2006/06/23

Liberalismo e auto-determinação

Segui com alguma curiosidade os recentes desenvolvimentos relativos quer à recém-adquirida independência do Montenegro face à Sérvia e Montenegro, quer ao referendo relativo ao novo estatuto da Catalunha na nossa vizinha Espanha.

Relembrando os critérios e resultados dos respectivos referendos, a independência de Montenegro foi associada a um critério de aprovação por um mínimo de 55% dos votantes (o resultado final foi de 55,5%), e de uma abstenção máxima de 50% (o valor obtido foi de 13,4%), enquanto em Espanha a aprovação do estatuto estava pendente de uma maioria simples dos votantes, sem critérios de abstenção (foi aprovado com perto de 74% dos votos com uma abtenção superior a 50%).

Será a auto-determinação dos povos um conceito liberal?

Vejamos os casos em separado.

No caso de Montenegro há uma conclusão que se pode tirar de imediato, e que é a de que aproximadamente 39% dos eleitores montenegrinos recusaram expressamente a independência. Além disso, como se pode constatar da figura que ilustra o artigo à esquerda, a distribuição dos votos pelo território de Montenegro não foi uniforme. Longe disso. Concretamente, 9 das 21 províncias que foram a votos decidiram maioritariamente pela manutenção do estado anterior.

A minha relutância relativamente a esta situação divide-se essencialmente em três questões:

  • Será que é legítimo que a decisão relativa à independência de uma parcela de um país seja tomada somente pela população do território que pretende a secessão? Não devia ser sim toda a Sérvia e Montenegro chamada a decidir sobre um assunto em que claramente é parte interessada? Não será um processo destes em tudo semelhante a estarmos a aferir intenções de voto à porta de um congresso partidário?
  • Será legítimo que seja constituido um novo estado partindo de uma premissa que subjuga o interesse de pelo menos 39% dos seus eleitores ao resto? Não seria mais "justo", mantendo o desejo anunciado de previlegiar a auto-determinação dos povos, que fosse conferido aos 9 territórios que decidiram em contrário a possibilidade de manterem o seu vínculo com a Sérvia?
  • Mais grave (em termos liberais, e como corolário da primeira questão): é legítimo que somente uma parte da população da Sérvia e Montenegro pudesse decidir da propriedade pública que se situa no seu território, constituida na base de um contrato social que vinculava todo um país e sabe-se lá por que critérios de redistribuição (seria o Montenegro um contribuinte líquido no âmbito da Sérvia e Montenegro?), materializando-se neste caso a decisão como um confisco?
Basicamente, será o direito à auto-determinação um "direito natural" e uma manifestação da liberdade de um povo, ou será antes um mecanismo de ditadura da minoria?

No caso referido de Espanha e da Catalunha, a questão é um tanto ao quanto diferente. A Catalunha é contribuinte líquido no seio da Espanha, e a situação, apesar das nuances constitucionais que foram acrescentadas ao estatuto (e que veremos se passam no seguimento do anunciado pedido do PP espanhol de verificação da constitucionalidade do documento), não remete para uma questão de independência, mas sim do alargamento do seu estatuto de autonomia. Concretamento, o ponto que me interessa comentar é o que se refere à possibilidade adquirida pela Catalunha de reter os seus impostos, passando efectivamente a não contribuir para o "bolo" do orçamento espanhol e a fazer a gestão local desses recursos.

Quanto a mim, um dos factores essenciais decorrentes da coesão nacional e da igualdade perante a lei é de que há custos sociais, decorrentes do contrato social a que todos os cidadão de um determinado país aderem, que são por natureza não proporcionais, i.e. materializam-se como custos de cidadania mais associados a mecanismos de minimização do risco colectivo do que propriamente a mecanismos de redistribuição nacional. Nomeadamente os associados às funções básicas de um estado mínimo.

A partir do momento que se confere um poder como o referido à Catalunha, será de questionar se se manterá então ainda de facto a coesão do estado espanhol. Não estaremos perante uma efectiva ruptura da universalidade do contrato social estabelecido pelos cidadãos espanhóis?

Mais. Sera de perguntar então com que legitimidade a Catalunha passa a beneficiar simultaneamente da sua autonomia e de não ser independente, ora reclamando um estatuto de excepção, ora mantento o vínculo com Espanha quando lhe convém. Será de questionar se será legítimo, por exemplo, que tendo ganhado de facto independência fiscal do resto de Espanha, os seus cidadãos possam continuar a usufruir dos benefícios decorrentes da participação da Espanha na União Europeia ou em outras organizações internacionais. Será legítimo, por exemplo, que a Catalunha possa reclamar junto do estado central lobbying junto da União Europeia ou mesmo a distribuição pelos seus habitantes de fundos comunitários?

É que outros países, como o referido caso de Montenegro, estão conscientes e sempre foram alertados de que a aquisição de um estatuto de independência os obrigaria a negociar a participação em todas as organizações onde participavam via o seu anterior estatuto.

Para concluir, uma resalva: não tenho nada contra que se estabeleçam critérios de subsidariedade no interior dos estados. Sou até forte apoiante da autonomia fiscal dos municípios e da concorrência entre eles. Mas há responsabilidades, mesmo no âmbito fiscal, que são intrínsecamente nacionais, e que só desse modo também fazem sentido. Só me oponho a autonomias de conveniência e a desejos de independência românticos que não podem ser separados das co-responsabilidades que vinculam esses povos às suas realidades nacionais.

1 comentário:

JLP disse...

A questão quanto a mim não é de vantagem (que poderão ser objectivas, no caso de serem contribuintes líquidos ou outras noutros casos), mas sim de legitimidade. Um território que consome rendimentos líquidos do território de que se pretende separar perde para mim grande parte da legitimidade em o fazer, pelo menos sem que a decisão se extenda a quem "paga as facturas".

A fronteira noroeste do mapa apresentado é a nova fronteira com a Sérvia. O que significa que há continuidade territorial, apesar de existirem 3 províncias "montenegrinas" que ficavam encravadas na Sérvia e 1 "sérvia" que ficava encravada em Montenegro. De qualquer modo (apesar de que para ser rigoroso seria necessário a distribuição de população pelas províncias) parece-me que a satisfação final seria bastante superior.

Quanto à questão da divisão em províncias/concelhos, acho que é uma mera questão operacional. O meu ponto de vista é que toda a população da Sérvia e Montenegro deveria ter sido chamada a pronunciar-se em referendo.

Abraço!