2008/05/12

Os culpados porque sim

Um liberal não tem outra solução senão aceitar que alguém seja discricionariamente colocado sobre violência. Porque esse é infelizmente o mundo em que vivemos.

Filipe Melo Sousa, em comentário ao seu artigo abaixo.
As preocupações (sem dúvida bem intencionadas) expressas pelo Filipe no artigo que referi, acabam por demonstrar com clareza o perigo de gerir a Justiça por critérios de conveniência conjuntural e de utilitarismo, e a maneira como desse modo se aceitam de bom grado as mais básicas e óbvias violações das liberdades individuais. Pior ainda, no caso, a rotulação de que um liberal é alguém que aceita (ou no caso, até incentiva) o uso de força discricionária de um estado para com um indivíduo. Um equívoco que não posso deixar passar em branco.

O raciocínio do Filipe enferma, quanto a mim, de dois equívocos óbvios.

O primeiro é a de que as regras de due process existem para proteger os criminosos e que são entraves à aplicação da Justiça. Ora essas regras existem não para proteger os culpados e os criminosos, mas sim os inocentes. Concretamente, de impedir que lhes possa ser imputado esse exacto rótulo de "criminosos" sem ser de forma sustentada e isenta de julgamentos apriorísticos e de conveniência. Julgamentos afinal semelhantes aos que o Filipe faz dos prisioneiros de Guantanamo e de todos os que forem engavetados pelos bons em nome da causa maior da "luta contra o terrorismo", em relação a casos que tanto ele como eu desconhecemos, com prova desconhecida e com contornos da própria detenção dúbios.

O próprio exemplo apresentado pelo Filipe do detido em Guantanamo que foi liberto e que posteriormente veio a matar diversas pessoas num atentado é falacioso. É falacioso porque, em primeiro lugar, a decisão de o libertar foi de mote próprio dos próprios responsáveis por Guantanamo, os que, já se viu, não têm qualquer forma de accountability que os obrigasse a agir nesse sentido. Logo, se o libertaram, foi por concerteza acreditarem, por meios legítimos e ilegítimos, que efectivamente o indivíduo não constituía um perigo. Ora, face às circunstâncias dessa detenção, não há nada que possa demonstrar que o que veio a suceder a seguir tivesse algo a ver com o comportamento e com as intenções do indivíduo antes da sua detenção. Eu próprio te afianço: inocente e law abiding como sou, se fosse preso em violação das regras básicas de um Estado de Direito, tratado como um infra-humano, torturado e depois deitado fora sem qualquer tipo de explicação ou de indemnização justa, não sei o que faria nos tempos que se seguissem à minha libertação.

O outro equívoco é o de julgar que são necessárias "regras extraordinárias" para lidar com "casos extraordinários". Em primeiro lugar, o estado é pródigo em demonstrar os seus escrúpulos no seus uso. Em segundo lugar, se os tais indivíduos são tão flagrantes atentadores contra a Lei e a Ordem, se as suas intenções são assim tão públicas, flagrantes e notórias, não estou a ver porque é tão difícil submetê-los às medidas de coacção tradicionais e posteriormente sentá-los num tribunal e condená-los pelas regras de um Estado de Direito. Afinal, nenhum juiz se absterá de cumprir o seu papel face a indícios e provas concretos. No caso concreto americano, com a existência da pena de morte e de regimes de prisão como o da Supermax, nem há dúvidas quanto à existência de mecanismos que garantam que o indivíduo em causa, se for condenado, é integralmente e permanentemente removido da sociedade. É portanto perfeitamente legítima e substanciada a dúvida em relação à qualidade da prova que colocou os referidos detidos em Guantanamo.

3 comentários:

Pedro disse...

De um modo geral, concordo com os princípios expressos pelo João neste post. São inteligíveis, razoáveis e vão ao encontro do senso comum.
Não obstante o exemplo dado pelo Filipe não ter sido feliz, não devemos, no entanto, esquecer-nos das especificidades que caracterizam o terrorismo internacional.
Se este problema fosse da mesma natureza do delito comum, a maioria do Congresso não teria aprovado o Patriot Act, que congregou democratas e republicanos.
Guantánamo é um escândalo mundial, um monstro hediondo de consequências imprevisíveis. Tão mau que seria inexplicável noutro contexto que não fosse um mundo caótico, no qual defrontamos inimigos cuja face nos é ocultada, que mata quem quer e sem querer saber quem mata e, mais importante que tudo, com uma motivação e capacidade de intercomunicação inigualáveis.
Talvez Guantánamo, os processos de incriminação ad hoc e a tortura sejam ineficazes e prejuduciais à Guerra ao Terrorismo. Aliás revejo-me na opinião daqueles que afirmam que se aprendermos alguma coisa com o nosso "inimigo", nomeadamente a sua coesão entre pequenas células e a simplicidade com que circula a informação e flui a comunicação no seu seio, teremos melhores possibilidades de o combater e controlar.
No entanto, o que me desgosta em muitos argumentos, fora do âmbito deste blog, é o isolamento de Guantánamo do contexto em que ele surgiu. Como mera arma de arremesso a favor de um antiamericanismo próprio de quem anos e anos ajudou a erguer Guantánamos.

Anónimo disse...

Eu só não compreendo por que motivo não aproveita o JLP o ensejo deste post para dar mais porrada no Movimento Liberal Social, que tem um dirigente como o Filipe Melo Sousa. Não vê o JLP que isto é uma ocasião, praticamente ímpar, para pôr ali nas etiquetas do post "MLS"?

Luís Lavoura

Filipe Melo Sousa disse...

Sempre que se fala da política externa americana, os posts do JLP são na verdade mais parecidos com os posts do MLS do que com os meus.