Da legitimidade e do escrutínio
Através do site da Ordem dos Advogados pude ler o discurso do do Presidente do Supremo na tomada de posse do novo Presidente da Relação do Porto:
O Judiciário português tem estado ultimamente sujeito a críticas sintomáticas da comunicação social (C.S.); não todo o Judiciário, mas o seu tribunal mais emblemático: o Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.).Texto completo, aqui. Interessante por muitas coisas. Com algumas tiradas certeiras, outras bastante mais ao lado, mas definitivamente pouco regozijo por o sistema judicial estar sujeito, cada vez mais, a um escrutínio público.
Dentro em pouco, é mais que previsível que as críticas se alarguem aos Tribunais da Relação, englobando no mesmo cesto todos os Tribunais Superiores da orgânica comum.
De há dois anos a esta parte esta é a segunda leva continuada de criticas ao poder judicial. A primeira teve carácter político e está hoje ultrapassada; a segunda, tem razões de cariz economicista, parte de poderes fácticos ligados à C.S. e tem, no seu epicentro, jornais (ou seja, a imprensa escrita) com dificuldades económicas evidentes, e não já canais televisivos que, quando agem, vão meramente a reboque da imprensa diária.
Notícias relativas à condenação indemnizatória de um periódico a um clube de futebol por ter noticiado um facto pretensamente verídico, o que é rigorosamente falso porque não se provou a autenticidade do facto; notícias relativas a um acórdão proferido recentemente num caso de pedofilia com deturpação insinuada dos factos assentes; notícias relativas a um sequestro e rapto de cidadãs estrangeiras julgado por acórdão do S.T.J. proferido há quase (20) anos e apresentado agora como se a decisão fosse de há meses – tudo serviu para dizer à opinião pública que o S.T.J., afinal, não presta porque decide mal.
Pouco importa que o Supremo tenha tentado repor a verdade, intencionalmente omitida, ou que a conceituada Revista Portuguesa de Ciência Criminal tenha defendido a justeza das decisões pela pena de académicos universitários.
No fundo, e parafraseando o escritor Manuel António Pina na sua crónica de 6 de Junho passado “ a desonestidade intelectual e deontológica do jornalismo pode ter (tem frequentemente e quase sempre impunemente) consequências catastróficas. Porque, como dizia Shakespeare em “Othello” aquele que nos rouba a honra não fica mais rico e deixa-nos irremediavelmente pobres.
Vejamos: eu não estou certa de que tudo seja bom nesse escrutínio público; muito menos de que resulte numa sindicância justa. Eu apreendo, de forma pungente até, a verdade da citação de Churchill sobre a democracia - não a que dizia ser o pior sistema à excepção de todos os outros, mas a que dizia que o melhor argumento contra ela era uma conversa de cinco minutos com o homem comum.
Mas voltamos à discussão que ainda outro dia se tinha algures acerca da democracia em geral: se os poderes estatais persistem em alicerçar a sua legitimidade na representação do povo (mesmo aqueles em que o acesso dos titulares aos cargos não é directamente democrática), como sempre têm feito, não podem depois vir escusar-se ao escrutínio com a teoria de que grande parte desses supostos representados não merecem ter voz.
Ou dito de outra forma: as coisas não podem ser democráticas na constituição dos poderes públicos, e oligárquicas (ou plutocráticas) no seu escrutínio...
(Nota mais técnica: interessante a reflexão sobre a possível introdução, no sistema português, da indemnização punitiva, que existe noutros sistemas e cuja ausência no quadro normativo nacional é das coisa mais difíceis de explicar a clientes formados em séries de televisão americanas).
9 comentários:
Cara SMP,
Antecipaste o meu próximo post que será precisamente sobre os danos punitivos.:) Em todo o caso, os danos punitivos são referidos pelo Presidente do STJ a propósito de um caso em que não fazia sentido nenhum que eles fossem atribuídos (o caso Sporting vs. Público). E foi isso que mais me preocupou no discurso de um bom juiz (o Presidente do STJ). É que as palavras proferidas a respeito desse acórdão podem ser entendidas como um desejo de vingança sobre a comunicação social, o que, mesmo não sendo esse o seu sentido, agravará o conflito STJ - jornalistas. Enfim, com diria o Paulo Bento, é necessária muita tranquilidade.:)
"Mas voltamos à discussão que ainda outro dia se tinha algures acerca da democracia em geral: se os poderes estatais persistem em alicerçar a sua legitimidade na representação do povo (mesmo aqueles em que o acesso dos titulares aos cargos não é directamente democrática), como sempre têm feito, não podem depois vir escusar-se ao escrutínio com a teoria de que grande parte desses supostos representados não merecem ter voz.
Ou dito de outra forma: as coisas não podem ser democráticas na constituição dos poderes públicos, e oligárquicas (ou plutocráticas) no seu escrutínio..."
Porquê? Representação não é delegação. E não se trata de suprimir "a voz do povo", mas sim o de lhe conferir carácter decisivo e decisório apenas nos processos electivos.
É verdade que a noção de representatividade democrática tem estado, na prática, em progressiva degeneração (e é, essencialmente, uma questão de prática e costume), mas não vejo porque nos devamos render a isso.
Escrevi, há dias, um comentário mais elaborado sobre o assunto:
http://www.haloscan.com/comments/blasfemia/2621165988999740628/#702504
Porquê? Representação não é delegação. E não se trata de suprimir "a voz do povo", mas sim o de lhe conferir carácter decisivo e decisório apenas nos processos electivos.
Não acho, e mesmo que achasse, certamente não é sobre esse pressuposto que os poderes públicos se têm movido em Portugal.
Admito que a representação possa imnplicar uma (até vasta) latitude na forma como são geridos os interesses do representado, mas tendo por base sempre o consentimento presumido deste (e a possibilidade de avocar as decisões). Daqui que, quando inequivocamente esse consentimento não existe, falhe a base para a decisão.
Até porque o sistema representativo (mais uma vez, pelo menos, é isto em que insistem os titulares dos poderes) não decorre de uma maior capacidade técnica de quem exerce os cargos, mas da incapacidade logística, prática, da democracia directa. Admito que em relação ao poder judicial possa não ser assim; mas, mais uma vez, o que gostava era que isso fosse dito claramente. Nunca ouvi tal.
Repare que, de resto, eu não me estou a pronunciar sobre a bondade da plataforma em que nos vimos movendo; estou a dizer que não é coerente, da parte dos poderes públcios, aceitá-la para umas coisas e rejeitá-la para outras.
"Não acho"
Não acha porquê?
"Até porque o sistema representativo (mais uma vez, pelo menos, é isto em que insistem os titulares dos poderes) não decorre de uma maior capacidade técnica de quem exerce os cargos, mas da incapacidade logística, prática, da democracia directa."
Desculpe lá, mas onde ouviu isto? Lamento, mas, digam lá os políticos o que quiserem, não é uma questão de techné, mas sim essencialmente Política.
Vamos lá ver: a democracia representativa, como qualquer outra forma de democracia, funda-se numa ideia de soberania popular. A diferença está na transposição dessa soberania para a decisão política. Parece-me positivo continuar a conceder às palavras alguma dose de sacralidade; se cada um poder redefini-las a seu bel prazer, teremos de discutir sempre através de sucessivas distinções, o que é muito trabalhoso. O que defende quando afirma "não acho" é outra forma de democracia indirecta, mas já não seria representativa. Em regra, esses modelos são intitulados de socialismo democrático, democracia deliberativa, democracia participativa, democracia por delegação, etc.
Há uma ideia essencial ao conceito de representação: a de que o representante decide conforme o que entende ser melhor para os interesses dos representados; não de acordo com aquilo que eles acham serem os seus interesses. Isto é conhecido como o Burke’s Principle (do Bristol Speech), e, se, há 60 anos Churchill usaria do sarcasmo com quem se atrevesse a colocá-la em causa, e, ainda há 40 anos, JFK a defendeu soberbamente, é verdade que nas últimas décadas esta noção se tem vindo a degradar.
Há países que mantém normas legais que defendem a representatividade. A nossa lei fundamental não é muito boa, mas, ainda assim, encontram-se nelas provisões destinadas a atenuar os "constituency links". Mas é, no essencial, uma questão de prática e costumes: por isso é que, em Inglaterra, os parlamentares raramente votam fora da disciplina partidária, apesar dos interesses conflituantes entre os vários círculos. Compare-se com o “caso liminano”. Isto não implica, de forma alguma, a supressão da opinião ou coisa parecida.
Esta perversão do conceito de representatividade (acho que foi consigo que já discuti este assunto, tendo a SMP aduzido o argumento do que é a representação na acepção jurídica – um absoluto nosense) foi o que conduziu ao populismo democrático – que, nos dias de hoje, vai corroendo o liberalismo constitucional. É um fenómeno complexo, com profundas raízes culturais e sociológicas, que se desenvolveu, politicamente, ao longo das últimas décadas do século XX e que será terrivelmente díficil de contra-balançar. O resultado é as decisões políticas serem tomadas por pessoas que se comportam como sismógrafos da opinião pública.
Ainda há poucos anos o actual PR propôs que a elaboração do Orçamento de Estado fosse transferida para a competência de uma instituição não democrática. O anterior PR, que demitiu uma legislatura por o governo ser impopular, terá um entendimento diferente. Mas parece-me que, chegados a este ponto, e reagindo os políticos a incentivos como qualquer outra pessoa, o caminho será cada vez mais, o apontado pelo primeiro – o reforço da delegação em instituições não sujeitas ao escrutínio democrático directo ou mesmo imunes a qualquer controlo democrático formal.
Caro HO,
"Mas parece-me que, chegados a este ponto, e reagindo os políticos a incentivos como qualquer outra pessoa, o caminho será cada vez mais, o apontado pelo primeiro – o reforço da delegação em instituições não sujeitas ao escrutínio democrático directo ou mesmo imunes a qualquer controlo democrático formal."
Para além de concordar ou deixar de concordar com o seu entendimento de democracia representativa (não concordo, mas pronto!), e mais do que isso, tendo muitas dúvidas que seja esse entendimento que preside desde a sua fundação ao ordenamento constitucional português, assaltou-me uma dúvida: acha que uma ordem "liberal-constitucional" só faz sentido sustentada numa democracia representativa, mesmo na sua perspectiva desta?
Acha que a Suíça é uma ordem "liberal constitucional" corroída?
"Para além de concordar ou deixar de concordar com o seu entendimento de democracia representativa (não concordo, mas pronto!)"
Que raio, porque haverá isto de ser uma questão sujeita a "achismos"? Os defensores de outras formas de democracia indirecta encontraram outras formas de as designar. É claro que existe sempre alguma tensão e que as coisas não são a preto e branco, mas os princípios basilares que eu enumerei parecem-me indisputáveis.
"e mais do que isso, tendo muitas dúvidas que seja esse entendimento que preside desde a sua fundação ao ordenamento constitucional português"
Em parte tem razão. Somos uma democracia recente, nascida numa altura em que este entendimento já estava na defensiva. Por isso eu disse que era mais uma questão de prática e costume. Contudo, e eu citei exemplos, há disposições na CRP protegem esta noção de democracia representativa.
"acha que uma ordem "liberal-constitucional" só faz sentido sustentada numa democracia representativa, mesmo na sua perspectiva desta?"
Não. Uma ordem liberal constitucional pode sustentar-se, virtualmente - no domínio da ficção axiomática -, em qualquer tipo de processo electivo ou decisório. Historicamente, o liberalismo constitucional antecedeu a democracia (se excluírmos o epifenómeno ateniense, em que não existia qualquer noção de liberalismo constitucional). Eu só digo que, na prática, e salvo algumas excepções, a democracia representativa demonstrou ser o melhor caminho para a defesa do liberalismo constitucional. Em boa parte das democracias liberais ocidentais, é possível identificar uma forte correlação entre a decadência do liberalismo constitucional e a vaga de democratização que afectou a representação política. Se entrarmos por teorizações, o liberalismo constitucional faz tanto sentido acompanhado de uma democracia directa, representativa ou uma autocracia.
"Acha que a Suíça é uma ordem "liberal constitucional" corroída?"
Não, vai sobrevivendo. Mas a Suíça é a Suíça e os suíços são os suíços. O que não faltam na história são exemplos de arranjos políticos institucionais que funcionam sem macúla num lado e que se revelam desastrosos quando transpostos fielmente para outras latitudes. Depois, as instituições políticas são como mecanismos de relógios, altamente complexos e cujos componentes estão inextrincavelmente ligados. Mas olhe que os suíços não devem a manutenção do seu liberalismo constitucional aos referendos - pelo contrário, devem o sucesso do sistema referendário ao arranjo constitucional (e histórico, cultural e de carácter nacional) que o enforma. Nos EUA, por exemplo, a febre referendária e democratista teve efeitos desastrosos.
Mas eu quero sublinhar que não tenho ilusões saudosistas: repito que esta "corrosão" não aconteceu por acaso mas fruto de fortes pressões sociais e culturais comuns a quase todo o Ocidente; e não vejo como possam ser revertidas (não será por apelos moralizantes aos políticos). A solução passará, como apontei, pelo reforço da delegação em instituições não democráticas (como aconteceu com a política monetária).
Sobre a Suíça e a minha recusa em leituras teoréticas: o Liechtenstein não fica atrás, bem pelo contrário, na qualidade do liberalismo constitucional e é, basicamente, uma autocracia esclarecida.
Desculpe lá, mas onde ouviu isto? Lamento, mas, digam lá os políticos o que quiserem, não é uma questão de techné, mas sim essencialmente Política.
Na escola. Aliás, esse era precisamente o ponto que eu estava a tentar marcar: o que importa, para efeitos do que eu disse, não é o sistema como ele efectivamente é, mas o sistema como os seus actores o descrevem aos representados – por exemplo, através dos programas escolares.
Esta perversão do conceito de representatividade (acho que foi consigo que já discuti este assunto, tendo a SMP aduzido o argumento do que é a representação na acepção jurídica – um absoluto nosense) foi o que conduziu ao populismo democrático – que, nos dias de hoje, vai corroendo o liberalismo constitucional. É um fenómeno complexo, com profundas raízes culturais e sociológicas, que se desenvolveu, politicamente, ao longo das últimas décadas do século XX e que será terrivelmente díficil de contra-balançar. O resultado é as decisões políticas serem tomadas por pessoas que se comportam como sismógrafos da opinião pública.
Voltamos ao mesmo. Para efeitos do meu post, não importa o sistema ideal, nem sequer o sistema efectivo, importa o sistema tal como ele é transmitido aos interessados. Pode argumentar que o sistema que tem vindo a ser descrito (para além de não corresponder ao seu sistema ideal) distorce o seu ideal de representatividade. Mas não aduziu nenhuma prova que desmentisse o que eu afirmei – que os representados acreditam que a democracia directa só não lhes é oferecida por dificuldades logísticas.
Ainda há poucos anos o actual PR propôs que a elaboração do Orçamento de Estado fosse transferida para a competência de uma instituição não democrática. O anterior PR, que demitiu uma legislatura por o governo ser impopular, terá um entendimento diferente. Mas parece-me que, chegados a este ponto, e reagindo os políticos a incentivos como qualquer outra pessoa, o caminho será cada vez mais, o apontado pelo primeiro – o reforço da delegação em instituições não sujeitas ao escrutínio democrático directo ou mesmo imunes a qualquer controlo democrático formal.
Acho esse caminho provável. O que é o mesmo que dizer: acredito que progressivamente os actores políticos vão desfazer o mito que eles próprios criaram.
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