2007/12/10

Liberdade de expressão

O artigo do Ricardo mais abaixo é curto, mas apesar de o ser é incisivo (como se pode ver pela discussão que originou) em esquematizar a perspectiva liberal em relação à liberdade de expressão, entendida como deve ser (na perspectiva que considero ser a do Liberalismo) de forma absoluta, facto que sistematicamente origina muita confusão em muita gente.

O facto de a liberdade de expressão dever ser absoluta, não implica que seja um direito positivo absoluto, nem que pela sua classificação de "absoluta" se sobreponha a tudo o resto. A perspectiva liberal, no meu entendimento, é a de que a liberdade de expressão, como corolário óbvio da liberdade de pensamento, existe como liberdade negativa em coabitação com outras liberdade negativas entendidas também como absolutas, sendo todas elas dignas de protecção contra a coerção e contra a sua limitação.

E é aí que entra a Lei e a Justiça. De um ponto de vista liberal não como mecanismo de limitação das liberdades negativas, de definição do que é ou não "razoável" ou "permitido", mas sim estabelecendo critérios de arbitragem quando existir um choque entre liberdades absolutas negativas, ou de punição criminal quando o exercício de uma liberdade extravasar os seus limites negativos. Algo tão simples como isso.

Para além disso há outro ponto que deveria ser deixado claro. O meu entendimento do que deve ser um direito penal liberal não deverá ser voltado para a punição "preventiva", ou para a punição de comportamentos em função de uma presunção das consequências que deles possam advir. Deve punir sim actos concretos e não processos de intenção, "apelos" ou "incitamentos". Os crimes devem ser actos concretos (que incluam naturalmente a participação material ou a cumplicidade), e não juízos de probabilidade, que acabam essencialmente em redundar em considerações de desresponsabilização pessoal dos destinatários desses actos.

Enquanto a liberdade de expressão for entendida como um exercício do que é permitido, do "bom senso" e do "não passar das marcas", e não como algo que faz sentido somente para proteger aquilo que ultrapassa esses juízos subjectivos, o que é extremo e desagradável de ouvir, não se vai (querer) compreender aquela que deve ser a sua verdadeira natureza.

10 comentários:

Anónimo disse...

JLP, a "Lei e a Justiça" de que fala é, nem mais nem menos, do que a "coação" do Estado, que tão diabolizada é pelos liberais. Não estamos exactamente a falar de reuniões de terapia arbitral. O Estado diz-lhe quais são as formas de expressão permitidas e proibidas. Era simplesmente isto que eu queria dizer. O resto, vai-me desculpar, é novilingua homeopática ;).

Quanto à teoria dos actos concretos versus processos de intenção ou actos de incitamento, tendo até a concordar consigo. Mas temos que ser precisos nisto e ter em conta que há aqui zonas de fronteira. Assim, é-me permitido, ou não, dizer que "aquele indivíduo deve ser morto" ou "matem aquele indivíduo"? Repito que temos que ser precisos nos conceitos e sabermos do que estamos a falar.

Continuo a dizer que a Liberdade de Expressão não é verdadeiramente absoluta, nem em acto nem em potência(seria até estranho que fosse)

R. Faria

Ricardo G. Francisco disse...

JLP,

Sem espinhas...

JLP disse...

"JLP, a "Lei e a Justiça" de que fala é, nem mais nem menos, do que a "coação" do Estado, que tão diabolizada é pelos liberais."

Contrariamente ao que parece pensar, os liberais não são anarcas...

"O Estado diz-lhe quais são as formas de expressão permitidas e proibidas."

A questão é que a ponte que faz em entre a sua afirmação anterior e esta é ilegítima.

Num estado liberal, a Lei e a Justiça não são da plena iniciativa do estado, nem é ao estado que cabe definir o que é "permitido" ou "proibido".

Essa iniciativa é antes balizada por um mandato constitucional que é conferido pelos indivíduos ao estado, onde estão estabelecidas, entre outras coisas, essas liberdades absolutas e quais são os termos da coerção que é aceite para lidar com as suas violações.

A iniciativa do estado deve-se limitar em seguida, no fundo, à regulamentação das situações de conflito entre essas liberdades, criando os mecanismos legais (reforce-se, subjugados ao referido mandato constitucional) e aplicando os mecanismos de coerção que não são dele, mas sim que foram constitucionalmente delegados pelos indivíduos sobre ele.

"Assim, é-me permitido, ou não, dizer que "aquele indivíduo deve ser morto" ou "matem aquele indivíduo"?"

Deve ser permitido. Ninguém morre pelo facto de isso ser afirmado. Morre sim quando alguém decidir que o mata (e agir em conformidade).

Já oferecer uma recompensa pela sua morte ou o homicídio propriamente dito devem ser sancionados.

"Continuo a dizer que a Liberdade de Expressão não é verdadeiramente absoluta, nem em acto nem em potência(seria até estranho que fosse)"

Sabe como é: primeiro estranha-se...

Anónimo disse...

"Assim, é-me permitido, ou não, dizer que "aquele indivíduo deve ser morto" ou "matem aquele indivíduo"?"

"Deve ser permitido. Ninguém morre pelo facto de isso ser afirmado. Morre sim quando alguém decidir que o mata (e agir em conformidade)."

De onde se conclui que o Bin Laden não deve ser punido.

Quanto ao resto, é claro que o estado de que falo tem uma estrutura e um mandato definido constitucionalmente. Espero que não tenha inferido das minhas palavras outra coisa. Mas tenha em atenção que a conformação constitucional do estado (assim como os mecanismo de coerção) é feita pela maioria... não é exactamente você, jlp, que redige o mandato... E é por isso mesmo, jlp, que eu digo que a liberdade de expressão, ou qualquer outra liberdade, não é absoluta. É o que a maioria quer que seja, e a maioria nunca confere direitos absolutos a ninguém.

R. Faria

JLP disse...

"De onde se conclui que o Bin Laden não deve ser punido."

Por declarações não. Mas deverá sê-lo se se provar a sua participação financeira e/ou logística na orquestração dos atentados já realizados.

"Mas tenha em atenção que a conformação constitucional do estado (assim como os mecanismo de coerção) é feita pela maioria..."

A questão é que eu estou a falar num estado liberal, não numa qualquer "democracia constitucional". Num estado liberal essa constituição não é legítima tão somente por ser aprovada por uma maioria simples (ou mesmo qualificada, no seu entendimento vulgar).

"É o que a maioria quer que seja, e a maioria nunca confere direitos absolutos a ninguém."

Então, deixará de se estar a falar num estado liberal, que era o que eu pretendia descrever.

Anónimo disse...

Jlp, o bin laden anda a ser caçado (e muito bem), não por “participação financeira e/ou logistica”, muito menos por autoria material, mas pelo incitamento ao crime, incitamento que você diz que não deve ser punido. As coisas não são assim tão simples.

Não sei bem o que entende o jlp por “estado liberal”. Qual é então a forma de legitimaçao de uma constituição no tal "estado liberal"? Como se organizam os “individuos”, de que falou anteriormente, para legitimar a constituição? Se não é através da maioria, é como? Note que alguém alguma vez disse que a democracia (a democracia como a entendemos todos, a da “ditadura” da maioria ;)) é o pior sistema com excepção de todos os outros… Pegunto: o que tem para oferecer em vez do nosso actual sistema? E não basta enunciar os princípios, é essencial que estabeleça os mecanismos.

R. Faria

JLP disse...

"mas pelo incitamento ao crime, incitamento que você diz que não deve ser punido"

Digo e mantenho. O R. Faria diga-me que mal vem ao mundo se alguém "incitar ao crime" e se esse crime nunca existir, como acontece com a grande maioria das situações (independentemente desse facto não servir para justificar nada numa discussão que deve ser de princípio). Vai passar a punir "intenções"? Crimes "mentais"?

Quem pratica crimes é quem prime o gatilho. É ele que faz a valoração dos riscos e das vantagens que vê, da pena a que se sujeita, e quem tem a única decisão com consequências objectivas na liberdade negativa da vítima.

"Não sei bem o que entende o jlp por “estado liberal”. Qual é então a forma de legitimaçao de uma constituição no tal "estado liberal"?"

A definição desse mecanismo legitimador não é consensual entre os liberais, havendo várias teorias em relação a ela, essencialmente umas mais baseadas no direito natural e outra mais contractualistas/constructivistas.

Pessoalmente inclino-me mais para o segundo caso, e concretamente para a Teoria da Escolha Pública.

http://en.wikipedia.org/wiki/Public_choice_theory

Concretamente, um mecanismo de ratificação dessa constituição (bem com a generalidade das medidas legislativas e de gestão de fundo posteriores) não seria baseado numa mera maioria simples ou qualificada de 2/3, mas apontar para uma unanimidade ou quase-unanimidade.

Somente uma última ressalva: mesmo que sejam adoptados mecanismos liberais de evolução legislativa e de estabelecimento de constituições, tal não equivale, necessariamente, a que o estado tenha uma matriz liberal. Ou seja, esses mecanismos são uma condição necessária e não suficiente.

Anónimo disse...

“Quem pratica crimes é quem prime o gatilho.”

Tudo bem, jlp, desde que tenha consciência de que a adopção deste conceito jurídico (revolucionário, diga-se) levaria obrigatoriamente à absolvição do Bin Laden, assim como de um grande número de outros que agora, no nosso sistema jurídico comum ocidental, são considerados criminosos (terroristas ou criminosos comuns)

E não falei de “intenções”, falei de “incitamento”, coisas diferentes. Mas até a intenção de matar deve ser punida. E de facto é punida, no nosso sistema jurídico. E ainda bem, digo eu.

Quanto à teoria do Public Choice, não acredito simplesmente na sua efectivação. É confiar demasiado na racionalidade da acção humana, e eu não sou assim tão ingénuo. Escolhas baseadas na unanimidade, então, vai-me o jlp desculpar, mas parece-me deliciosamente utópico. Já agora, tenho assinalado que neste campo os liberais conseguem ter do Homem uma visão extremamente romantizada, muito mais do que a esquerda, o que é uma coisa curiosa. Enfim, acredito quando vir. E acredite, caro jlp, que acho esse mecanismo óptimo.

R. Faria

JLP disse...

"Tudo bem, jlp, desde que tenha consciência de que a adopção deste conceito jurídico (revolucionário, diga-se) levaria obrigatoriamente à absolvição do Bin Laden, assim como de um grande número de outros que agora, no nosso sistema jurídico comum ocidental, são considerados criminosos (terroristas ou criminosos comuns)"

E? Se calhar, essas pessoas é que são abusivamente qualificadas de "terroristas" ou "criminosos comuns".

Além de que, concretamente no caso do Bin Laden consta que o seu financiamento efectivo dos atentados está mais do que provado.

"E não falei de “intenções”, falei de “incitamento”, coisas diferentes. Mas até a intenção de matar deve ser punida."

Depende um pouco do que quer dizer com "intenção de matar". Mas entendida na perspectiva de "intenção de matar pelas suas próprias mãos e agindo em conformidade, não acho que se possa ler de nada do que escrevi que não deva ser penalizada.

Eu não disse que só se devia penalizar a morte efectiva. A tentativa, mesmo que falhada ("o tiro falhou") não inviabiliza que tenha sido essa pessoa a apertar o gatilho com uma determinada intenção objectiva.

O que eu disse foi que só deve ser penalizado quem primiu o gatilho e/ou quem contribui materialmente para o facto.

"Já agora, tenho assinalado que neste campo os liberais conseguem ter do Homem uma visão extremamente romantizada, muito mais do que a esquerda, o que é uma coisa curiosa."

Acho que essa análise, que efectivamente é frequente, está errada. Pelo menos posso falar por mim. Eu sou muito pouco crente na bondade humana, e não defendo o que defendo confiante numa harmonia "la-la-land" de irmandade de homens. Antes pelo contrário. Sou até muito descrente e crítico da suposta superioridade moral humana.

Acho que, exactamente pelo motivo contrário, pelas desconfianças mútuas e pela relutância em fazer concessões que é quanto a mim intrínseca ao ser humano, só um mecanismo de unanimidade é que garante a dificuldade de se estabelecerem mecanismos predatórios, mais ou menos disfarçados de "democracia".

Não sou nada utópico, porque aliás tenho a perfeita noção da dificuldade de obtenção de decisões de unanimidade ou quase-unanimidade, e de quão poucas seriam.

A questão é que eu vejo isso como sendo positivo.

Anónimo disse...

“O que eu disse foi que só deve ser penalizado quem primiu o gatilho e/ou quem contribui materialmente para o facto.”

Ainda voltando ao Bin Laden, olhe que a principal e decisiva razão da sua condenação é o incentivo ao crime, não o seu financiamento, volto a salientar. Basta ele abrir a boca e apelar à morte, que alguém em alguma parte do mundo, não necessariamente ligado à estrutura da Al Qaeda, nem paga pelo bolso do Bin Laden (alias, a Al Qaeda até tem uma estrutura horizontal, como já se provou) vai com toda a probabilidade matar. Não é necessário o Bin Laden financiar. Isso é simplesmente o incitamento ao crime. E pergunto-lhe, se não estivesse provado que ele financiava o terrorismo, você não o condenaria? Olhe que muitos dos autores morais do terrorismo (sim, os que incitam…) nem são asim tão ricos. E a mesma lógica vale para a criminalidade comum, como é claro. Se alguém diz "vai e mata", ainda que não financie e não tenha ascendente hierárquico sobre o executante, essa pessoa deve ser condenada.


Quanto à unanimidade das decisões, ó jlp, vai-me desculpar, mas isso nem sequer é fácil em reuniões de condomónio de um prédio de três andares, meu caro, quanto mais numa comunidade cultural e social complexa com decisões com muitas variáveis. A mim até me parece, vai-me desculpar, que essa teoria da public choice, exigente e virtuosa como ela é, apenas funcionaria numa comunidade quaker ou amish, e ainda assim…. Eu acho que isso é da mesma natureza da teoria da circulação rodoviária sem sinais.

Mas eu volto a dizer-lhe que tenho também muita simpatia por essa solução. O mundo seria muito mais simples se isso fosse possível, isso parece-me evidente.

R. Faria