2006/11/07

Aborto II

As razões porque vou votar Não no referendo que se anuncia relativo à questão do aborto:

  1. Porque o proponente da iniciativa e da reforma da lei ainda não explicou porque fixou o prazo de liberalização do aborto em 10 semanas, e não em 9, ou 11, 10 e meia ou outro.
  2. Porque o mesmo proponente não esclareceu ainda da possibilidade do aborto no período em que é livre a pedido da mulher ser incluído como medida gratuita inscrita no SNS, recaindo por conseguinte o ónus de financiar essa medida nos mesmos que financiam já presentemente a gratuitidade do acesso aos métodos contraceptivos, o que para mim é inaceitável.
  3. Porque o referido proponente, e a generalidade dos apoiantes organizados do Sim, ainda não esclareceram se defendem ou não a aplicação da lei actual, nomeadamente no que se refere à pena de prisão, às mulheres que façam, na eventualidade de o Sim vencer o referendo e da lei ser alterada, um aborto fora dos prazos previstos por esta. Ou seja, se o choradinho do costume de "nem mais uma mulher presa por crime de aborto" (que eu ainda estou para conhecer um caso) pretende indiciar que a eventual nova lei também é para não ser cumprida quando for violada.
  4. Porque não acho que a alteração da lei proposta acautele os direitos que acho que são justos ao pai da criança, nomeadamente a obrigatoriedade de ser informado do facto pela mulher e de que este facto deva constituir causa legítima de divórcio litigioso e de eventual indemnização da mulher ao homem, nomeadamente no quadro legislativo vigente que claramente associa a natalidade e a família ao casamento.
  5. Porque uma parte significativa dos portugueses não está suficientemente consciencializada da necessidade e da maisvalia da contracepção (a "falta de informação" não é desculpa: veja-se a rápida disseminação e os números da utilização da pílula do dia seguinte, de que somos recordistas europeus), sendo que o legítimar de um comportamento de utilização do aborto como método contraceptivo (porque não se duvide, haverá muitos que serão feitos nessa lógica, nomeadamente recorrendo ao aborto químico), pelo risco acrescido que representa essa prática em relação à contracepção "tradicional", constitui um problema claro de saúde pública e um previsível aumento de encargos do SNS.
  6. Porque o proponente da legislação ainda não esclareceu qual será o nível comparativo de prioridade do aborto em relação aos outras actos clínicos, nomeadamente que também requeiram cirurgia, caso o aborto seja integrado no SNS, bem como se eventuais prorrogativas de prática subsidiada deste em estabelecimentos privados a expensas do estado serão acompanhadas da extensão dessa liberdade aos outros actos cirúrgicos que façam parte do SNS.

21 comentários:

SMP disse...

Tardava a entrar-se no assunto! Resposta de quem vai votar sim – vou votar sim:
1. Porque a circunstância de o projecto de despenalização ter falhas, como a da aparente arbitrariedade do prazo fixado, não justifica que se dê uma resposta errada a uma pergunta que tem de ser feita. E porque receio que dificilmente se pudesse chegar a encontrar uma resposta avisada no meio de todos os que seriam chamados a pronunciar-se, entre médicos e filósofos.
2. Para mim também é inaceitável; mas, mais uma vez, por grave que seja a falha, não é suficiente para perpetuar a presente situação, mais inaceitável ainda.
3. Para mim, se for concedido à mulher um prazo razoável para se aperceber que está grávida E para ponderar um mínimo e tomar a decisão psicologicamente difícil de fazer um aborto, penso que qualquer pessoa que ultrapasse esse prazo razoável e faça um aborto ilegal deve ver a sanção efectivada. O fundamento que me faz ter relutância nessa efectivação no actual quadro desaparece nessa hipótese.
4. Acho que o pai deve ter o direito a ser informado, se se souber quem é; mas não deve poder obstaculizar o aborto. Quanto a ser motivo de divórcio, já tem havido divórcios litigiosos ganhos com essa causa (enquadrada como falta ao dever de respeito) e não há razão para que assim deixasse de ser se o aborto fosse legal, porque os assuntos em causa são completamente diversos. Quanto a uma indemnização, evidentemente que discordo, mas para que a discussão pudesse ser convenientemente feita terrias de me indicar concretamente os danos que se estariam a ressarcir.
5. Constatando igualmente a leviandade dos portugueses, acho que ela milita mais no sentido da despenalização do que no sentido da situação actual. A menos que se adopte a teoria do castigo, a qual, além de bizarra tendo em conta o que está em causa, faz recair as consequências do mal feito sobre a criança, além dos prevaricadores. Quanto ao aumento de encargos do SNS, fica prejudicado o problema pela resposta dada ao ponto 2.
6. Penso que parte do problema também fica prejudicado pela resposta dada ao ponto 2. Admitindo-se, todavia, que os abortos legais seriam feitos no SNS, para que a lei tivesse algum efeito útil teriam que ser realizados no prazo legal. E por isso eu diria: deviam ter essa prioridade, mas só essa. Contudo, reconheço que, porque se parte de uma má premissa, chega-se a um resultado injusto.

AA disse...

muito bom post...

JLP disse...

Sandra:

1- Num assunto sério como este (e eu diria até em qualquer iniciativa legislativa), não se deve andar a dar tiros para o ar. Principalmente quando estes podem servir no futuro para justificar precedentes ou reservas mentais dos legisladores. Além de que a obrigação não terá que ser necessariamente de atingir consensos, mas sim de clarificar pelo menos os termos em que o legislador concebe a lei. Os prazos que constituiam as excepções previstas na lei antiga tinham, pelo menos, argumentos técnicos e minimamente operacionais que os suportavam. Nesta alteração, nem isso. Por isso, mantenho a minha crítica.

2- Quando se começam a comparar liberdades e direitos, caímos nesse género de valorizações. Uma perspectiva egoista e materialista (mas quanto a mim, legítima) pode dizer que a situação actual é melhor, porque as consequências só se repercutem individualmente em quem não tomou de sua iniciativa acautelar que tal não acontecesse, enquanto que a mudar a situação nos termos que se propõe, passa a afectar todos, na medida em que não foi demonstrado que os custos associados a sequelas de abortos clandestinos fossem superiores à situação de liberalização proposta, com abortos livres até às 10 semanas gratuitos no âmbito do SNS. Como tal, não acho que esse esclarecimento seja dispensável, e que o caminho da comparação de liberdades e direitos em termos de "inaceitabilidade" é, no mínimo, escorregadio.

3- Tudo bem. Concordamos. Mas esse ponto de vista que partilhamos não é minimamente confirmado ou esclarecido tanto pelos proponentes como pela generalidade dos apoiantes institucionalizados do Sim.

4- A questão é que, a partir do momento em que passas a considerar o aborto um acto de liberdade legítimo, que sentido faz considerar que tomar uma opção de liberdade, que é considerada em vox populi como um direito/liberdade autónomo da mulher, seja considerado uma violação do dever de respeito? O entendimento que transpira é que, se é algo que somente compete às mulheres, que respeito é que se está a faltar quando o marido deveria ter a noção de que isso poderia acontecer quando se casa? E os actuais casais, em que tal conhecimento não existia?

Quanto à indemnização, seria pela quebra das espectativas associadas ao casamento. No actual enquadramento legal, é pressuposta no âmbito do casamento a constituição de família e a natalidade. Tal é, obviamente, tolerado e perfeitamente aceite (mas se for ocultado, é já causa aceitável para a anulação do casamento) se tal não for possível por razões biológicas. Mas tornar essa decisão num acto que pode ser quebrado só por uma das partes, é para mim (na presente situação), ilegítimo e uma clara violação das naturais espectativas do pai. Além disso, é esse acto da mulher que, pela sua iniciativa, e considerando que concordamos que é uma violação ao dever de respeito, força a ruptura unilateral do casamento. Ora o casamento pressupõe espectativas, ao nível dos bens do casal, sucessório e dos compromissos assumidos solidariamente pelo casal que vão por água a baixo pela vontade se uma das partes e não por uma decisão de mútuo acordo. Como tal acho perfeitamente natural que haja lugar a indemnização.

5- A questão é que se é considerado um leviandade, e se essa leviandade acarreta repercursões na generalidade das pessoas, que pagam contraceptivos que são levianamente ignorados, e que decidiram democraticamente penalizar essa mesma leviandade, não faz sentido que essa penalização não tenha uma qualquer forma de peso dissuasor, castigo, whatever. Pode-se discutir a sua forma, mas julgo que não deixa de fazer sentido que exista.

6- A questão é o que é prioritário: fazer um aborto para cumprir um prazo legal, ou operar um doente oncológico a um tumor que tem limitada no tempo a sua operabilidade, e associado a esse facto, a vida desse doente?

SMP disse...

1- Ainda que concordemos que a questão dos prazos estava melhor pensada na legislação anterior (e haveria que discutir mais um pouco se realmente estaria), não me parece legítimo que desse aspecto apenas se infira um juízo de bondade sobre o problema principal, que é o de a prática de aborto dever ou não ser criminalizada. Essa é que é a mudança principal proposta e dar umaresposta (qualquer que ela seja) à pergunta do referendo com base apenas no MODO como a despenalização concretamente será implantada corresponde, a meu ver, a iludir a verdadeira pergunta.

2- Tenho que me manter fiel à perspectiva que já tenho exprimido noutros contextos: lá porque um caminho é escorregadio, não implica sempre que não seja o melhor, e até o único, a trilhar para chegar a qualquer lado. Eu não estava propriamente a pôr as coisas em termos de direito mulher a abortar vs direito dos outros cidadãos à propriedade. E is porque não poderia fazer isto - porque este conflito de direitos não é inerente à natureza dos dois direitos, mas está a ser artificialmente criado por este concreto projecto de despenalização.
Neste contexto, a questão que se deve colocar é antes esta: reconhecendo nós (como pareces reconhecer, apesar de tudo)que a mulher deve ter a priori a liberdade de não levar a termo uma gravidez indesejada, é legítimo continuar a privá-la legalmente dessa liberdade pela única razão de que o específico projecto que planeia reconhecê-la acaba por violar, lateralmente, o direito de propriedade dos demais cidadãos? Por outras palavras, é legítimo imputar à mulher os concretos contornos que outros pensaram para o reconhecimento de uma liberdade que lhe deveria assistir desde logo? Repare-se que ela não tem possibilidade de dizer que aceita a liberdade, e rejeita a possibilidade de efectuar o aborto no SNS.

3- O que é que importa o que pensam ous apoiantes do sim? É pelas pessoas que apoiam uma causa que esta deve ser julgada? Importa assegurar que a lei venha a ser cumprida, o que duvido venha a ter muita relação com quem dá a cara por ela na campanha.

4- O adultério também é um acto de liberdade legítimo, e ainda bem que o é. Frequentar bares de strip, ser gay, vestir roupa interior de mulher, ter taras sexuais das mais variadas, idem. Todas elas, todavia, permitiriam alegar justa causa para o divórico litigioso. Apenas implicam uma quebra contratual. A licitude extracontratual e a licitude contratual são coisas diversas, e mais ainda quando a licitude extracontratual de que se fala é a licitude penal. Quem vai avaliar a relevância do facto, de resto, não é a vox populi mas um tribunal.

Quanto à indemnização, não sei em que é que o ter forçosamente qualquer filho que se conceba cabe nas expectativas associadas ao casamento (excepto ao canónico). E mesmo que coubesse, e se a mulher tivesse advertido o homem de que nunca teria um filho, mesmo que o concebesse?
Quanto à infertilidade ser causa aceitável para a anulação do casamento, as coisas não são assim tão simples. É necessário que o marido tenha casado em erro e que, ademais, esse erro tivesse sido essencial, isto é, que se prove que de outra forma não teria casado. O que, convenhamos, no actual panorama de casamentos mais por amor e menos por conveniência, é cada vez mais duvidoso.
Quanto ao raciocínio de segundo grau de que haveria uma indemnização ao marido por este se ver forçado a romper o contrato de casamento: o casamento não pressupõe, no quadro do direito familiar português pelo menos, esse tipo de expectativas a que te referes e que são exacerbadas nos filmes americanos. A quebra dos deveres contratuais no quadro do casamento pode implicar uma determinada repartição de bens, e serve de causa legítima de resolução do contrato matrimonial, mas não baseia, por si só, uma indemnização com base em perdas de expectativas. A lei não quis, e muito bem, subordinar a fluidez das relações humanas a supostas expectativas sobre realidades inerentemente voláteis. Quem parte para um casamento deve, pelo menos, conhecer a natureza humana o suficiente para não firmar expectativas sobre os sentimentos alheios.

5- Mas quem é que decidiu democraticamente penalizar essa leviandade? Será que e algum momento as pessoas na sua generalidade tomaram essa decisão? E não está o teu raciocínio a incorrer num vício de circularidade? Afinal, estamos a retirar à generalidade das pessoas o direito de responderem sim (no referendo), ou a dizer que elas deveriam responder não, com base na ideia de quem em tempos responderam não?
Quanto à ideia de castigo, não a consigo conceber num quadro de um Estado de Direito destituído de tiques paternalistas.

6- Imaginemos que há dois prazos limites: um, para fazer o aborto dentro do prazo legal; outro, para operar o doente oncológico. Terminam ambos no mesmo dia e só é humanamente possível, por qualquer razão, realizar uma operação. Penso que, mesmo admitindo a premissa errada (a de que o aborto legal deveria poder ser realizado nos quadros do SNS), o doente oncológico deveria ser operado primeiro.
Mas, convenhamos, isto é um exercício simplificador; por outro lado, se democraticamente ( e apesar de tudo as leis, até ver, são exercício do poder democrático, embora esta presunção seja elidível)se entender que o aborto legal deve ser patrocinado por todos, acho que decorrerá naturalmente daí que a impossibilidade de o realizar atempadamente conferirá à mulher o direito de o realizar na privada e ser reembolsada. De cavalopara burro? Pois é. Por isso é que eu disse que a premissa é má.

JLP disse...

1- Sendo que o proponente da alteração optou por sua iniciativa fugir à questão que também concordas deveria ter sido colocada (como tu referes, a "verdadeira pergunta"), entrando deliberadamente num campo nebuloso do que está em causa, reitero que, por uma questão de previdência e cautela, prefiro manter uma situação que é conhecida do que enveredar por caminhos pantanosos.

2-

"Eu não estava propriamente a pôr as coisas em termos de direito mulher a abortar vs direito dos outros cidadãos à propriedade. E is porque não poderia fazer isto - porque este conflito de direitos não é inerente à natureza dos dois direitos, mas está a ser artificialmente criado por este concreto projecto de despenalização."

Poderá ter sido criado artificialmente, mas foi criado, pelo menos pela clara demissão do proponente em o clarificar. Foi uma opção dele, consciente. Assim como é a minha de manter uma atitude de desconfiança em relação a ela.

"[...] é legítimo continuar a privá-la legalmente dessa liberdade pela única razão de que o específico projecto que planeia reconhecê-la acaba por violar, lateralmente, o direito de propriedade dos demais cidadãos?"

Não é lateralmente. A questão é que, mais uma vez, se asseguram "direitos positivos" há custa do suspeito do costume, o direito de propriedade. Reitero que foi uma opção clara do proponente em alimentar essa suspeita. Podia ter tido a opção clara de afirmar a liberdade como uma liberdade negativa, e clarificar que o acto estaria, na vertente livre, fora do SNS. Não o fez, acho que tenho uma resposta coerente com a sua decisão.

3- Não são só os apoiantes, o que não inviabiliza que estes, que no fundo em grande parte sustentam a maioria que democraticamente procura impor a sua vontade, não possam ser por esse facto completamente excluidos da decisão que vai em grande parte depender deles. Mas pior do que isso: essa perspectiva não se restringe a eles. O proprio proponente, que se confunde largamente com o papel de legislador da situação presente e de "enforcer" do estado das coisas a que se chegaram, nunca demonstrou ser sua vontade zelar pelo cumprimento da lei, como era sua obrigação. Também não é agora que se demarca e justifica, na sua acção, o que podemos esperar de diferente na sua vontade de cumprir a lei para quem pratique abortos que continuem a ser ilegais. Que razão é que eu tenho para confiar que quem não fez por a cumprir no passado a vai passar a fazer cumprir agora?

4- Serão actos de liberdade, concerteza. Só que no caso concreto das questões associadas à natalidade, a opção do legislador no momento presente é de que elas não só sejam causas legitimadoras de um divórcio legítimo, como são além disso, e especificamente, causas que possibilitam a própria anulação do casamento. Nota-se uma clara vontade do legislador de colocar num patamar destinto essa questão.

Além disso, para além da vox populi, existe também a letra da lei, que estabelece essa decisão como um direito/liberdade da mulher, desprendidos de quaisquer outros considerandos.

"E mesmo que coubesse, e se a mulher tivesse advertido o homem de que nunca teria um filho, mesmo que o concebesse?"

Se fosse essa a sua vontade, deveria ter claramente estabelecido isso, nomeadamente numa convenção ante-nupcial.

"A lei não quis, e muito bem, subordinar a fluidez das relações humanas a supostas expectativas sobre realidades inerentemente voláteis."

Lá está, são planos diferentes das coisas: a volatilidade de uma relação e a liberdade que deve assistir todos não impedem que sejam irresponsáveis pelos seus actos praticados no exercício dessa liberdade.

5-

"Mas quem é que decidiu democraticamente penalizar essa leviandade?"

A partir do momento em que a democracia representativa optou por aplicar a sua coercividade para fomentar a contracepção, assumindo que a violação da propriedade de todos era tolerável para o objectivo que se prupunha, e essa mesma democracia representativa optou por sancionar um comportamento que deriva claramente de uma oposição ao que decidiu fomentar, acho que é uma conclusão perfeitamente legítima constatar que decidiu penalizar esse comportamento.

"Quanto à ideia de castigo, não a consigo conceber num quadro de um Estado de Direito destituído de tiques paternalistas."

Um castigo, ou uma punição, não têm necessariamente de originar de uma perspectiva moral ou de uma atitude paternalista. É perfeitamente compreensivel uma atitude contratualista que derive na estipulação de sanções baseadas somente nesse acordo e na vontade de penalizar quem tente furtar-se a ele.

6-

"Penso que, mesmo admitindo a premissa errada (a de que o aborto legal deveria poder ser realizado nos quadros do SNS), o doente oncológico deveria ser operado primeiro."

Isso é o que tu pensas. Mas em lado nenhum fica garantido na proposta de lei que se avance nesse sentido.

"Mas, convenhamos, isto é um exercício simplificador; por outro lado, se democraticamente ( e apesar de tudo as leis, até ver, são exercício do poder democrático, embora esta presunção seja elidível)se entender que o aborto legal deve ser patrocinado por todos, acho que decorrerá naturalmente daí que a impossibilidade de o realizar atempadamente conferirá à mulher o direito de o realizar na privada e ser reembolsada."

Isso é só outra versão do problema. Esse direito também é conferido ao doente oncológico? E se a verba orçamentada não chegar para todos? Sobe-se os impostos? Corta-se noutras rúbricas do SNS? O privado pode recusar o acto antes de receber?

Mário Almeida disse...

Na questão do pagamento :
Se o Estado não suportasse os custos do aborto, quem não tivesse dinheiro para o fazer continuaria a fazê-lo clandestinamente. A mim não me agrada a ideia de onerar ainda mais o orçamento da saúde, mas por coerência, se se é a favor da legalização não se pode ser contra o seu financiamento. O resto, e por mais socialista que isto soe, depois de verá.

JLP disse...

Caro Mário Almeida,

"Se o Estado não suportasse os custos do aborto, quem não tivesse dinheiro para o fazer continuaria a fazê-lo clandestinamente."

São problemas completamente separados: uma coisa é a liberdade de fazer, outra coisa é a acessibilidade e universalidade de o fazer.

Assim como liberalizar o consumo de droga não obriga o estado a providenciá-la a quem a queira consumir e não possa porque não tem dinheiro.

SMP disse...

1-Isso é que não pode ser, porque o que está em causa é discutir uma liberdade da mulher e não uma liberdade do proponente…

2-Mais uma vez, imputa-se à mulher, que deveria ter visto esta liberdade reconhecida já há muito, uma atitude que não é dela e da qual ela nem sequer se pode demarcar, afirmando que aceita a liberdade mas declina o direito de a efectivar num hospital público.

Quanto ao comentário do parágrafo seguinte, o direito a realizar um aborto não é um direito positivo, mas negativo. É o direito a não prosseguir com uma gravidez indesejada. E isto não é mera semântica: é o direito a dispor do seu próprio corpo, e de tudo quanto a ele esteja ligado no momento, sem intromissão do Estado, da força pública. Se está transvestido de um direito positivo na actual proposta, mais uma vez, isso não pode ser imputado às mulheres.

3- Estás a fazer julgamentos de intenções. Uma solução jurídica deve valer por si, desde que burilada o melhor possível, de forma a evitar maus aproveitamentos dela no futuro; mas nunca se conseguirão inviabilizar completamente estes maus aproveitamentos ou a possibilidade de a lei ser violada pelos mesmos que a deveriam aplicar. De qualquer forma, rejeitar uma proposta com base na possibilidade de futuramente ser violada parece-me bizarro: equivale a reconhecer, no mínimo, que até se concorda com a proposta.

4-Mas onde é que notas essa clara vontade de do legislador? No caso da anulação do casamento, tais questões são colocadas em patamar de estrita igualdade com qualquer erro que possa razoavelmente ser considerado determinante para a vontade de contrair matrimónio – como o conhecimento de que a pessoa estava severamente doente; ou de que era toxicodependente. Essa “clara vontade” de que falas não existe, já para não dizer que, se existisse, seria tempo de a eliminar.

Também todas as atitudes que te referi são protegidas pela lei em termos de liberdade do indivíduo, sem prejuízo de poderem constituir causa de divórcio litigioso.

“Se fosse essa a sua vontade, deveria ter claramente estabelecido isso, nomeadamente numa convenção ante-nupcial.”

Porquê? Isso é partir do pressuposto que a filiação é um dever inerente ao contrato de casamento, coisa que nem a sociedade reconhece nem a lei apoia, embora tu afirmes que sim. Não cabe nos deveres do casamento o dever de ter filhos, nem o legislador lhe dá qualquer realce especial. Ao contrário do senso comum, o casamento e a filiação são coisas bem definidas e separadas na lei hoje em dia.

Quanto à quebra de expectativas, liberdade e responsabilidade, a questão da responsabilidade só surge quando é cometido um acto ilícito. Como aqui já assentámos que não há um ilícito extracontratual, porque as pessoas são livres de manter ou romper as relações como bem entenderem, o ilícito a que te referes teria de ser contratual. Mas o contrato de casamento é um contrato sem termo, que dura no tempo e em relação ao qual o quantum das obrigações não está definido à partida. A disciplina de todos os outros contratos deste género na lei aponta para a possibilidade de denúncia por mera vontade unilateral das partes SEM que isso implique qualquer ilícito contratual. Trata-se de situação semelhante, por exemplo, a um contrato de fornecimento, que a qualquer momento, ressalvadas cláusulas especiais (que neste caso não existem na lei, e recordo que o casamento é um contrato típico em tudo o que não seja o regime de bens), pode interromper-se.

5-Não foi com o objectivo de fomentar a contracepção que se penalizou o aborto; isso é wishful thinking. A criminalização do aborto está assente na violação do direito à vida do bebé (basta ver a inserção no código penal).

Quanto ao castigo encarado de uma perspectiva contratualista, para além de ter dúvidas que a teoria do contrato social se possa esticar a esse tempo, as liberdades negativas devem ser subtraídas a esse tipo de julgamento – é o caso.

6- “Isso é o que tu pensas. Mas em lado nenhum fica garantido na proposta de lei que se avance nesse sentido.”

Nem que não avance: isso é o que TU pensas :).

“Isso é só outra versão do problema. Esse direito também é conferido ao doente oncológico? E se a verba orçamentada não chegar para todos? Sobe-se os impostos? Corta-se noutras rúbricas do SNS? O privado pode recusar o acto antes de receber? “

Respostas: mas claro que sim. Já devia estar a ser conferido na prática. Se a verba não chegar para todos, a prioridade deve ir para o doente oncológico. Quanto a cortar outras rubricas do SNS, bom, só se claramente forem menos importantes que o aborto legal, do que duvido no panorama actual. Quanto ao privado recusar o aborto: desde que o protocolo livremente celebrado com o Estado o permita, sim.

SMP disse...

Mário Almeida:

Voltamos à questão central de se tratar de um direito positivo ou de uma liberddae negativa. Tratando-se, como eu acho que se trata, de uma liberdade negativa, o facto de o Estado a conceder (eu diria antes: reocnhecer) não implica que vá desempenhar algum papel activo no seu exercício.
Porque a posse de material pornográfico é livre, o Estado não tem de providenciar revistas pornográficas aos seus cidadãos.
O facto de se ter incluído a discussão do aborto no contexto lato do direito à saúde (esse sim um direito positivo) veio confundir as coisas, mas penso que elas são, na sua origem, completamente distintas.

Anónimo disse...

(1) O prazo de dez semanas é arbitrário. O aborto e o seu prazo não são questões de princípio, mas sim questões práticas. Não há contraceção eficaz sem que haja a possibilidade de, em último recurso, fazer um aborto. Então, tem que se pôr um prazo, mais ou menos arbitrário, que separa a legalidade da ilegalidade.

(3) Evidentemente, a lei deve ser cumprida para abortos fora do prazo. Embora, em minha opinião, as penas previstas sejam exageradas, e o prazo de dez semanas seja demasiado curto. Mas, uma vez colocado um prazo realista - que em minha opinião deveria ser 15 semanas, ou coisa assim - os abortos fora desse prazo devem ser punidos.

(4) A lei não pode prever direitos de um desconhecido. O pai do feto é frequentemente desconhecido. A mulher não pode ser obrigada a dizer quem ele é. E, mesmo que dissesse, poderia estar a mentir. Não se pode fazer testes de paternidade ao feto.

(5) O aborto é necessário como válvula de escape para as falhas da contraceção. Todos os meios contracetivos são falíveis, seja por falhas técnicas (os preservativos rompem-se, etc) seja por falhas humanas (as mulheres esquecem-se de tomar a pílula, etc). Não há alternativa entre a cntraceção e o aborto: eles são complementares.

Luís Lavoura

JLP disse...

1- O que está em causa, concretamente o referendo, não é uma questão filosófica, nem sequer concretamente a questão da liberdade da mulher. O que está em discussão, e que vai ser votado, é uma determinada visão dessa liberdade, estabelecida em termos difusos pelo proponente da iniciativa, e um projecto-lei que a ele está associado.

2- A decisão de colocar a coisa nesses termos, e de lançar a dúvida sobre a afirmação do aborto como um direito positivo foi do proponente da questão e da iniciativa. Foi uma opção dele colocar a coisa nestes termos e é isso que está em discussão e vai ser referendado, não a perspectiva que eu e tu temos que deve ser um direito negativo.

Não atribuo a culpa do sucedido às mulheres, mas tenho que me limitar a discutir a proposta que está na mesa.

3- A questão é que os mesmos que pactuaram com a anterior situação de incumprimento da lei, propõem uma nova ei que estabelece os exactos mesmos mecanismos e pressupostos em relação à sua violação. Não são alteradas as considerações relativas à prova, à condução do processo, nem é demonstrado em lado nenhum que se tenha aprendido com o incumprimento do passado e se queira mudar. Não posso passar portanto um cheque em branco desses a quem no passado já demonstrou ser capaz de concretizar a provisão que estava em vigor.

4-

"Isso é partir do pressuposto que a filiação é um dever inerente ao contrato de casamento, coisa que nem a sociedade reconhece nem a lei apoia, embora tu afirmes que sim."

Não é dever mas é uma espectativa claramente estabelecida no quadro legal vigente, a começar na Constituição.

"Mas o contrato de casamento é um contrato sem termo, que dura no tempo e em relação ao qual o quantum das obrigações não está definido à partida. A disciplina de todos os outros contratos deste género na lei aponta para a possibilidade de denúncia por mera vontade unilateral das partes SEM que isso implique qualquer ilícito contratual."

A questão é que o contrato de casamento é um contrato atípico. Estabelece obrigações para além da sua vigência e claramente pressupõe efeitos para além do período em que está em vigor. Como sabes, essa vontade unilateral não é plenamente livre. Implica responsabilidades ou condicionalismos à posteriori, por exemplo relativamente à morada da família, ou até no ridículo das "múltiplas sogras" ;-) Estas situações são, quanto a mim, uma clara expressão da perspectiva de que o contrato de casamento não tem o enquadramento de um mero contrato de direito privado, e engloba pressupostos que escapam ao tratamento geral destes. Enquadramento no qual acho perfeitamente legítimo estabelecer mecanismos de indemnização por quebra de espectativas futuras no âmbito do casamento.

5-

"Não foi com o objectivo de fomentar a contracepção que se penalizou o aborto; isso é wishful thinking. A criminalização do aborto está assente na violação do direito à vida do bebé (basta ver a inserção no código penal)."

Não sei se será somente esse o considerando. Senão, não faria sentido a possibilidade de o fazer em caso de violação ou de má formação do feto. O que acho é que foram estabelecidas ponderações de vária índole, umas mais claras, outras menos claras. E acho perfeitamente admissível que tenha sido ponderado o papel da mensagem transmitida em termos de contracepção.

6-

"Nem que não avance: isso é o que TU pensas :)."

Na falta de um esclarecimento cabal nesse sentido, acho que é perfeitamente possível duvidar do caminho que se propõe. Para mim, conhecendo o comportamento dos envolvidos no passado, prefiro a cautela, quer ache que tal vá ser feito ou não.

"Respostas: mas claro que sim. Já devia estar a ser conferido na prática. Se a verba não chegar para todos, a prioridade deve ir para o doente oncológico. Quanto a cortar outras rubricas do SNS, bom, só se claramente forem menos importantes que o aborto legal, do que duvido no panorama actual. Quanto ao privado recusar o aborto: desde que o protocolo livremente celebrado com o Estado o permita, sim."

A questão é que o que está em votação não é o que tu ou eu possamos achar que está correcto. Tem que se deliberar com dados que estão na mesa, que o proponente da questão parece relutante em fornecer.

Todo o meu raciocínio neste artigo (e neste ponto, respondo também ao Luis Lavoura) se orienta para a proposta que está na mesa, e não pressupõe a minha opinião geral sobre o aborto e os juízos que faço em relação aos seus condicionalismos. Estou a dizer como vou agir em relação a esta proposta em concreto, ao que ela promete e segura juridicamente e aos compromissos que são estabelecidos sobre ela.

Face a essa proposta concreta, reitero o meu Não. O que não inviabiliza que genericamente, sobre a questão do aborto, seja essa a minha posição, que conto até esclarecer no próximo artigo desta sequência ligada ao tema.

SMP disse...

Não querendo eternizar a discussão...

1 e 2- Ao contrário de ti e do Luis Lavoura não tenho essa visão pragmática e penso, de resto, que não está de acordo com uma visão liberal do porblema. A liberdade da mulher e o seu reocnhecimento por parte do Estado são questões de fundo e de princípio que se sobrepõem a qualquer modalidade concreta do seu reconhecimento. Nessa medida, qualquer projecto de despenalização que reponha a liberdade no seu devido sítio é um movimento positivo.



4- Quanto à questão da filiação e do casamento, a lei ordinária e a Constituição tratam-nas a par, dado que são ambas fontes de relações familiares. Mas não estabelecem a ponte. Isso é uma leitura que tu fazes, repito, sem base legal.

"A questão é que o contrato de casamento é um contrato atípico."

Bem, mais típico do que o casamento não há, não lhe podes mexer em nada excepto no regime legal. Isso é que é, para a lei, um contrato típico. Mas vou admitir que queres dizer com isto um contrato duradouro diferente dos outros.

"Estabelece obrigações para além da sua vigência e claramente pressupõe efeitos para além do período em que está em vigor. Como sabes, essa vontade unilateral não é plenamente livre."

Ah, aqui também já se adopta o "como sabes"? Parabéns, estamos a conquistar realmente o estatuto de elite intelectual ;)...
Pessoalmente, não vejo que haja bases, legais ou sociais, para diferenciar o casamento de outro contrato duradouro, pelo que a recentemente falada proposta de dissolição por vontade unilateral era, para mim, não apenas concebível como a mais coerente.
"Todo o meu raciocínio neste artigo (e neste ponto, respondo também ao Luis Lavoura) se orienta para a proposta que está na mesa, e não pressupõe a minha opinião geral sobre o aborto e os juízos que faço em relação aos seus condicionalismos. Estou a dizer como vou agir em relação a esta proposta em concreto, ao que ela promete e segura juridicamente e aos compromissos que são estabelecidos sobre ela."

Pois, mas é nisso que divergimos. Para mim, assegurar que a liberdade é reestabelecida é uma questão de princípip. Tudo o resto pode ser secundarizado.

Fico à espera da clarificação mas, evidentemente, do que fica dito se retira que duvido muito de qualquer "Não" que assuma não baseado em juízos morais mas em considerações pragmáticas.

Mário Almeida disse...

"Assim como liberalizar o consumo de droga não obriga o estado a providenciá-la a quem a queira consumir e não possa porque não tem dinheiro."
"Porque a posse de material pornográfico é livre, o Estado não tem de providenciar revistas pornográficas aos seus cidadãos."

O uso do cinto de segurança é obrigatório. Quem vai parar ao hospital por ter tido um acidente de carro e sofrer danos físicos resultantes de não ter o cinto posto, fica excluído do SNS ?

Ou usuando os vossos exemplos :

Quem sofrer uma overdose de droga ilegal e for parar ao hospital, fica excluído do SNS ?
Quem consumir tanta pornografia que às tantas desenvolve uma problema psicológico qualquer (nem sei se é possível, mas vocês percebem), e precisar de ser internado no Conde Ferreira, fica excluído do SNS ?

SMP disse...

A comparação não é cabal. Vejamos as liberdades que enumerámos:
- a liberdade de consumir droga
- a liberdade de consumir pornografia,

dizendo que o Estado, por as assegurar, não tem de as promover activamente pagando ora a droga ora a pornografia. O que não quer dizer que, num momento a posteriori, se surgirem problemas derivados do consumo de uma ou de outra, se deva recusar a tratá-los no SNS (embora... mas isso eram outros quinhentos).

Agora peguemos na liberdade que estamos aqui a discutir, que é a liberdade de fazer um aborto. Repare-se: a liberdade de fazer um aborto, e não a liberdade, anterior a esta, de ter relações sexuais. Só se estivéssemos a discutir a liberdade de ter relações sexuais é que a tua comparação faria sentido porque, efectivamente, do seu exercício deriva uma consequência considerada nefasta (a existência de uma gravidez indesejada). E aí sim, faria sentido discutir se o Estado deve, apesar do comportamento de risco da mulher, assisti-la. Podemos ir por aí; e eu tentarei demonstrar porque acho que não deve.

Mas não era disso que se falava. A consequência do exercício da liberdade de fazer um aborto, que era a que se discutia, poderá ter, como consequência nefasta, por exemplo, que uma clínica privada (ou uma parteira...) o realize mal e a mulher tenha de ser tratada no SNS, por médicos eventualmente mais experientes e mais preparados, ou com melhores meios. E isso, eu não digo que não se faça.
Agora, a liberdade em si, não tem de, nem deve, ser efectivada pelo Estado apenas porque é por ele reconhecida.

Anónimo disse...

O JLP insiste que aquilo sobre que tem que se pronunciar é aquilo que está no referendo. Mas eu não o vejo a enfrentar apenas e tão-somente a questão que está no referendo: se concorda ou não que se realizem abortos a pedido da mulher até às 10 semanas de gravidez em estabelecimentos de saúde autorizados. Em vez de se restringir a essa questão, o JLP desvia-se para especular sobre a (não) aplicação da atual lei, sobre o pretenso "direito" da mulher, ou sobre o pagamento dos abortos pelo SNS. Ora, nenhuma dessas questões vai a referendo. O que vai a referendo é apenas e tão somente saber se o JLP concorda ou não que se realizem, em hospitais e clínicas autorizados, abortos a pedido da mulher até às 10 semanas de gravidez.

Luís Lavoura

Anónimo disse...

"O que [...] vai ser votado, é uma determinada visão dessa liberdade [da mulher], estabelecida em termos difusos pelo proponente da iniciativa, e um projecto-lei que a ele está associado."

Que liberdade da mulher é que vai ser votada?
Que termos difusos? Eu não vejo nenhuma liberdade da mulher no projeto de lei a ser votado. Muito menos vejo termos difusos. A liberdade que vai ser votada no referendo é a liberdade de os hospitais poderem oferecer serviços de aborto a mulheres com gravidez de menos de 10 semanas. Mais nada. Nada há no projeto de lei que estabeleça que os hospitais terão a obrigação de realizar abortos, ou que a mulher terá o direito de os exigir. Apenas se pergunta aos eleitores se concordam que num hospital se realizem abortos quando a mulher os peça. Atualmente, os hospitais são proibidos de o fazer. De acordo com a pergunta do referendo, passam a ter tal liberdade.

"A decisão [...] de lançar a dúvida sobre a afirmação do aborto como um direito positivo foi do proponente da questão"

Eu nem sequer sei o que é um direito positivo. E de qualquer forma na questão em discussão nada há sobre direitos positivos (de quem?).

Luís Lavoura

SMP disse...

Esclarecimento semântico, a bem de uma clara discussão: ao referirmo-nos a direitos positivos queríamos significar direitos que só podem ser exercidos através de uma prestação activa do Estado (os chamados direitos sociais), por oposição aos direitos, liberdades e garantias que são eminentemente negativos, isto é, cujo exercício se basta com a não intromissão do Estado.

Anónimo disse...

Imaginemos uma situação alternativa. Imaginemos que aquilo que estava em causa não era a realização de aborto, mas sim a colocação de mamas de silicone nas mulheres que o solicitassem. Suponhamos que era proibida tal colocação, e que se perguntava ao povo se tal proibição deveria ser levantada. Ora, parece-me evidente que

(1) Nada está presente em tal pergunta que sugira que todas as mulheres passam a ter o direito inalienável de colocar mamas de silicone;

(2) Nada está presente em tal pergunta que sugira que tal colocação será necessariamente feita a expensas do contribuinte em hospitais do Estado;

(3) Nada está presente em tal pergunta que implique que a colocação de tais apetrechos terá prioridade nos hospitais sobre qualquer outra intervenção cirúrgica;

(4) É ridículo condicionar o direito do hospital de colocar mamas de silicone numa mulher à prévia autorização do(s) amante(s) dessa mulher, que aliás o hospital não tem forma de saber quem seja(m);

(5) É ridículo responder "não" à pergunta feita com a justificação de que "eu só concordo que uma mulher possa pôr mamas de silicone se me derem a garantia de que o Estado não paga, que a operação tem prioridade mínima nos hospitais, e que o(s) amante(s) da mulher é (são) previamente contactado(s) para dar a sua autorização". É evidente que esses detalhes são importantes, mas não são eles que estão em causa!

A única pergunta que, objetivamente, é feita é saber se o hospital deve ter ou não a liberdade de colocar as mamas de silicone. A resposta óbvia, parece-me, é em qualquer caso "sim".

JLP disse...

Mario Almeida,

"O uso do cinto de segurança é obrigatório. Quem vai parar ao hospital por ter tido um acidente de carro e sofrer danos físicos resultantes de não ter o cinto posto, fica excluído do SNS ?"

"Quem sofrer uma overdose de droga ilegal e for parar ao hospital, fica excluído do SNS ?"

Na minha opinião, a safety net do estado deveria assegurar esse tratamento, numa lógica de defesa da vida do cidadão. O que não inviabiliza que ache que deveria posteriormente chamado à responsabilidade de ressarcir o estado da despesa com o tratamento.

Uma coisa é um acto furtuito, a que estamos todos sujeitos. Outra coisa é o fruto do comportamento irresponsável de indivíduos.

Como tal, só para clarificar, acho que faz parte da minha visão de SNS o tratamento de emergência que assegura a vida da pessoa (caso ela não a acautele por outros modos). Mas não numa lógica de gratuitidade. Assim como defendo que uma mulher em perigo de vida por complicações de uma aborto clandestino mal sucedido seja tratada pelo SNS, mas que os custos devessem ser repostos por ela.

JLP disse...

"Mas eu não o vejo a enfrentar apenas e tão-somente a questão que está no referendo"

A questão é que a questão do referendo não é suficientemente clara em termos do mandado que será conferido pela sua resposta ao legislador.

É um pouco como um referendo que perguntasse se a cirurgia estética devia ser livre escolha de cada um, mas não acautelasse uma decisão futura do legislador de a tornar gratuita e uma valência do SNS.

"Que termos difusos? Eu não vejo nenhuma liberdade da mulher no projeto de lei a ser votado."

"A liberdade que vai ser votada no referendo é a liberdade de os hospitais poderem oferecer serviços de aborto a mulheres com gravidez de menos de 10 semanas. Mais nada."

É tão difuso que o Luis Lavoura até acaba por tornar a questão que está mais claramente em votação no referendo, que é a liberdade da mulher abortar até às 10 semanas, numa referendo sobre o que é admissível e possível de ser praticado nos hospitais.

Quanto aos direitos positivos, concordo com a perspectiva da Sandra.

JLP disse...

Luis Lavoura,

Nas questões que apresenta, nem "nada está presente" que assegure a coisa numa direcção, nem na outra.

"É ridículo responder "não" à pergunta feita com a justificação de que "eu só concordo que uma mulher possa pôr mamas de silicone se me derem a garantia de que o Estado não paga, que a operação tem prioridade mínima nos hospitais, e que o(s) amante(s) da mulher é (são) previamente contactado(s) para dar a sua autorização". É evidente que esses detalhes são importantes, mas não são eles que estão em causa!"

É a sua opinião. Para mim são determinantes na tomada de decisão.