2006/11/07

Tiques pidescos

Subsistem, na nossa sociedade e nas nossas instituições, determinados tiques pidescos que, apesar de se esgotarem, as mais das vezes, em caricaturas de si próprios, nos deveriam levar a reflectir muito seriamente nas raízes desta vontade de cada português de ser o polícia do parceiro.
Por razões profissionais, tive de consultar a página da recém-criada Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a qual substituiu, recentemente, o antigo Instituto da Comunicação Social, sedeado ali no magnífico Palácio Foz, nos Restauradores. Deve ser, aliás, a localização aprazível que propicia o ócio do espírito e a efabulação gratuita. Senão, vejamos.
É sabido do público em geral que a SIC foi recentemente multada por esta entidade em virtude dos anúncios autopromocionais da sua nova telenovela "Jura", uma das mais completas pornochachadas que a televisão nacional tem conhecido . Enfim; entende-se, a meu ver, que em horário dito familiar se restrinja o conteúdo das transmissões. Poderíamos perder muitas horas a discutir se a exposição a determinadas cenas de violência ou de sexo influenciam negativamente ou não as mentes mais jovens, sem chegar a grandes conclusões. Admito, portanto, que, na dúvida, se presuma que sim, e se procure fazer uma filtragem dos conteúdos - com base, já se vê, em critérios bem definidos a priori, gerais e abstractos e, tanto quanto possível, de aplicação automática.
Nesta medida, não achei mal a decisão, supondo que se tinha seguido o esquema do costume - preenchida a previsão da norma, despoleta-se a estatuição. Isto é, QUEM FIZER (e fez) SOFRERÁ ASSIM E ASSADO (e sofreu).
Melhor seria que me tivesse deixado neste engano de alma ledo e cego, mas resolvi passar os olhos pelas 33 páginas da decisão, que estava ali mesmo à mão de semear. E descobri uma série de coisas que não sabia. Deixo-vos os pedaços mais ternurentos.

As imagens visuais e sonoras emitidas nas autopromoções da novela 'Jura' centram-se no sexo, sendo apresentadas num contexto relacional de traição e mentira, sem qualquer contextualização ou conteúdo de natureza educativa ou formativa. São imagens que abordam o sexo como puro instrumento de prazer, desligando-o do amor, do erotismo e, até, da sexualidade em sentido mais amplo e não, meramente, físico. Por outro lado, o adultério, a traição, a mentira, o crime, surgem como formas banais de relacionamento entre as pessoas. A mulher é reduxida a objecto de prazer e o homem ao papel de 'garanhão' desprovido de escrúpulos e sentimentos. Os valores para que remetem as imagens são degradantes e, não menos importantes, arcaicos face às preocupações e ideais geralmente identificados com os da juventude.
O Conselho Regulador tomou além disso na devida consideração a ambiguidade, proventura não voluntária, da frase 'a novela das nossas vidas'. Por um lado, dir-se-á, a SIC poderá ter pretendido destacar a qualidade da novela 'Jura', ao ponto de esta poder ser a melhor novela 'da vida' do telespectador, em comparação com outras que este tivesse visto no passado.
Bem mais plausível, no entanto, e agora com relevância na esfera da regulação, é que o operador televisivo tenha procurado inculcar no espectador, qualquer que fosse (aqui se incluindo, por isso, crianças e adolescentes), a ideia de que, através das imagens autopromocionais transmitidas e da mensagem nelas contida, poderia reconhecer o padrão da sua vida e daqueles que o rodeiam.
Tratou-se, portanto, de tentar que cada um se identificasse e sentisse proximidade com os valores patentemente inculcados, nos termos atrás vistos, através do spots autopromocionais para, dessa forma, captar audiências, naturalmente curiosas em ver a 'sua' vida retratada na pantalha. Esta tentativa de banalização do 'visto', naturalmente, terá sido facilmente recusada (ou, pelo menos, filtrada) pelo telespectador adulto que não se reconheça naquele 'modelo'.
Com certeza, não é qualquer um que lida no quotidiano com um 'garanhão' ou que aspira a tal papel; e nem todos, seguramente, abordam no dia a dia (como parece inculcar-se) o sexo sob a perspectiva ali representada, ou sequer com a 'traição', a 'violência', o 'vício' ou a 'polémica'.
Felizmente, aliás.
Trata-se, desde logo, da imagem que se transmite do homem e da mulher, num sentido objectivamente desqualificado.
O homem é, com efeito, e como se viu, apresentado como simples actor sexual e dominante, escolhendo, ao sabor dos seus impulsos sexuais, entre a mulher (esposa) e a amante - literalmente, e descodificando de forma simples a identificação realizada no spot, como cobridor [sic].
A mulher, por seu turno, é representada, também literalmente (não é aqui necessário qualquer esforço de detecção de representações simbólicas) como passiva - dependente
da escolha do homem -, caracterizada por papéis sexuais típicos e, aliás, ultrapassados (a esposa, a amante) ou, finalmente, por clichés tão básicos e primários que dispensam o Conselho Regulador de mais comentários: a 'loura', a 'morena'. Trata-se, por conseguinte, de um mero produto sexual, mais ou menos apetecível consoante os humores ou apetites do 'garanhão'.
Está na massa do sangue de qualquer português ditar a sua moralzinha quando tem oportunidade para isso. Reconheço que a margem de manobra conferida pelas normas em causa dá azo a alguma subjectividade, porventura difícil de eliminar numa área como esta, sem tornar ineficaz a própria previsão legislativa. Todavia, acho que o Conselho Regulador foi muito além do necessário mesmo tendo em conta esse circunstancialismo. A bem do Estado de Direito, e porque esta é talvez uma das suas mais ocultas dimensões, urge que as autoridades aprendam que nenhum ascendente têm, sobre o cidadão, que a lei lhes não confira.
Nesta medida, eu tenho que me sujeitar à multa do polícia de trânsito, mas não sou obrigada a aturar-lhe o sermão (é bom que se diga que, numa atitude mais que contraproducente, não falta quem ature as prelecções dos senhores agentes na esperança de que estes lhes safem a multazinha); sou obrigada a acatar a decisão do Tribunal mas não a baixar a cabeça à descompostura puramente moral do juiz. As consequências dos actos dos cidadãos têm, perante o Estado, as consequências civis que a lei prescrever; o pecado e o castigo fica à porta da Igreja, para quem neles creia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente post. Apoiado!!!

Luís Lavoura

Anónimo disse...

Aprendi muito