Crimes de Ódio - 2
Vale a pena publicar um excelente comentário do Pedro Albergaria a propósito da discussão que este meu post sobre os crimes de ódio parece ter gerado (os negritos são meus):
Em primeiro lugar, parabéns pelo blogue, de indiscutível qualidade.Algumas notas:
Permitam-me que intervenha na discussão, ainda que correndo o risco de repetir algo já debatido nos comentários. Os “crimes de ódio” (coloco o termo entre aspas uma vez que é nomenclatura de cunho norte-americano, não utilizada pelos juristas continentais) pretendem abranger, como o nome indica, todo uma complexa franja do fenómeno criminal em que o elemento “ódio” faz parte do tipo de crime, quer fundando a ilicitude (por exemplo, entre nós, o crime de discriminação racial, punido no artigo 240.º, n.º 1, do CP), quer agravando a ilicitude (por exemplo, entre nós, o aqui já homicídio qualificado, punido pelo artigo 132.º, n.º 2, al. e), do CP). Daqui já se vê que há essencialmente duas formas ou técnicas legislativas de fazer relevar o “ódio” como elemento típico: aquela primeira, que respeita, em geral, aos chamados “crimes de incitamento” ou “apologia” (veja-se o negacionismo tão na moda); a segunda, que, para relevar o ódio, o consagra como mera agravante de facto fundamental, como sucede, paradigmaticamente como a morte dolosa de outrem. Curiosamente, comentou-se aqui essencialmente esta segunda modalidade que é que tem gerado menos ou mesmo nenhuma polémica. Ela é, efectivamente, mais compatível com um “direito penal do facto”, que só censura o ódio enquanto este é “guia” ou motivação de um comportamento manifestamente danoso. Se quisermos arrumar as coisas, este modelo corresponde tipicamente ao modelo norte-americano, que afasta claramente o modelo dos crimes de incitamento (paradigmaticamente, a decisão do supremo Tribunal Federal, R.A.V. v. St. Paul, 1992). E, com efeito, este modelo é pouco compatível com um “direito penal do facto” e mais atreito à subjectivação do direito penal; ou seja é típico de um “direito penal do autor” (isso para não falar do “chiling effect” produzido sobre a liberdade de expressão). Curiosamente, este paradigma, um pouco espalhado por toda a Europa continental, conheceu desenvolvimentos extremos precisamente nos países latinos, com Espanha à cabeça e Portugal (onde surge misturado com características próprias do modelo norte-americano) em vias de tomar, “ex aequo”, a dianteira, com o anteprojecto de revisão do CP. A punição pura e simples do negacionismo, em Espanha, em termos muito mais abertos do que sucede na própria Alemanha, Áustria e outros países que seriam o “ambiente natural” ou ao menos “compreensível” para essas incriminações é bem prova do que acabei de dizer. Esta será, de resto, uma discussão próxima, entre nós, pois a Alemanha já fez saber a sua intenção a este propósito.
- Não aceito a criminalização do ódio na primeira vertente, enquanto elemento fundador da ilicitude. A criminalização do negacionismo é a esse propósito bastante esclarecedora: trata-se de limitar a liberdade de expressão pela criminalização de um certo exercício da mesma, o que é inadmissível. Para além de empobrecedora da discussão pública, a criminalização do negacionismo opera o mesmo tipo de discriminação que o negacionista tende a fazer: afasta certas pessoas da sociedade pelo facto de terem opiniões diferentes, pertencerem a diversas culturas, professarem religiões distintas. Nega a essas pessoas (os negacionistas) um direito básico, cujo exercício não pode ser funcionalizado a certos conteúdos, sob pena de o direito deixar de existir.
- Como o Pedro Albergaria, espanto-me com a polémica que os crimes de ódio, na segunda modalidade (enquanto factor de agravamento do tipo de crime em causa) gerou. Não vejo como o crime do fanático islâmico que degolou Theo Van Gogh por este ter criticado o Islão possa ser considerado tão banal quanto o crime de quem, sendo vítima de traição, mate a mulher ou o marido. É precisamente este tipo de banalização dos actos que me causa espécie: é o mesmo tipo de indistinção e relativismo moral que está na base das equiparações entre os crimes de Israel na Palestina e o crime do Holocausto (afinal é tudo o mesmo, morreram pessoas, há ódio nos dois casos).
Que tal relativismo esteja na base do humor do South Park, é perfeitamente normal: é um programa de humor e vive do politicamente incorrecto. Mas não me apetece viver nesse pós-modernismo cínico incapaz das mais básicas distinções morais.
4 comentários:
Concordo consigo. Também não nutro simpatia pela punição do negacionismo. Tanta quanto o desprezo que voto pela negação do holocausto. Essa é que é, aliás, uma perspectiva conforme uma concepção do direito penal como direito de última linha. Um dos problemas que infecta a política criminal actual, um pouco por todo o lado, é a confusão de planos em termos de se pretender que tudo o que não é “mainstream”, ou simplesmente “imoral”, deve ser penalizado. Uma tal incriminação (do negacionismo), onde existe (há um afloramento ténue, entre nós, no artigo 240.º, do CP), é susceptível de causar dano grave à liberdade de expressão (alguns, fazendo uma pirueta hermenêutica, pretendem que a negação do holocausto não está abrangida pela liberdade de expressão, como se essa abrangesse, apenas, “aquilo que se quer ouvir”) e suspeita-se que tem, não raro, um efeito contrário do visado. Os julgamentos de muitos negacionistas, dando-lhes um palco solene (o tribunal) que de outro modo lhes seria negado demonstra-o bem. Em tempos discuti este tema num dos blogues em que participo, o “Sine Die”, com postais de 19 e 20 de Outubro de 2006.
No entanto, também se tem de ter em conta que a punição da negação do holocausto (como na Alemanha) ou mais genericamente a negação de crimes de guerra (França, Espanha, etc.), não segue toda o mesmo padrão. Na Alemanha, trata-se de crime contra a “paz pública”; entre nós, é um “meio de execução” do crime de discriminação racial, que é uma defesa antecipada do genocídio (como se usa dizer, uma “antecâmara do holocausto”); na Espanha, prevê-se a forma mais virulenta, uma vez que se pune a mera negação, a negação pura e simples. Trata-se de uma norma (artigo 610.º, n.º 2, do CPE, se não erro) unanimemente criticada pelos académicos espanhóis, por incompatível com um direito penal liberal e porque violadora da liberdade de expressão. Os tribunais, porém, nomeadamente o TC, já desatendeu a alegação da inconstitucionalidade dela em mais do que um aresto (entre eles o famoso caso Varela). Enfim, estes são tempos perigosos.
Caro Pedro Albergaria,
Mais uma vez, obrigado pelo comentário.
Como vê, estou um pouco sozinho nesta discussão dos crimes de ódio e creio que, à excepção da Sandra que é jurista, as divergências prendem-se precisamente com um mau entendimento, próprio de leigos, do direito penal. O que é perfeitamente normal, visto que também não sou capaz de discutir economia com os meus colegas economistas.
tudo isto traz um problema adicional ao direito: como explicar decisões judiciais a leigos? Agora que as decisões dos tribunais são vigiadas por mil olhos, como fazer entender a racionalidade de uma decisão judicial? Não sei e temo bem que, cada vez mais, se caminhe para uma justiça populista guiada pelos humores da opinião pública. Mais, estou convencido que muitos juízes sucumbirão à pressão de decidirem em acordo com o "sentimento geral", seja isso o ue for.
Correcção:
"...seja isso o que for."
É bem verdade o que refere, quanto à dificuldade de "traduzir" a linguagem jurídica. Chegou-se a uma espécie de paradoxo: o direito existe para servir as pessoas, que devem por isso compreendê-lo (e isso, aliás, é condição de uma adesão voluntária às normas); mas, por outro lado, atingiu o tal refinamento técnico (e com especial relevo, precisamente, no que respeita à doutrina penal) que se torna tortuoso até para juristas. Existe toda uma pedagogia a fazer, quer junto de agentes do foro, quer junto de jornalistas. Um longo caminho a percorrer... Neste aspecto, julgo que os blogues, mesmo com a superficialidade que lhes é própria (ou talvez mesmo por causa dela...) são um instrumento importante de debate e esclarecimento.
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