2006/08/28

O inexorável plano inclinado

O José Barros, em resposta ao Migas, defende a separação de poderes como o principal travão às tendencias totalitárias de aquisição de poder por parte dos estados no que toca ao "controle" das liberdades dos cidadãos, definindo no seu caso o contexto de estado como o agregado do governo e da administração pública, e remetendo a manifestação final dessa separação de poder ao poder fiscalizador dos tribunais, ou seja, do poder judicial.

No fundo, ecoa um sentimento de muitos (incluindo os pais da Constituição Portuguesa) de que o poder judicial é um poder à parte, separado em grande parte da lógica da democracia, e que funciona como último garante do estado de direito ao ser o garante de independência e de autonomia, a última barreira e válvula de emergência entre a ordem e o caos. Foram como tal constituidos por este mundo fora poderes judiciais que, de uma maneira ou de outra acabaram por, na concretização desse desejo constitucional, se instalarem supostamente à margem da perfídia do estado. Acabou portanto por se instalar um certo poder judicial absoluto, tolerado, e distante de uma suposta limitação pela letra da lei, enquadrado em grande parte num conceito de uma espécie de "monarca absoluto distribuído", com estatuto semelhante ao que é referido pelo José Barros.

Tal cenário, apesar de cómodo e confortával, não nos pode fazer esquecer de uma coisa: é que o poder judicial também é estado. O passar um atestado de perversidão ao poder executivo e legislativo não pode deixar de ser, se justificado em grande parte pela realidade fática, um rótulo injusto quando imposto por tabela.

E não deixa de ser curioso que é exactamente no Reino Unido e nos Estados Unidos, sistemas baseados na common law e que garantem uma particular independência desse poder judicial por esse facto (sendo garantida uma muito maior latitude interpretativa da lei aos juízes), adicionado da grande autonomia e liberdade que é entregue ao processo legitimador dos tribunais de topo do poder judicial, que as maiores perversões juridicas tenham avançado nos últimos anos. Vejamos alguns exemplos.

Podemos começar pelo Terrorism Act britânico, aprovado este ano. À laia de exemplo, fica o caso relativo às detenções sem culpa formada: já idêntica iniciativa de 2000 tinha estabelecido esse período em 14 dias, quando a prisão preventiva em situações "vulgares" de homicídio ou violação ascende legalmente a 4 dias. Ora, apesar de ter sido travada a vontade do poder legislativo em estender esse período para 90 dias (sim, 3 meses sem culpa formada), após grande turbolência envolvendo o poder legislativo e judicial acabou por se assentar no dobro do limite anteriormente em vigor: 28 dias.

Nos Estados Unidos, apesar de terem sido estabelecidos nos anos 70, foi somente nos últimos anos (potenciado pelo PATRIOT Act) que aumentou o recurso a tribunais secretos, denominados United States Foreign Intelligence Surveillance Court. Nestes tribunais as audiências são fechadas ao público, que também não pode aceder aos autos. Somente advogados do estado estão autorizados a exercer nesta instância, e as audiências podem ocorrer em qualquer dia, a qualquer hora (segundo o artigo da Wikipedia).

No Reino unido, generaliza-se a aplicação de "Ordens de Comportamento Anti-Social" (ASBO), uma espécie de providencias cautelares que são aplicadas por forças de segurança ou tribunais a indivíduos com alegados comportamentos que se enquadram em ilegalidades, mas dos quais nunca foram condenados, no que na prática se consuma numa substituição do critério de "beyond reasonable doubt" associado ao direito criminal pelo critério de "probable cause" característico dos processos cíveis, de eliminar o direito que deve assistir a qualquer um a um julgamento (completo) justo, e no fundo em aplicar uma pena sem sentença. Curioso (e ilucidativo) é verificar como num site oficial do governo inglês destinado a explicar estas "ordens", são metidos no mesmo saco comportamentos tipicamente criminais e violentos (como o vandalismo, as ofensas corporais e crimes sobre a propriedade) com comportamentos tipicamente contra-ordenacionais e "comportamentais" (como o consumo de álcool ou de tabaco abaixo da idade mínima, a prostituição e as ofensas verbais).

Recentemente, os rumores dão como espectável a extensão desse género de "ordens" ao crime informático (o que quer que isso seja). Não será difícil de a imaginar extendida a quem faça violação do direito de autor online ou a quem tenha daquele tipo de pornografia.

Assim como também não constitui surpresa que se confirme que o discurso do terrorismo, depois de bem vendido, seja rapidamente travestido. Por exemplo quando as anunciadas "medidas excepcionais" contra o terrorismo rapidamente se transformam e mutam em medidas contra o tráfico de droga, o contrabando, a fraude ou outros tipos de crime organizado.

Amanhã, talvez sejam os crimes fiscais.

4 comentários:

JLP disse...

"São, pois, os outros órgãos de soberania - o governo e o parlamento - que estão a abusar dos seus poderes ao promoverem leis que afrontam as liberdades individuais, obrigando os tribunais a aplicá-las quando não sejam inconstitucionais."

Às leis iníquas não basta serem criadas. Se não tiverem tribunais que façam o seu enforcement não são mais que letra morta. Tens como exemplo o que aconteceu (e acontece) há anos a fio no que respeita à aplicação da lei do aborto nos tribunais portugueses.

Em Portugal, um juiz pode escusar-se a aplicar a lei se a considerar iníqua e inconstitucional. Essa sua decisão persiste e é somente avaliada inteiramente no seio do poder judicial, ou seja, se o poder judicial quiser tomar uma posição de força, basta que se negue a aplicar a lei que quer sancionar que todo o processo até à cúpula do Tribunal Constitucional lhe pode dar razão e de facto negar uma lei da república.

"Quem criou o tribunal? Claro que arranjas sempre meia dúzia de juízes para participarem em aberrações jurídicas, mas dificilmente o poder judicial pode ser culpabilizado pela sua criação."

Pois, mas precisas sempre de juízes para lá estarem. Além disso, a decisão dos tribunais da FISA é passivel de recurso para o Supremo Tribunal que o analisa em closed session e tem a última palavra. Fossem criados os tribunais que fossem, é sempre ao SCOTUS, como última instância de recurso, que caba a possibilidade de por travão se achar que se procede a uma violação grave, decisão que não é praticamente auditável.

Num sistema em que existem mecanismos de checks&balances, a culpa dos desvarios é tanto dos que prevaricam por acção como daqueles que se demitem das suas competências fiscalizadoras e fogem a esta responsabilidade. Como tal acho que o alvo não é nada errado. É toda uma cadeia de decisão e de poder que tem agido em moldes muito criticáveis e passível das maiores críticas.

"Acresce que é próprio dos sistemas de common law não terem o mesmo conceito de lei que nós temos. Onde não há lei vigora o sistema de precedentes, que dá uma margem de manobra bastante grande aos juízes;"

Isso é exactamente o meu ponto de vista. Os juízes, que além da capacidade que descreves têm, no caso do SCOTUS, a possibilidade de deliberar sobre a continuidade de jurisprudência estabelecida no passado, têm num sistema desse género ainda mais capacidade de aplicar o seu poder com discricionaridade para travar o poder legislativo e executivo, sendo contudo exactamente nessas praças que têm vindo a ser cometidos os atentados que se conhecem.

"Isto para dizer que uma coisa como os ASBO só seria possível no Reino Unido ou nos EUA, porque nos sistemas penais continentais vale o princípio da tipicidade, segundo o qual só são crimes aqueles (detalhadamente) previstos no Código Penal. Os ASBO seriam, pois, inconstitucionais segundo a lei portuguesa."

A questão é que mesmo no UK aquilo não é implementado como direito criminal. Não são crimes (ou não são sancionados como tal apesar de serem perfeitamente tipificados) e não estão na alçada do direito penal, mas sim do direito civil. Exactamente porque a prova é muito mais simples dado esse facto (e muito mais conveniente para o estado que, lembre-se, tem no UK um papel prossecutório e não de "apuramento da verdade" como o MP português), basicamente consegue-se aplicar uma sanção de contornos penais (com a agravante de ser totalmente arbitrária e ad-hoc, muitas vezes com contornos sequer de vigência muito nebulosos) desfarçada de "providência cautelar".

Isto é gravíssimo e é, quanto a mim, já não o anunciar do início da queda, mas sim prenúncio de um total descalabro eminente do estado de direito britânico. É uma situação muito grave e que só conseguiu ser construida baseada num claro conlúio dos vários poderes.

O que levanta uma questão muito interessante: geralmente, os sistemas de common law são considerados mais liberais do que os sistemas continentais. Serão mesmo?

Isso é outra guerra. Pessoalmente acho que não há essa correlação. Acho até que é perfeitamente possível ter-se estados de direito liberais baseados tanto na common law (ou basicamente numa perspectiva mais tradicionalista e jusnaturalista do direito), ou em direito positivo. O livro do AAA é aliás bastante bom para demonstrar como se pode construir um edifício de ordem e de direito baseado nas duas perspectivas, basicamente opondo a perspectiva mais tradicionalista e jusnaturalista do Hayek e a contratualista e positivista da Common Choice.

Pessoalmente, a minha preferência tende para a segunda, tanto pela maneira como concebo os meus esquemas mentais como pelas minhas reticências em relação à "rédea solta" dos juízes e à perspectiva de colocar humanos a julgar humanos baseados em critérios longe de serem objectivos, e na suposta avaliação de "feelings" de um povo.

Mas isso sou eu. Em relação ao liberalismo na generalidade (e apesar de a variante tradicionalista ser aparentemente a mais largamente apoiada pelos membros da blogosfera liberal lusa), não acho que haja uma escolha nem óbvia nem sequer, em grande parte, necessária.

JLP disse...

"interessa-me continuar esta conversa, que me parece óptima."

'Bora!

1- Bem, a (nossa) Constituição previne isso enquanto não for revista. Além de que quem garante que ela é cumprida é essencialmente a palavra (as decisões) do TC. Também se pode dizer que a Constituição americana, antes de algumas emendas, se calhar garantia melhor a liberdade e tal se veio deteriorando. Mas o meu ponto era exactamente o de de no caso do UK e nos US o poder judicial ter mais poder arbitrário, como tal mais meios para lutar pela separação de poderes que defendias ser o melhor antídoto para o "plano inclinado", e contudo é exactamente aí que ele mais se tem instalado.

"Por cá, não tenho dúvidas, uma coisa do género dos ASBO seria inconstitucional."

2- A questão é que nada invalida que a Constituição seja revista e/ou o direito penal seja alterado de modo a que fossem possíveis. Exactamente no criar o terreno propício a isso é que se torna importante o favorecimento (e manutenção) do sentimento de medo e terror por parte dos estados, agitando espectros como o "terrorismo" ou o "comunismo". Desse modo vêm uma via para aumentar o seu poder.

"Quanto a isso, não vejo, infelizmente, grande solução: o caminho da democracia para a ditadura é curto e conta geralmente com a conivência de tiranos e idiotas úteis. Não há nenhuma solução dentro do mecanismo legal para fazer face ao problema."

3- A solução é uma limitação efectiva, por via Constitucional e com grandes travões à revisão, do poder do estado. Somente ao lhe tirares a dimensão e a capacidade de se imiscuir na vida das pessoas, ou tornares o processo de aquisição de poder tão lento que seja difícil de implementar é que consegues assegurar que a voracidade do estado pelo poder, que é (lembre-se) absolutamente natural, seja debelada. Se a separação de poderes é um ingrediente que pode contribuir para isso, não é uma panaceia, nem pode ser vista como uma receita infalível e que basta por si só. Ou que é a mais eficiente.

"Isto é, o facto de haver leis escritas permite que todas as pessoas as conheçam se quiserem e possam adequar o seu comportamento em conformidade. Isto parece-me uma exigência liberal básica: as pessoas poderem saber com o que contam."

4- Também vou por aí. Mas também reconheco o mérito dos argumentos do "outro lado". :-)

Anónimo disse...

"Às leis iníquas não basta serem criadas. Se não tiverem tribunais que façam o seu enforcement não são mais que letra morta. Tens como exemplo o que aconteceu (e acontece) há anos a fio no que respeita à aplicação da lei do aborto nos tribunais portugueses."

Bem, vou emoldurar estas palavras, João... é impressão minha, ou tu vens repetindo há meses que esta é uam faculdade que os juízes NÃO devem ter?

Bom, tomando o problema em geral, parece-me que a atitude mais sensata da parte do cidadão será a de adaptar aquele provérbio árabe do "a minha nação contra o mundo, a minha família contra a minha nação, eu e o meu irmão contra a minha família, eu contra o meu irmão" (ou whatever) à sua relação com os poderes estatais. O "irmão" neste caso será o poder judicial; mas, porque também ele é feito de homens, e ainda para mais praticamente insindicável, em última análise, "eu contra os juízes".
O problema da insindicabilidade do poder judicial é um problema sério, para o qual, todavia, o regime actual é o menor dos males. Mas enfim, se alguma proposta conseguir a promessa de um movimento paretiano neste campo, parece-me que deveremos manter-nos abertos à sua discussão. Mas, até lá...

JLP disse...

"Bem, vou emoldurar estas palavras, João..."

:-) Calma...

"é impressão minha, ou tu vens repetindo há meses que esta é uam faculdade que os juízes NÃO devem ter?"

Digo e mantenho. O que eu queria dizer é que mesmo quando se lhes atribuem esse género de poderes quase arbitrários, suportados na ideia de que são um poder acima dos outros poderes e o último garante da Ordem tal acaba por não ter minimamente esse efeito, sendo o poder judicial somente mais um a ajudar à "festa". Exactamente o que digo é que se tem verificado na prática que esse género de raciocínios e considerações não eram minimamente justificados nem legítimos, e são (ainda pior) inconsequentes ou contra-producentes, já que não tiveram quaisquer consequências positivas que deles adviesse.

Reitero que a qualificação de uma lei como iníqua não é uma decisão que deva estar ao alcance de um juiz. Quando muito a instituição competente do poder judicial deve arbitrar sobre se, no caso de existir uma Constituição, tal lei cumpre ou não com esta.

A decisão acerca da iniquidade ou não da lei diz somente respeito a todos os que são como um todo abrangidos por um determinado contrato social (na minha perspectiva contratualista) de onde esta emergiu. É a estes que cabe a legitimidade e a responsabilidade de se oporem às leis que claramente violam esse acordo prévio.