividir e afirmar os "puros" e a "malta nova" legítima portadora da Boa Nova.

Posto isto, no que toca à liberdade positiva, o meu antagonismo perante o conceito deve-se ao facto de ser um conceito inerentemente e por definição violador de outras liberdades. Não é possível afirmar uma liberdade positiva que não viole, na sua afirmação, uma liberdade negativa de outrem. É por inerência um acto de abuso de poder coercivo e de iniciação de violência com que não pactuo.

Assim como não pactuo com a ideia de "progressismo", termo que sempre foi tão caro ao Socialismo, já que este se afirma como o cumprimento de uma agenda, com objectivos definidos por quem não deve ter o poder de os escolher e de os pôr em prática, recorrendo a um poder coercivo e para lá de um largo consenso das pessoas que sofrem (em todas as vertentes) as repercursões dessas decisões.

"Liberalismo clássico diverge e em muito do liberalismo que eu pessoalmente reconheço e vejo a ser defendido pelo (para utilizar um exemplo que anda mais por perto deste cantinho da Europa) Movimento Liberal Social."

Provavelmente até já poderia acrescentar os outros nomes a que te referes ao rol. Se a consistência do seu "liberalismo" se pode medir pela consistência politica desses partidos e movimentos, fico bem elucidado.

".e. O que acabaste de referir: a manutenção do estado de direito."

Como diz o outro, o Diabo está nos pormenores. Para mim, Estado de Direito não é coesão social. O primeiro é um observador essencialmente ausente, que regula o exercício das liberdades e possíveis conflitos que venham a surgir. Coesão social pressupõe um desejo de intervenção em relação à estrutura de uma própria sociedade. São, quanto a mim, coisas bastante diferentes, sobre as quais poderei elaborar.

"Revisionismo à parte, o percurso económico da Rússia que levou à queda, está bem documentada e à vista de todos. Foi uma tentativa de liberalização completamente falhada."

Definitivamente, deve ser humor... ;-)

"Os EUA são sem duvida uma fonte de inspiração da liberdade embora muitas vezes são levados ao ponto de perversidade. Tiveram a benesse (e ainda bem) que a Europa não teve, de popular um território amplo já com plenas liberdades, unidos em Republica desde o século 18, fazendo uma espécie de bypass à história feudal Europeia."

Concordo. E daí? Acho que não está em discussão porque lá chegaram, mas aonde chegaram, não é?

"Incluo também o ensino público (mesmo com vouchers), sistema público de saúde e de uma forma geral, o modelo de economia mista, como sendo alguns dos elementos que fazem parte de um conjunto de serviços estatais que têm um papel mais alargado do que teria para um libertário ou dito “liberal” da onda do “small-brêda” entre outras. Corrija-me se tiver enganado por favor."

Para mim, isso não é Liberalismo. Pelo menos se não for algo que parta de um consenso de uma quase unanimidade da sociedade, com particular relevo para os detentores da propriedade. Eu até tenho algumas teses relativamente, concretamente, ao ensino obrigatório, mas que formulo como proposta de consenso, e não como algo que o estado tem o direito de impôr unilateralmente.

Pergunto-me até em que é que isso difere, como já referi, da social-democracia nórdica. Está lá tudo: os vouchers, os serviços públicos omnipresentes, e um mercado relativamente livre. O que é que o teu "liberalismo" propõe de diferente?

"Penso que agora não restam dúvidas que não concordarás com esta abordagem liberal, que provavelmente chamarás de socialista e que alias alguns já chamaram o MLS um bando de bloquistas)"

Socialista não. Mais ou menos social-democrata, mas essencialmente difusa e de quem não parece muito bem o que quer. E que escolheu de forma peregrina abraçar as mesmas "causas fracturantes", com os exactos mesmos argumentos, que o Bloco de Esquerda. Estratégia do mais fino recorte...

Já agora... "Partidos Europeus"? O que é isso? :-D

"De um Liberal obviamente que é compatível. Enquanto que liberalismo clássico não me parece."

O que não falta por aí são liberais clássicos que defendam a existência de uma safety-net. Está equivocado, e também na possibilidade de isso ser defensável em termos liberais. O que é diferente de dizer que a ideia que tenho de safety-net é a ideia que terás dela. Não, para mim não é garantir que todas as pessoas devem ter o direito de ir ao cinema pelo menos uma vez por mês.

Quanto ao exemplo dado, quanto a mim a obrigação universal do estado deve parar por garantir a vida da criança, contratando o serviço que for mais económico que o faça. Repito, o que lhe garanta a vida. Não o que lhe garanta um particular nível pré-definido de "qualidade de vida".

"tendo que os herdeiros contemporâneos do liberalismo clássico são os libertários"

Reitero que não é uma questão de herança. São a mesma coisa. A necessidade de cunhar o termo "libertário" consta do meu artigo.

"Aqui demonstras um desprezo espantoso em relação ao processo democrático e também ao contracto social tão característico dos Libertários."

Vejam lá que eu até sou contratualista...

Agora claramente coloco a Liberdade num patamar superior à democracia. O que não quer dizer que eu tenha algo de sistemático contra a democracia ou que não reconheça os seus méritos (ou se calhar, os problemas dos outros regimes). Mas há democracias e democracias. A democracia é uma fórmula muito lata que tem sofrido as mais variáveis distorções e as implementações mais perversas. E não, em relação às implementações, não concordo com elas todas.

"Como é sabido, numa sociedade democrática o governo é o corpo administrativo eleito pelo povo para dirigir os assuntos do estado pelo povo."

Lá está. Para mim, o governo é o corpo administrativo eleito pelo povo para dirigir os assuntos do estado para o povo.

"Mesmo no plano das liberdades negativas, porque mesmo aí existe a defesa positiva de direitos naturais"

O que é que é "a defesa positiva de direitos naturais"?

Eu, por acaso, nem sou defensor do direito natural, mas quando este tem que ser "enforced", esse "enforcement" deve passar por uma arbitragem entre liberdades negativas, não por nenhum mecanismo "positivo".

"Existem constituições"

O problema é quando as constituições estão mal redigidas, permitindo o seu abuso. Ou quando estão tão longe de retratar a vontade colectiva de um povo que são autêntica letra morta.

"No entanto ele também dizia: "That the only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilised community, against his will, is to prevent harm to others."

Concordo integralmente com o espírito e sentido desta frase."

Eu também concordo. Mas parece que não sou eu que tenho dificuldade em conviver com as outras consequências dessa afirmação.

"O facto que leis atrozes podem existir, não invalida, na minha opinião, um sistema de governo."

Quanto a mim, inviabiliza. Leis atrozes inviabilizam um Estado de Direito, e por sua vez destroem a Ordem que sustenta esse governo.

Willespie disse...

Isso está tudo no mesmo saco?

Claro que sim, na medida em que todas elas revestem-se do adjectivo liberal enquanto nenhuma delas o é verdadeiramente, de acordo com o liberalismo moderno.

social-democracia (...)social-democracia nórdica.

Existe uma clara sobre-posição de ideias em certos planos entre o liberalismo e a social-democracia.

Recomendo.

no meu caso, me esforcei por construir uma perspectiva aglutinadora do que é o Liberalismo,

E eu não o faço porque acredito que não é do interesse do Liberalismo associar-se nem pouco nem muito com correntes políticas que têm tido a viabilidade e visibilidade na Europa que sabemos. Zero. Não existe nenhum partido política Libertário de qualquer peso na Europa, enquanto que os Liberais são a terceira maior força política Europeia, embora que em Portugal apenas se tenha manifestado pelo jovem MLS.

Para mim, isso não é Liberalismo.

I rest my case. Lê os programas políticos dos partidos liberais Europeus e Norte Americanos. Ou eles todos enganaram-se no nome da ideologia e dos partidos ou então estás tu enganado. Por enquanto as probabilidades não te favorecem.

Partidos Europeus"? O que é isso?

Estás a gozar não?

O que não falta por aí são liberais clássicos que defendam a existência de uma safety-net.

Isso é quase impossível. Um quasi-oxímoro.

O que é que é "a defesa positiva de direitos naturais"?

Polícia estatal. Bombeiros estatais. Forças armadas estatais. etc. Se é verdade que elas existem em praticamente qualquer modelo social e económico político, nem todos concordam com a forma que ela possa ser financiada ou operada.

Quanto a mim, inviabiliza. Leis atrozes inviabilizam um Estado de Direito, e por sua vez destroem a Ordem que sustenta esse governo.

Então a democracia já é, para si um modelo inviabilizado. Sabemos que existem leis atrozes que tiveram origem em governos democráticos. Nem é preciso recorrer ao Enabling Act da Alemanha Nazi. Basta lembrar a lei Kafkaniana (e Europeia salvo erro) da proibição dos galheteiros. Isso para mim é uma lei atroz.

Willespie disse...

E para mais nesse contexto, concluo que para ti, qualquer sistema de governação é inviabilizado à partida, já que não existe um sequer que consiga pelos seus mecanismos evitar leis atrozes.

JLP disse...

"Claro que sim, na medida em que todas elas revestem-se do adjectivo liberal enquanto nenhuma delas o é verdadeiramente, de acordo com o liberalismo moderno."

Faltou o © em liberalismo moderno©.

(eye-rolling)

"Existe uma clara sobre-posição de ideias em certos planos entre o liberalismo e a social-democracia.

Recomendo."

Curiosamente, do link fornecido consta a designação "social liberalism" e não "liberalism". Ou seja, parece corroborar exactamente o que disse no meu comentário anterior.

Gostei particularmente da seguinte passagem:

In his new book Il Socialismo. De Nuovo Jordi Sevilla talks about social liberalism and emphasizes individual freedom. “El nuovo socialismo estimula la propriedad privada que es fruto del esfuerzo creativo del trabajo personal” (the new socialism stimulates private property that is the fruit of creative and personal efforts). What do you think of the new discourse of the Spanish PSOE?

Anthony Giddens: Well, this is a question about social liberalism, the divisions between social democracy and social liberalism are not as great as they used to be. In my view, that’s right and proper because in the old days, prior to 1989, there was some sort of continuing vision of social democracy linked to socialism, as something beyond capitalism. People still sustained that until the very end of the Cold War. Now nobody or hardly anybody believes that, maybe some partisans of the anti-globalisation movement. We are all in the business of creating a decent market economy in a society which includes poor people, fulfils some of the traditional goals of the left, but does so while recognizing that the utopia which used to exist is no longer feasible so far as we know anymore. So, it is inevitable that you get more of an overlap between social liberalism and social democracy.


"E eu não o faço porque acredito que não é do interesse do Liberalismo associar-se nem pouco nem muito com correntes políticas que têm tido a viabilidade e visibilidade na Europa que sabemos. Zero."

E veja-se toda a pujança da Europa!

Eu concordo que o Liberalismo faz muita falta à Europa, e mesmo do outro lado do oceano, e que queiras cunhar a tua versão de "liberalismo". Mas, apesar de tudo e com altos e baixos, não podemos dizer, como dizes, que a visibilidade do liberalismo na Europa seja o referido "Zero". Alguns exemplos de partidos:

- Venstre (Dinamarca)

- Free Democratic Party (Alemanha)

- People's Party for Freedom and Democracy (VVD) (Holanda)

- Progressive Democrats (República da Irlanda)

"Estás a gozar não?"

Eu falo de partidos, não de albergues espanhóis de interesses, sem o mínimo de coerência política e de coerência ideológica. Daqueles para quem até o PSD é (ou no caso, foi) "liberal".

"Isso é quase impossível. Um quasi-oxímoro."

Estás mal informado. E não terás muito trabalho a descobrir quem o corrobore.

"Polícia estatal. Bombeiros estatais. Forças armadas estatais."

Isso, com a eventual excepção (discutível) dos bombeiros, são as referidas funções básicas do estado, nomeadamente de segurança e de defesa. Não são medidas "positivas de garantia de direitos". São essencialmente meios de interposição e de intervenção quando a liberdade e os direitos (ou a soberania, no caso da defesa) são ameaçados, e que só intervêm nessa ocasião. Não têm nenhuma acção auxiliar nem percursora da fruição desses direitos.

"Então a democracia já é, para si um modelo inviabilizado. Sabemos que existem leis atrozes que tiveram origem em governos democráticos."

O que, como eu referi, inviabiliza essas instâncias concretas da democracia, não o princípio da democracia em si.

"Basta lembrar a lei Kafkaniana (e Europeia salvo erro) da proibição dos galheteiros. Isso para mim é uma lei atroz."

Não há leis europeias. Tenho ideia que essa questão em concreto nem sequer foi no âmbito de uma directiva. Penso que se tratava de um regulamento comunitários.

E aí se vé um exemplo de um caso que sofre de graves problemas quer de liberdade, quer de democracia, com laivos que roçam a violação do próprio Estado de Direito. O da União Europeia.

Willespie disse...

não podemos dizer, como dizes, que a visibilidade do liberalismo na Europa seja o referido "Zero". Alguns exemplos de partidos:

Pois. Não o podemos dizer e eu não o disse. Disse o contrário. O Liberalismo é a terceira maior força política Europeia. O Libertárianismo é que é residual.
Alias os partidos que citas são de facto liberais, (que eu apoiaria) e não libertários.

Estás mal informado. E não terás muito trabalho a descobrir quem o corrobore.

Admito naturalmente, como sempre a possibilidade do erro. Mas primeiro vais apresentar apenas um exemplo de um pensador da veia liberal-clássica ou libertária que defende o welfare state, safety net, ou enabling state. Lanço o desafio.

são as referidas funções básicas do estado

Não é que eu discordo de si... mas pergunto... São as funções básicas do estado de acordo com quem?

Por exemplo, poderá haver quem dissesse o seguinte utilizando uma famoso discurso:

"The quest for public [XXXXXX]--for equality of service and protection--is in fact capable of superseding individual liberty. Universal [XXXXXX] would destroy the liberty of individuals to seek [XXXXXX] on their own initiative and contract with the [XXXXXX] of their choice without waiting sometimes deadly amounts of time for [XXXXXX] to arrive on the scene. A government which seeks to impose its own vision of society on its population cannot forever walk the line between liberty and tyranny: sooner or later, it must choose one or the other."

Substituindo o [XXXXXX] por qualquer função de estado, hipotética ou real (Defesa nacional, ensino público, bombeiros, polícia de segurança pública, protecção de propriedade privada, etc), e penso que não será difícil aceitar que eu volto a fazer a pergunta anterior.

Quem é que determina o que é uma função básica do estado?

JLP disse...

"Pois. Não o podemos dizer e eu não o disse. Disse o contrário. O Liberalismo é a terceira maior força política Europeia."

Não adianta...

"Admito naturalmente, como sempre a possibilidade do erro. Mas primeiro vais apresentar apenas um exemplo de um pensador da veia liberal-clássica ou libertária que defende o welfare state, safety net, ou enabling state. Lanço o desafio."

Isto uma pessoa dá "safety net", e querem logo "welfare state" e "enabling state"...

Desde o início que te digo que tem que se ter em conta o que eu possa querer dizer com safety net...

Por acaso não me estava a referir directamente a "pensadores da veia liberal-clássica ou libertária". Estava-me a referir a pessoas que seguem essas correntes.

Naturalmente que não encontras (e ainda bem, quanto a mim) defesas do "welfare state" por autores liberais. Não faltava mais nada.

O que não inviabiliza que as suas posições sejam irreconciliáveis com a existência de uma safety net, nomeadamente se o seu pressuposto for o da preservação da propriedade (entendida como preservação da vida) ou se for instituída numa lógica de minimização do risco por uma unanimidade ou um muito largo consenso.

A essência do liberalismo é exactamente essa. A de não propôr soluções "chave-na-mão", "iluminadas" e "progressistas", mas sim os princípios básicos que acham que essa solução deve preservar.

Se precisares de uma lista de autores liberais que defendam a defesa da propriedade e da vida pelo estado ou de uma lógica contratualista liberal de estabelecimento de uma safety net, é só dizer.

"Quem é que determina o que é uma função básica do estado?"

Concerteza que, se precisares, não terás dificuldade em encontrar resposta a essa pergunta de entre toda a literatura liberal e minarquista que está disponível.

Mas já duvido da necessidade, e acredito mais na vontade de quereres estar a discutir a roda ou de se entrar na "onda relativista" de que desde o início alertei das consequências.

Willespie disse...

Naturalmente que não encontras (e ainda bem, quanto a mim) defesas do "welfare state" por autores liberais. Não faltava mais nada.

A ironia desta frase sua, é que os verdadeiros pioneiros do welfare state, foram quase todos liberais.

Fugistes à minha questão de apontar liberais clássicos que defendam a existência de uma safety-net com um desmentido habilidoso.

Em relação à outra questão: Quem é que determina o que é uma função básica do estado?

Também fugiste, apontado para as tuas bookshelves.

Claro, que eu tenho a minha opinião. Acontece que eu quero ouvir é a sua. Imaginem só.

Por último acho a tua teoria de relativismo um pouco absurdo. Não tenho interesse nenhum em fazer a dança relativista, mas afirmar que a ponderação feita pelos legisladores (ou quem quer que seja) sobre o interesse e benefício geral das leis, que não deverá substituir ou coexistir com uma série de regras construídas com base nas leis naturais (ou outra base moral e 'absoluta' qualquer à sua escolha), sendo elas naturais apenas na sua contestabilidade, não poderia ser outra coisa que não absurdo. [Russell e Popper]

Pegando no mote que utilizou para fechar o seu post inicial:

Existem muitos conservadores, que pensam que subtraindo às leis ao estado e à sociedade a nossa cultura 'Judaico-Cristã', que ficamos sem nada.

Espero que o caro JLP não seja mais um.

JLP disse...

"Claro, que eu tenho a minha opinião. Acontece que eu quero ouvir é a sua. Imaginem só."

Na minha opinião, as funções básicas do estado:

- São aquelas que são a manifestação e o veículo do monopólio do poder coercivo do estado na manutenção do Estado de Direito e da Ordem, e que por esse facto não podem ser assegurados por privados no âmbito de uma mera relação contractual.

- Adicionalmente, outras poderão ser definidas no contrato social, pelo consenso por larga maioria (quasi-unanimidade) dos detentores da propriedade.

"Existem muitos conservadores, que pensam que subtraindo às leis ao estado e à sociedade a nossa cultura 'Judaico-Cristã', que ficamos sem nada."

Tiro ao lado. Nem sou particular religioso nem crente nessa herança "Judaico-Cristã", nem sou particular defensor (dir-me-ia até antagonista) do direito natural.