2007/07/27

Confusões

O João Miranda e o Carlos revelam alguma confusão. É perfeitamente indiferente que a realização de abortos no SNS não tenha sido referendada. O que está em causa é a recusa de aplicação de uma lei geral da República que vale para todo o território nacional, incluíndo a Madeira. Como esta lei não ofende minimamente a distribuição de competências legislativas estatuída na Constituição, não há nenhuma inconstitucionalidade que justifique a sua não aplicação. Alberto João Jardim tem tanta legitimidade para recusar a sua aplicação como Valentim Loureiro, enquanto autarca, teria para recusar a realização de abortos no hospital de Gondomar. Mais: o referendo só legalizou o aborto; a decisão de permiti-lo gratuitamente no SNS foi tomada no exercício do poder legislativo pelo parlamento, como se se tratasse de uma qualquer outra matéria. Não havia razão nenhuma para submetê-la também a referendo, por muito que me desgoste o facto de o aborto ser pago pelos contribuintes. Pena que ninguém se tenha preocupado em evitar este desfecho no período pós-referendo.

17 comentários:

Pedro disse...

Perdoe-me a intromissão, mas já que o desgosta o facto de "o aborto ser pago pelos contribuintes", não o desgosta também o facto de o Governo e outros intervenientes pelo Sim terem sido omissos e mesmo mentirosos durante o referendo quanto ao papel do SNS no aborto a pedido?
A pergunta referendava a despenalização e legalização respectiva em instituições legalizadas para o efeito. Estas incluem também espaços de saúde pública, sim. Contudo sempre nos foi garantido que o serviço públicod e saúde não iria ser afectado. Logo, se os serviços públicos na Madeira não têm alegadamente condições para a prática de tais actos, o presidente do governo regional, aparte sua má vontade para com a causa em questão, não estará a cumprir a sua obrigação evitando um mal menor?

Pedro disse...

Perdão. Onde se lê "mal menor" deve ler-se "mal maior". :))

Anónimo disse...

Caro Pedro,

Fui a favor da legalização do aborto e fiz campanha pelo "sim". Sempre fui contra a subsidiarização do aborto e também o disse na altura várias vezes. Como só respondo pelo que penso e escrevo, não tenho que sentir nada em relação ao que outros pensam e escrevem.

Quanto ao resto:

1) O referendo não era sobre a realização de abortos gratuitos no SNS, era sobre a descriminalização do aborto.

2) Muita gente acreditava que o PS iria aprovar uma lei que tornaria o aborto gratuito, desde que feito no SNS. A ideia era pública e foi discutida; os eleitores tomaram-na em consideração quando votaram no referendo.

3) Quanto à ideia de que a Madeira não tem condições, parece-me pouco plausível. Trata-se da segunda região mais rica do país. Mas também acho que devem ser os médicos a decidir as prioridades. Nem o governo nacional, nem o governo regional devem poder decidir que problemas de saúde é que devem ser atendidos com prioridade.

JoaoMiranda disse...

««É perfeitamente indiferente que a realização de abortos no SNS não tenha sido referendada. »»

Tenho a impressão que foi isso que eu disse. É perfeitamente indiferente, logo o referendo não pode ser usado para argumentar contra as decisões do Alberto João.

Quanto à validade das leis da República em todo o território nacional, é um assunto para os tribunais. Até ao momento ainda não vi nenhum argumento que sustente a ideia de que todas as leis da República são válidas. Umas são inconstitucionais, outras são incompatíveis com o estatuto da autonomia, outras são pura e simplesmente impraticáveis. Logo, o que o José Barros tem que demonstrar é que esta lei:

1. é constitucional

2. é compatível com o estatuto autonómico

3. É praticavel.

Duvido que consiga provaro ponto 2 por causa daquele artigo 12 que eu cito no Blasfémias.

Quanto à comparação com Gondomar há duas pequenas diferenças que se podem revelar relevantes:

1. Gondomar não tem estatuto autonómico

2. o hospital do Gondmar (?) não pertence a um serviço regional.

No entanto, aposto que as leis relativas às finanças locais impedem a criação de obrigações financeiras às autarquias pelo Estado central. E se não impedem deviam impedir. O estado central não deve poder criar obrigações financeiras a entidades que não as aceitem voluntariamente.

Carlos Guimarães Pinto disse...

Zé, estou em linha com o comentario do JM. Acrescentaria ainda um ponto: nem todas as intervenções cirúrgicas realizadas no SNS no continente estão disponíveis na Madeira. Penso que toda a polémica é ainda consequência da sectarização que o referendo trouxe. Porventura, se AJJ tivesse dito que não subsidiava operações de alinhamento do baço nos hospitais da Madeira, ninguém teria reagido.

Carlos Guimarães Pinto disse...

Outro ponto interessante nesta situação é que a Madeira acaba por ser o único local no país em que a lei do aborto é aplicada como os "liberais pelo sim" queriam: não é crime mas também não é subsidiado. Quanto a mim, o melhor dos dois mundos.

Mentat disse...

"...a decisão de permiti-lo gratuitamente no SNS foi tomada no exercício do poder legislativo pelo parlamento, como se se tratasse de uma qualquer outra matéria."

Mas não é por isso que a ARM considera que devia ter sido consultada e portanto duvida da constiticionalidade da lei ?
Isso não lhe dá direitos suspensivos ?
.

Anónimo disse...

Caro JM,

1) Parece-me que está a inverter por completo a lógica. Depois de aprovada uma lei é quem alega a sua inconstitucionalidade ou ilegalidade que a tem de provar. Ora, tanto quanto sei, o JM não provou que a lei fosse inconstitucional ou ilegal, muito pelo contrário. Boa sorte a tentar prová-lo.

2) É perfeitamente indiferente para o caso o estatuto autonómico da Madeira, uma vez que se trata de uma lei geral da República que, enquanto tal, se aplica a todo o território nacional. Daí que a comparação com Gondomar faça todo o sentido. O facto de os serviços serem regionais também não aquece, nem arrefece, porque, mais uma vez, eles estão adstritos ao cumprimento das leis da República da mesma forma que quaisquer outros serviços.

Caro Carlos,

É indiferente também que eu e outras pessoas do "sim" sejam contra a subsidiarização do aborto. Não é isso que justifica o não cumprimento da lei. Se formos por aí, ninguém paga impostos...

Anónimo disse...

Mas não é por isso que a ARM considera que devia ter sido consultada e portanto duvida da constiticionalidade da lei ?
Isso não lhe dá direitos suspensivos ? - Mentat

Ninguém pode suspender a aplicação de uma lei só porque lhe apetece ou porque tem dúvidas da sua legalidade. O que o governo madeirense tem de fazer é ir a tribunal provar que a lei é ilegal ou inconstitucional. Se tiver razão, então sim, deixa de aplicar a lei.

JoaoMiranda disse...

««2) É perfeitamente indiferente para o caso o estatuto autonómico da Madeira, uma vez que se trata de uma lei geral da República que, enquanto tal, se aplica a todo o território nacional.»»

O estatuto autonómico da Madeira é uma lei da República, não? Deve-se ou não se deve cumprir as leis da República? Só algumas?

JoaoMiranda disse...

««1) Parece-me que está a inverter por completo a lógica. Depois de aprovada uma lei é quem alega a sua inconstitucionalidade ou ilegalidade que a tem de provar.»»

Ninguém é obrigado cumprir leis inconstitucionais. As leis inconstitucionais são nulas. Para além de que se eu me recusar a cumprir uma lei quem tem que provar a constitucionalidade da lei não sou eu. Isso seria inverter o ónus da prova. Eu posso recorrer até que o tribunal constitucional se pronuncie sobre a constitucionalidade da lei. E, se eu acho que uma lei é inconstitucional a minha melhor estratégia não é ir para tribunal provar que a lei é inconstitucional (até porque eu, enaquanto cidadão individual, não posso fazer isso). É não cumprir a lei, esperar que alguém me processe e depois sim defender-me alegando inconstitucionalidade. O mais provável é se a lei for mesmo incontitucional ninguém me processe.

Vamos ver os mecanismos legais que vão ser usados contra o Jardim. Para já o Ministério Público diz que o assunto é político.

JoaoMiranda disse...

««Ninguém pode suspender a aplicação de uma lei só porque lhe apetece ou porque tem dúvidas da sua legalidade. O que o governo madeirense tem de fazer é ir a tribunal provar que a lei é ilegal ou inconstitucional. Se tiver razão, então sim, deixa de aplicar a lei.»»

Parece que a RAM seguiu outra estratégia: não aplica a lei e está à espera que alguém vá para tribunal. Não pode fazer isso? O certo é que fez. E agora?

Mentat disse...

"Parece que a RAM seguiu outra estratégia: não aplica a lei e está à espera que alguém vá para tribunal. Não pode fazer isso? O certo é que fez. E agora?"


Faz-se como no caso dos touros de morte em Barrancos, manda-se para lá a GNR e pronto, prende-se toda a gente ...
:)

Anónimo disse...

.»»

O estatuto autonómico da Madeira é uma lei da República, não? Deve-se ou não se deve cumprir as leis da República? Só algumas?

Quem me diz que o art.131º do Código Penal não é ilegal? Posso então matar as pessoas que me apetecer, porque tenho dúvidas sobre a legalidade ou constitucionalidade das normas do Código Penal?:) Continue o disparate, porque é divertido.

Anónimo disse...

É não cumprir a lei, esperar que alguém me processe e depois sim defender-me alegando inconstitucionalidade. O mais provável é se a lei for mesmo incontitucional ninguém me processe. - JM

O que está a dizer é verdade, no sistema constitucional português, quanto ao cidadão comum. Não menosprezando a via indirecta através do Provedor de Justiça que também seria possível tentar.

Já não é verdade quanto ao governo regional da Madeira que pode perfeitamente contestar a constitucionalidade da lei do aborto em tribunal. Tem legitimidade processual activa para o fazer.

JoaoMiranda disse...

««
Quem me diz que o art.131º do Código Penal não é ilegal? Posso então matar as pessoas que me apetecer, porque tenho dúvidas sobre a legalidade ou constitucionalidade das normas do Código Penal?:)»»

O art.131º do Código Penal é lei penal. Aplica-se a quem comete um acto ilegítimo. Conhece alguma lei que contrarie o artigo 131?

A lei do aborto é lei administrativa. Cria uma obrigação que está em contradição com outras leis da República. Qual das leis da Republica é que o José Barros propõe que se cumpra, a lei da autonomia que proíbe a passagem de competências sem passagem de financiamento ou a lei do aborto que obriga a novas competências sem providenciar o financiamento? Não sei se reparou que a lei da autonomia é uma lei para-constituional que tem que prevalecer sobre a lei geral.

JoaoMiranda disse...

««Já não é verdade quanto ao governo regional da Madeira que pode perfeitamente contestar a constitucionalidade da lei do aborto em tribunal. Tem legitimidade processual activa para o fazer.»»

Pois tem. Mas também tem uma solução mais conveniente. O governo da Madeira não precisa de contestar a constitucionalidade da lei. O governo da Madeira tem pode de facto para não aplicar a lei até que alguém recorra aos tribunais.