2006/06/27

Naturalidade, nacionalidade, estados e povos

O dos ∫antos lançou num comentário ao artigo anterior algumas sugestões de análise alternativa ao problema enunciado, apesar de quanto a mim se ter afastado em parte da questão. Ou melhor, acrescentou à questão da naturalidade vs. nacionalidade como critério de admissão às selecções nacionais a problemática da eventual não coincidência das fronteiras dos estados com as delimitações geográficas dos vários povos, etnias e culturas.

Aceite o desafio, vamos por partes:

Já repararam que ser português e potencialmente tornar-se jogador da selecção sem contestação depende apenas de nascer ou ser descendente de alguém que nasceu nas fronteiras definidas por um Estado?
Em primeiro lugar, há que separar a questão da naturalidade e da nacionalidade. A visão presente é, quanto a mim, de que o conceito de "ser português" está mais associado à nacionalidade do que à naturalidade. Por essa mesma razão, concordo que é um critério absolutamente bizantino o de restringir a participação cívica, incluindo em questões como a participação em "selecções", a critérios de naturalidade. Eu próprio, que nasci em Angola e vim para Portugal com menos de um ano, acharia no mínimo ridículo ficar restrito a participar na "selecção" angolana, país ao qual nada me une, pelo simples facto incidental de lá ter nascido fisicamente. Acho que ser português deve ser uma decisão que possa ser tomada em liberdade, fruto de vontade, e não deixada ao sabor de critérios incidentais e apriorísticos que não estão minimamente ao alcance de intervenção por parte de quem vais ser afectado por eles.

Acho que, salvaguardado um período de carência para evitar abusos, a escolha da nacionalidade no sentido do que possa afectar a participação nessas instituições deve ser livre e tão somente uma consequência do facto de vivermos no mundo globalizado e com grande mobilidade pessoal em que vivemos. Mesmo o critério muitas vezes vigente de "só se poder alinhar numa selecção na vida" me parece desprovido de sentido nos tempos presentes.

A manutenção de critérios de Raça, de naturalidade ou de "pureza de origens" são monumentos do passado em que os individuos não se deslocavam, se conheciam enciclopedicamente mas não pessoalmente e acabavam por cohabitar em ghetos de inbreeding transformados em estados.
O estabelecimento das fronteiras estatais deu-se por razões meramente políticas (como casamentos por motivos dinásticos e anexações militares) e não resultou de uma emergência natural e espontânea de nações.
Como já referi num artigo anterior, não defendo a existência de um direito à auto-determinação dos "povos". Acho até que a propria adopção plena de tal direito conduziria mais facilmente a erradicação de muitos desses povos e diminuição da diversidade do que à preservação do seu legado. Vejamos: é referido no comentário que as fronteiras presentes dos estados emergiram de razões políticas ou militares. Concordo, dando até particular relevo às segundas. Mas se muitas dessas comunidades foram preservadas, foi exactamente pelo conceito de soberania e de todo que configurava a visão dos estados. Que emergência mais espontânea e natural de fronteiras existiria do que a presente, constituída essencialmente a partir de mecanismos darwinianos de superioridade e de inferioridade da força (política ou militar)? Falamos de centenas de anos de altercações, de jogos, de ofensivas e defensivas que culminaram num cenário relativamente estável de estabelecimento de domínios e fronteiras e numa relativa pacificação generalizada. Se muitos desses povos subsistem hoje em dia, foi pelo surgimento do avanço civilizacional que permitiu a definição de fronteiras reconhecidas mutuamente por estados soberanos, consubstanciado posteriormente no estabelecimento de mecanismos de direito internacional de arbítrio entre esses estados.

O que muitos desses "povos" se esquecem é que ao embarcarem em voluntarismos de independências conquistadas univocamente, à custa da violação dos interesses dos que lhes deram guarida no passado, contribuem para quebrar a ordem espontânea que foi adquirida ao longo de muito tempo, favorecendo a que novamente se instalem mecanismos darwinianos de acção.

Existirão desses "povos" que poderão entretando ter adquirido poder suficiente para garantir a sua subsistência autónoma, sem dúvida. Mas é sempre um jogo perigoso e imprevisível a perspectiva de se afrontar o statu quo, a maioria das vezes mais baseado na ideia que temos do nosso valor do que no real valor que detemos.

3 comentários:

Anónimo disse...

"O que muitos desses INDIVÍDUOS se esquecem é que ao embarcarem em voluntarismos de independências conquistadas univocamente, à custa da violação do ESTADO que lhes deu guarida no passado, contribuem para quebrar a ordem espontânea que foi adquirida ao longo de muito tempo, favorecendo a que novamente se instalem mecanismos darwinianos de acção."

Assim já não soa tão bem, pois não? Mas o paternalismo é sempre o mesmo...

FMP disse...

João,

A evolução de Darwin não tem limites, é contínua e perpétua. No entanto pareces defender que já atingimos um estado de "perfeição de fronteiras"...não será mais plausível, à luz desses mesmos mecanismos que a evolução continue, que novos estados apareçam, que se refine a identidade, e que hajam espaços cada vez mais plurais ?

"contribuem para quebrar a ordem espontânea que foi adquirida ao longo de muito tempo, favorecendo a que novamente se instalem mecanismos darwinianos de acção"

O que é uma ordem espontânea quebrada espontaneamente senão uma nova ordem espontânea ? Os mecanismos darwinianos não podem ser parados e recomeçados, não tem um "start button", eles nunca deixaram de existir...

Do ponto de vista liberal parece-me que existem muitas agressões à liberdade do homem que têm base no conceito de estado-nação, e como tal, é natural que de uma forma "darwiniana" eles pelo menos se alterem na sua forma de existir

Abraço

Anónimo disse...

bom comeco