Trabalho
Escreve o "nosso" José Barros, lá mais por baixo nos comentários:
Como deviam ser as leis de trabalho? Enquanto a reforma não fosse dada, devia ser possível despedir um trabalhador doente (com leucemia), em razão do facto de, em virtude da doença, já não ser produtivo? Se se responder "sim", a questão levantar-se-ia também. Isto porque, ao que parece, a senhora foi dar aulas, porque não podia perder o vencimento. Claro que um empregador pode sempre passar a batata quente para a CGA, dizendo que não tem de arcar com os problemas da senhora, sendo essa uma tarefa da CGA; pelo que pode despedir o trabalhador que falte em razão de doença. Ainda assim, também quanto ao empregador surgem questões de "moralidade": despedir uma pessoa doente que precisa do dinheiro antes de obter a reforma não é propriamente bonito. Para que não fosse despedida,a senhora teria de ir para o trabalho à viva força nem que para isso tivesse de passar pelo que, infelizmente, passou nesta situação. A solução é ter um seguro que cubra situações destas, mas quem é que tem?É perfeitamente natural, e além do mais (quanto a mim) defensável, que os empregadores optem por "passar as batatas quentes" levantadas por questões de doença e sociais para a CGA, e mais genericamente para o estado. Afinal, foi esse estado que escolheu esse modelo.
Quando o estado estabelece a obrigatoriedade dos descontos para a segurança social, correlacionando essa obrigatoriedade com a existência de uma relação laboral, e mais ainda quando obriga também as próprias empresas a descontarem para essa segurança social, é perfeitamente natural que se depreenda que findam desse modo quaisquer eventuais "responsabilidade sociais" das empresas em relação aos seus trabalhadores. É perfeitamente natural que a relação empregador-empregado que emerge dessa imposição seja vocacionada tão somente na vontade de o empregador continuar com essa relação enquanto esta for proveitosa em termos de lhe ver satisfeita a função para a qual o havia contratado em primeiro lugar.
Vê-se hoje em dia as consequências dessas opções, e da vontade do estado em ser o monopolista do fornecimento do serviço e de decretar coercivamente os pressupostos das relações laborais: temos empregados que se impõem coercivamente aos patrões, com os quais já não têm nada de objectivo em comum, e que se arrastam por empresas em guerrilhas laborais. A isto, acrescenta-se um estado que, sufocado pelas obrigações e direitos que o próprio impões e estabeleceu, rabeia e se furta a cumprir com essas obrigações, muitas vezes recorrendo a preceitos pouco próprios de um Estado de Direito e de mera boa-fé.
Qual é, para mim, a alternativa liberal a este problema? A de que, de uma vez por todas, se compreenda que um contrato de trabalho só faz sentido enquanto e nos termos em que agradar às duas partes. Que são as partes interessadas (patrão e empregado) que devem ter a liberdade de estabelecer as regras a que se comprometem, que até poderão passar por regalias vistas como de cariz social ou que contribuam para minimizar o risco da sua relação laboral. Que cada um deve acautelar à sua maneira, com a sua propensão ou aversão ao risco, o seu futuro, compreendendo o risco de ser despedido e/ou de se encontrar numa situação de saúde complicada. Que o estado possa eventualmente providenciar esse serviço, mas de forma facultativa e sendo somente alimentado por contribuições do beneficiário directo dessa protecção (o empregado, a menos que persista vontade do contrário), e que os compromissos sejam somente os alimentados por essas contribuições.
Que, em última instância, qualquer que seja o lugar e o historial de cada pessoa na sociedade, o estado se encarregue de lhe assegurar a sua vida, quando alguém se veja exposto a uma situação de saúde que a ameace directamente.
De maneira fria e desapaixonada, como alguém "pedia" nos comentários do referido artigo (e abstraindo do facto de, nesse caso em concreto o estado também ser patrão), quem contrata alguém, fá-lo para cumprir com uma determinada função. Se alguém, vitima do infortúnio, se vê (mesmo que involuntariamente) numa situação em que não pode cumprir com essa função, terá o seu empregador todo o direito, se o entender, de o despedir (e também, naturalmente, de incorrer em toda a sanção social eventual pelo facto). Naturalmente ambas as partes, patrão e empregado, deverão poder se acharem por bem, e no usufruto da sua liberdade contratual, definir entre si obrigações adicionais.
Assim como o patrão não tem nenhuma palavra em relação à maneira como os seus empregados vivem a sua vida e acautelam o seu futuro, também não poderá ser chamado a sustentar uma relação que contraria os seus interesses e da qual não tem a mínima responsabilidade.
Tudo isto não inviabiliza que, caso a sociedade assim o decida, possam existir mecanismos (totalmente independentes da relação laboral), que assegurem no limite a vida e a liberdade de cada um, caso se encontrem expostos a uma situação em que estas se encontram gravemente ameaçados.
13 comentários:
Caro João,
Parece-me que não respondeste exactamente à hipótese que lancei. A questão é a de saber o seguinte: se a senhora não pode ficar um mês sem vencimento e, por outro lado, não pode ir trabalhar porque tem leucemia, que solução dar ao problema? Supôe-se que o Estado ainda não analisou o problema, porque o processo de reforma leva semanas ou meses. Numa sociedade liberal não haveria segurança social (pelo menos, tal como a conhecemos), pelo que o problema não se colocaria face ao Estado, mas face a um companhia seguradora. E se achas que as seguradoras pagam sempre...:)
Aliás, as seguradoras são as responsáveis pelas maiores demoras na Justiça, na medida em que não se importam de arrastar os conflitos durante dezenas de anos. Só uma safety net resolveria o problema (este e outros análogos), mas sabe-se a discussão que há em torno disso entre os liberais.
Quanto aos contratos de trabalho terei de escrever um post polpotiano sobre o assunto. Essa ideia de que o poder negocial é o mesmo é uma das ideias falsas em que assenta o discurso liberal sobre a matéria. Melhor seria dizer que apesar de não haver igualdade em termos negociais o intervencionismo seria pior. Sempre é mais honesto e conforme à realidade.
Mas também acho que não deve ser o empregador a arcar com o prejuízo neste caso; terá de ser o Estado - os contribuintes - a sofrê-lo, posto que, passados anos, possa ser reembolsado pelas seguradoras.
Um abraço,
Mas também acho que não deve ser o empregador a arcar com o prejuízo neste caso; terá de ser o Estado - os contribuintes - a sofrê-lo, posto que, passados anos, possa ser reembolsado pelas seguradoras.
- Eu
Note-se: nesta hipótese também seriam necessárias juntas médicas e também se correria o risco de a mulher não obter o subsídio estatal pelo facto de a junta não a considerar doente. É por isso que o assunto dá um bom caso prático: não é líquido que se pudesse dispensar um papel social do Estado nesta questão.
"A questão é a de saber o seguinte: se a senhora não pode ficar um mês sem vencimento e, por outro lado, não pode ir trabalhar porque tem leucemia, que solução dar ao problema?"
Falando conceptualmente, e não havendo disposição anterior em contrário:
- Porque é que a senhora "não pode ficar um mês sem vencimento"?
- O estado deveria limitar-se a tratar (na medida do possível) a leucemia (como doença que ameaça a vida), e a providenciar as eventuais necessidades alimentares, de abrigo e salubridade mínimas da senhora, se isso fosse sua vontade. O resto, deveria ter sido acautelado como inerente a um risco admissível por esta.
- O estado não deve, absolutamente, ser um mecanismo de garante de rendimentos, para lá de uma eventual mera questão puramente contributiva.
"Aliás, as seguradoras são as responsáveis pelas maiores demoras na Justiça, na medida em que não se importam de arrastar os conflitos durante dezenas de anos."
Os riscos dos tomadores dos seguros em termos da sua relação com esta também devem ser um factor ponderado por estes. Afinal, podem sempre ponderar a possibilidade de gerirem eles próprios um fundo para as contingências e/ou despesas futuras.
"Quanto aos contratos de trabalho terei de escrever um post polpotiano sobre o assunto."
Venha ele!
"Essa ideia de que o poder negocial é o mesmo é uma das ideias falsas em que assenta o discurso liberal sobre a matéria."
Será? Ou a tua perspectiva não estará irremediavelmente ferida de sectarismo? :-)
Abraço!
Quanto ao poder negocial: fui a 10 entrevistas para estágio nos últimos 3 meses. Só numa delas é que me referiram o vencimento que iria auferir se fosse contratado. Quanto às outras, nem eu, nem os meus colegas perguntámos pelo simples facto de tal ser mal interpretado pelos advogados que conduziam as entrevistas. Dois colegas meus contaram-me que tinham perguntado e que receberam um olhar de esguelha. Não foram seleccionados nessas entrevistas, não sei se por isso, se por outra razão.:)
É um poder negocial enorme este que nem sequer permite que o candidato pergunte quanto vai auferir. Se quiserem fechar os olhos à realidade, tudo bem. Não me venham é dizer que "não é assim".:)
O que se pode defender e é mais realista é a argumentação tradicional: o mercado funciona mal, mas o Estado ainda funciona pior. Se os custos do intervencionismo superarem, de facto, os custos das assimetrias de poder existentes na relação laboral, então justifica-se não restringir o poder de imposição do empregador. Mas o assunto não tem nada a ver com uma suposta liberdade contratual beatífica que seria sempre igual para ambas as partes. Não é nesta situação e não é noutras.:)
Quanto ao resto, estamos de acordo. A excepção disto:
- é sempre possível as pessoas tomarem medidas de precaução em cima de outras medidas de precaução já tomadas. A questão é que muitas vezes não será racional fazê-lo. Especialmente, para quem ganhe pouco dinheiro. Precisamente por isso parece-me que será sempre necessária uma safety net.
Zé, todos têm poder negocial. Pode é ser maior ou menor. Uma prova que os trabalhadores têm poder negocial é que são muito poucos aqueles que recebem salário mínimo. Porque é que isto acontece? Se o patronato tem todo o poder negocial, porque não pagam o salário mínimo a todos os trabalhadores? Porque eles têm algum poder negocial.
Se tu e os teus colegas têm que se sujeitar a más condições de estágio, e nem sequer podem perguntar o salário a auferir, é porque nessa área específica a oferta de estagiários é muito superior à procura o que confere grande poder negocial a quem contrata. Daqui a 10 anos, aqueles que tiverem sucesso, certamente já poderão perguntar o salário numa entrevista, e de certeza que irão receber bem mais que o salário mínimo.
Quanto ao assunto em causa, numa sociedade em que a SS não fosse obrigatória, as pessoas poderiam utilizar esse montante extra no salário líquido para comprar um seguro. Se a seguradora não pagasse, então concordo que a sociedade deveria intervir, de forma voluntária, não através de uma entidade coerciva. Aliás, a v~er pelo número de pessoas que julgam que deviam ser obrigadas a pagar indemnizações em casos do tipo, não deveriam faltar pessoas dispostas a fazê-lo voluntariamente.
abraço
Caro Carlos,
Quando digo que maior parte dos trabalhadores não tem poder negocial não estou a dizer, como pareces ter entendido, que não tem tal poder "tout court". Significa tão só que as condições sob as quais vão trabalhar estão predispostas à partida, cabendo ao trabalhador apenas o poder de aceitar ou recusar. Sucede o mesmo que acontece nos contratos de adesão (aliás, a utilização de contratos de adesão no domínio laboral é perfeitamente normal).
Começa por não haver igualdade logo pelo facto de o trabalho implicar uma relação de subordinação do trabalhador ao empregador, o que implica que aquele acate as ordens deste. Continua pelo facto de no mercado de trabalho haver normalmente uma desproporção entre oferta e procura; acresce a isto o facto de maior parte dos trabalhadores serem, na perspectiva do empregador, fungíveis, na medida em que, em regra, tanto lhe faz que seja o António ou o Joaquim a atarrachar pregos numa fábrica. O emprego será quase sempre mais valioso para o trabalhador que o trabalho para o empregador. Tal diminui o poder de reivindicação dos trabalhadores e, por isso mesmo, surgiram os sindicatos e as convenções colectivas. Hoje os sindicatos são os fósseis que são, tendendo a sua utilidade para zero. Mas já foram importantes. Dito isto, não percebo que um liberal tenha que defender certos dogmas como o da igualdade de poder negocial. Aliás, tudo próprio admites que tal igualdade de poder negocial surgirá apenas quando os trabalhadores forem pessoas de sucesso: depreende-se que se estiverem no início de carreira ou se forem trabalhadores medianos não o terão.
Para mim, basta que se defenda - e com razão - que, na maioria dos casos, é melhor não haver intervencionismo. Nem a favor do trabalhador, nem a favor do empregador (que também existe).
Abraço,
Zé,
"Quanto ao poder negocial: fui a 10 entrevistas para estágio nos últimos 3 meses. Só numa delas é que me referiram o vencimento que iria auferir se fosse contratado. Quanto às outras, nem eu, nem os meus colegas perguntámos pelo simples facto de tal ser mal interpretado pelos advogados que conduziam as entrevistas. Dois colegas meus contaram-me que tinham perguntado e que receberam um olhar de esguelha. Não foram seleccionados nessas entrevistas, não sei se por isso, se por outra razão.:)
É um poder negocial enorme este que nem sequer permite que o candidato pergunte quanto vai auferir."
Fostes vítima de uma reacção normal do mercado: um mercado onde há excesso de oferta, conjugada com uma distorção introduzida pelo papel cerceador da concorrência da Ordem dos Advogados.
Quando há imensos licenciados em Direito (não estou a dizer que são todos iguais) que, além do facto de serem muitos, são forçados a um estágio que tem que ser supervisionado por colegas "encartados" para poderem exercer e mesmo para poderem ser seus concorrentes em iniciativa individual, cria-se uma fonte que se renova todos os anos de pessoas que se sujeitam ao que tiver que ser para poderem trabalhar.
Pudesse a prestação de serviços jurídicos ser efectivamente livre, sem regras limitadoras absurdas, e haveria um muito maior incentivo à iniciativa individual.
É o normal funcionamento do mercado.
Além disso, não podes esperar que, na generalidade, o poder negocial de um trabalhador indiferenciado, que não se especializa nem tenta adquirir uma mais valia que o valorize, seja o mesmo do empresário que o quer contratar. Há imensos outros na mesma circunstância que se candidatam ao seu lado.
É algo de que ambas as partes estão conscientes, e algo que só depende da vontade do trabalhador mudar.
Além disso, um trabalhador indiferenciado acaba por ter algo que lhe equilibra essa posição negocial: a vantagem de ser uma força de trabalho que se "ajeita" a qualquer trabalho genérico, não estando dependente de uma oferta específica.
Queres contrariar isso? Como?
Mesmo no teu caso: o que achas deveria ser diferente no processo de escrutínio das candidaturas de modo a que ele fosse do teu agrado, ou pelo menos para que o considerasses "mais justo"?
"Precisamente por isso parece-me que será sempre necessária uma safety net."
Como sabes, eu também sou a favor da existência de uma safety net. Mas voltada para a prestação de serviços mínimos "limite" e nunca, repito, nunca para a garantia de rendimentos mínimos, pensões garantidas ou subsídios de desemprego.
Caro João,
Eu não me estou a queixar, bem entendido. Até porque me safei...:)
Chegámos todos à mesma conclusão: ou alguém revela ser um trabalhador extraordinário (um licenciado da FEUP com 18 valores, por exemplo; um doutorando em Harvard ou um Cristiano Ronaldo) ou então tem de aceitar o que for colocado no prato. São essas as regras de mercado e eu nunca discuti isso. A única coisa que discuto é que se diga que o poder negocial do trabalhador e do empregador são iguais. Não são, como é evidente. Não são em trabalho qualificado, quanto mais em trabalho indiferenciado.
No resto, admito a facilitação do despedimento, a livre celebração de contratos a termo, a inserção de cláusulas de mobilidade, etc..
Não aceito cláusulas de resolução sem motivo e nisso, suponho, distingo-me de vocês. Outra coisa que me diferencia: acho que há intervencionismo a mais do Estado, mas não partilho minimamente a ideia de que tal intervencionismo exista só em benefício do trabalhador; pelo contrário, em muitas situações existe para sua desvantagem, porque dá ao empregador poderes que não resultariam de um contrato negociado em pé de igualdade, isto é, numa situação ideal em que um trabalhador tivesse o mesmo poder negocial.
Claro que o facto de o empregador já ter o poder de impôr as cláusulas que quiser torna tais intervencionismos perfeitamente inúteis. O legislador, por exemplo, dá ao empregador o poder de resolver o contrato sem justa causa no período experimental; isto não adianta muito ao empregador, porque, em virtude da assimetria de poder negocial, ele já tem o poder de impôr ao trabalhador cláusulas do género no contrato. O legislador permite ao empregador mudar unilateralmente o horário ou o local de trabalho: isto, na prática, é desnecessário, porque o empregador pode impõr estas cláusulas num contrato não previamente negociado ao qual o trabalhador aporá simplesmente a sua assinatura.
Um abraço,
JLP,
A Empresa pode fornecer mecanismos adicionais de segurança se assim o entender. Isto sem te tirar razão. Uma coisa é clara. O sistema estatal é duplamente desincentivador. Por um lado tira recursos e por outro lado limita a responsabilidade moral da empresa.
JB,
Já viravas as baterias contra o verdadeiro inimigo, a corporação, e, em geral, o corporativismo.
Abraço,
"A Empresa pode fornecer mecanismos adicionais de segurança se assim o entender."
Certo. Era o que eu queria dezer com:
"Naturalmente ambas as partes, patrão e empregado, deverão poder se acharem por bem, e no usufruto da sua liberdade contratual, definir entre si obrigações adicionais."
;-)
Eu queria dizer para além do explicitamente contratado.
Essa é uma das vantagens das pequenas empresas como empregadoras. Embora tenham menos regalias contratadas podem dar mais reglais a hoc. É o mercado a funcionar.
Já viravas as baterias contra o verdadeiro inimigo, a corporação, e, em geral, o corporativismo. - Ricardo Francisco
Caro Ricardo,
Não vejo a política dessa maneira. Rejeito as ideias que considero erradas sejam elas socialistas, conservadoras ou liberais. E escrevo sempre o que me apetece.
Um abraço,
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