2007/06/08

O Stan é bom rapaz, mas não tem razão

Todo o direito é uma composição de interesses contraditórios. O Carlos parece não perceber isso quando diz que seria um desrespeito para com a vítima punir o criminoso com penas maiores ou menores atendendo à gravidade moral do seu ilícito. É óbvio que, se o direito penal quer ser justo, tem de ser justo tanto com a vítima como com o criminoso, o que implica distinguir a gravidade diferente do crime de ódio do skinhead do crime passional do António. Também se poderia dizer que a vítima de furto seria menosprezada pelo facto de o Joaquim, que furta para não passar fome, apanhar uma pena mais pequena que o Bernardo, filho de pais ricos, que furta pelo prazer de furtar. Mas tal seria um absurdo...salta à vista a injustiça de não considerar as duas situações de maneira diferente, responsabilizando de forma diferente o António e o Bernardo.

O princípio da culpa é o princípio liberal por excelência. Dele se retira que uma pessoa não pode ser instrumentalizada para servir os fins da segurança e da paz social por muito que tal ajudasse a satisfazer esses interesses públicos. O que significa que ninguém pode responder criminalmente sem culpa e que a culpa é o limite máximo da sua pena. No caso do marido adúltero é óbvio que os sentimentos de injustiça e de traição provocados pelo adultério da mulher minoram a sua culpa em comparação com a culpa do skin que mata por ódio racial. Querer que ambos respondam na mesma medida pelo simples facto de ambos terem tirado uma vida é querer que o António seja instrumentalizado para satisfazer o desejo de vingança dos familiares da vítima, a paz social ou qualquer outro desígnio; é querer que o António responda para lá da sua culpa, o que só pode ser considerado iliberal. Nessa medida, o que posso dizer dos exemplos do Carlos é que o juiz terá de avaliar a situação concreta e definir a gravidade da culpa dos criminosos. O que não pode é soçobrar no relativismo de considerar que todos os homicídios são iguais.

Continuo a não perceber a desconfiança e o desprezo por considerações morais: todo o direito penal assenta nelas. Quando se pune mais gravemente um homicídio do que um furto está-se implicitamente a reconhecer que a vida ocupa uma posição hierarquicamente superior na escala dos valores morais e jurídicos. Devemos rejeitar esse juízo por ser subjectivista? Seria um disparate tremendo que, obviamente, ninguém subscreverá. Estas distinções morais foram sendo sedimentadas ao longo de séculos. Não vale a pena inventar a roda.

8 comentários:

SMP disse...

Zé, desculpa lá, mas acho que te estás a fazer de novas para levar a água ao teu moinho. Não acredito que não compreendas que as tuas comparações são imperfeitas - mais, tu compreendes muito melhor que são imperfeitas, porque és jurista, do que os demais SBs.

A distinção que pudesse vir a ser introduzida (e que em alguns casos já existe, mas a meu ver mal) entre o crime de ódio e o crime passional era uma distinção a anteriori e feita pelo legislador.

É, portanto, uma coisa muito diferente da outra distinção, a que referes, entre o pobre que furta para comer e o rico que furta por capricho. Essa é feita a posteriori e pelo julgador.

Seria mais ou menos normal que o Carlos e os outros não vissem grande relevância nesta separação de águas, mas para ti ela deveria assumir particular relevância. Quando tu dizes que a culpa é o limite máximo da pena, estás a referir-te a um momento que está a jusante da fixação legislativa do tipo legal de crime e, portanto, da moldura penal. Estás a referir-te a uma aferição que é feita pelo julgador e não pelos nossos prestimosos deputados. Estás a referir-te, portanto, a separar o pobre que furta do rico que furta, não o crime de ódio do crime passional.

Além disso, quando afirmas que «todo o direito penal assenta em considerações morais», podíamos passar aqui o fim-de-semana a discutir semântica, para concluirmos que moral é essa a que te referes.

Pessoalmente, penso que o direito penal deve assentar nesse princípio sumamente liberal que é não admitir a intervenção não consentida na esfera alheia. Ora, vendo as coisas deste modo, o fulcro do ilícito está na privação da vida sem dar cavaco ao vivente. Este núcleo de ilicitude está presente qualquer que seja o motivo do homicídio e, por isso, deve ser ele e unicamente a ele a presidir à tipificação penal. Qualquer aferição de factiores subjectivos (justamente porque são subjectivos e portanto, por definição, casuísticos) deverá ser muito bem justificada e, onde legitimada, deixada ao julgador do caso concreto.

Além disso, em termos substanciais ou se preferires morais (que, disclaimer, não devem presidir à solução do problema) continua a incomodar-me que aches mais justificável o crime motivado por um adultério que o crime motivado por questões religiosas, por exemplo.

JB disse...

Cara Sandra,

1) A distinção moral entre os crimes de ódio e os crimes passionais verifica-se na maioria das leis dos países civilizados e é defendida pela maioria dos penalistas. Viste aqui o Pedro Albergaria, que, tanto quanto sei, é penalista, a defender a mesma distinção com base no facto de o agente que comete o crime de ódio exibir uma perversidade que aquele que comete o crime passional não exibe. Trata-se de uma opinião maioritária e, por isso, a qualificação do crime de homicídio nestes casos não tem levantado polémica.

2) Não há confusão nenhuma entre ilicitude e culpa. No plano da ilicitude e, portanto, também no plano legislativo, os crimes de ódio são moralmente mais desvaliosos que os crimes passionais e, por isso mesmo, o legislador tem de traduzir na lei essa diferença. Fá-lo através da qualificação do crime de homicídio quando motivado pelo ódio racial, religioso ou político. Não é possível, em abstracto, considerar moralmente equivalentes o crime do skin que mata o preto com um bastão de basebol com o crime do marido que encontra a mulher na cama outro homem e a mata. Com isto não se diz obviamente que o crime passional não seja aquilo que é: um crime que deve ser punido. Diz-se apenas que comparando com os crimes de ódio é menos moralmente desvalioso. Porquê? Porque apanhar o namorado ou namorada (ou marido ou mulher) na cama com outro gera uma raiva compreensível e própria mesmo de uma pessoa normal. Não há qualquer justificação do crime, há, isso sim, uma atenuante que merece ser relevada também em sede de ilicitude, isto é, tendo em conta o acto abstractamente considerado.

Dito isto, não sei por que razão trazes à baila a a proibição da "intervenção na esfera alheia". Quem é que nega que o direito penal protege bens jurídicos que, no caso concreto, estão na titularidade da vítima? O que sucede é que uma conduta não é forçosamente ilícita por violar um bem jurídico na titularidade de outrém. Há causas de justificação, como é óbvio. Portanto, a conduta só será ilícita se for moralmente desvaliosa. É sempre isso o que se quer dizer com ilicitude. Mesmo no direito civil é assim.

JB disse...

Só uma adenda:

Referi-me à culpa, porque, na medida em que estão sempre em causa juízos morais de censura da conduta do agente, se justifica falar dela. Simplisticamente, a diferença é que a ilicitude depende de um juízo moral em relação ao acto e a culpa depende de um juízo moral em relação ao agente.
Os actos são diferenciados com base no critério da ilicitude, mas também com base no critério da culpa. No caso da ilicitude, pelo legislador.
O que defendo é que o legislador andou bem ao fazer ao qualificar os homicídios cometidos com ódio racial, religioso e político, porque esses actos, em abstracto, são mais censuráveis que o homicídio vulgar.

SMP disse...

A distinção moral entre os crimes de ódio e os crimes passionais passionais verifica-se na maioria das leis dos países civilizados e é defendida pela maioria dos penalistas. Viste aqui o Pedro Albergaria, que, tanto quanto sei, é penalista, a defender a mesma distinção com base no facto de o agente que comete o crime de ódio exibir uma perversidade que aquele que comete o crime passional não exibe. Trata-se de uma opinião maioritária e, por isso, a qualificação do crime de homicídio nestes casos não tem levantado polémica.

Olha, e eu pensava, como o Carlos, que estávamos aqui para pensar. Esse argumento de recurso à autoridade «maioritária» (aliás a leste do espírito liberal) era suposto convencer-me?

No plano da ilicitude e, portanto, também no plano legislativo, os crimes de ódio são moralmente mais desvaliosos que os crimes passionais e, por isso mesmo, o legislador tem de traduzir na lei essa diferença. Fá-lo através da qualificação do crime de homicídio quando motivado pelo ódio racial, religioso ou político. Não é possível, em abstracto, considerar moralmente equivalentes o crime do skin que mata o preto com um bastão de basebol com o crime do marido que encontra a mulher na cama outro homem e a mata.

Não estás a andar em círculo? Eu digo que o legislador não deve fazer essa distinção; tu dizes que essa distinção existe na sociedade e, como prova disso, apontas-me a circunstância de o legislador a consagrar...

Anónimo disse...

Olha, e eu pensava, como o Carlos, que estávamos aqui para pensar. Esse argumento de recurso à autoridade «maioritária» (aliás a leste do espírito liberal) era suposto convencer-me? - SMP

Não é um argumento de autoridade. É simplesmente a constatação de que a distinção moral entre crimes de ódio e crimes passionais corresponde aos valores da sociedade. É aceite na doutrina como é aceite na sociedade.


Não estás a andar em círculo? Eu digo que o legislador não deve fazer essa distinção; tu dizes que essa distinção existe na sociedade e, como prova disso, apontas-me a circunstância de o legislador a consagrar... - SMP

Não há nenhuma petição de princípio.

Já expliquei por que razão a diferença deve ser feita quando disse isto no comentário anterior:

"Porque apanhar o namorado ou namorada (ou marido ou mulher) na cama com outro gera uma raiva compreensível e própria mesmo de uma pessoa normal. Não há qualquer justificação do crime, há, isso sim, uma atenuante que merece ser relevada também em sede de ilicitude, isto é, tendo em conta o acto abstractamente considerado."

Se não ficou clara a diferença entre uma raiva compreensível (a do marido ou mulher quando traídos) e um ódio injustificável que tem como razão de ser a raça ou a religião de uma pessoa e se não ficou claro que tal tem de se traduzir no plano da valoração abstracta do acto, então nada mais há a discutir.

Anónimo disse...

Adenda:

Nada mais há a discutir, porque não vamos chegar a lado nenhum. Bem entendido. Embora discorde profundamente, respeito todas as opiniões. Concordamos em discordar, porque não temos outro remédio.:)

SMP disse...

:) Lá terá de ser.

Anónimo disse...

Este é assunto nunca me interessou especialmente, mas depois desta vossa interessante conversa, assaltam-me algumas dúvidas:

1 - Não sei se terei entendido mal o texto do Pedro Albergaria, mas não me parece verdade que aquela que ele aponta como a segunda forma de crime de ódio tenha gerado "menos ou mesmo nenhuma polémica". Nos EUA gerou e continua gerar imensa. Aliás, ainda recentemente, há dois ou três meses, o Bush anunciou que vetaria uma lei de "hate crimes" que o senado está a apreciar. Isto não é consenso.

2 - Ou estou muitíssimo equivocado - não creio, mas se for o caso peço desculpas -, ou existe ainda pelo menos um estado americano onde o ódio, mesmo na segunda modalidade, não está de todo criminalizado: o Arizona (nem me parece que venha a ser num futuro previsível). E creio que serão mais, principalmente no Deep South.

3 - O RAV vs. St. Paul de que fala o Pedro Albergaria é o daquela cidade do Minnesota em que uns miúdos colocaram uma cruz a arder no jardim da casa de uma família de pretos, na altura em que o Clarence Thomas tinha acabado de ser nomeado para o Supremo. Eu lembro-me bem disso e da polémica que existiu na altura. Não me parece nada consensual.

4 - Alguns colunistas que fazem parte da minha dieta de leituras, como o Harry Jackson e o Matt Barber, escrevem frequentemente sobre o assunto e sempre em tom crítico. Ainda recentemente, aquando daquele infame episódio de perseguição judicial que vitinou a equipa de Lacrosse de Duke, houve muitas críticas aos efeitos perversos das leis de crime de ódio (embora, honestamente, não me recorde dos exactos termos em que foram colocadas e seja inepto para avaliar a sua robustez).

5 - Eu admito que a motivação do crime é admissível para o apuramento da medida da pena. Parece-me é que serem tipificadas distinções na lei, ao invés de as deixar à discriocinariedade dos tribunais, acarreta alguns sérios problemas.

6 - Como é que o legislador faz a distinção entre "raiva compreensível" e "ódio injustificável"? Há uns anos, uma equipa de hóquei em patins do FC Porto, foi agredida selvaticamente, já dentro do autocarro, no parque de estacionamento do Estádio da Luz, após um jogo. Vários jogadores tiveram de receber tratamento hospitalar prolongado e um dele acabou por ficar cego de um olho. Na motivação deste crime está um "ódio injustificável" ou uma "raiva compreensível"?

7 - A título de curiosidade: provavelmente será uma má e superficial avaliação da minha parte, mas a aplicabilidade destas leis não é complicada? Um caso, a título de hipótese de trabalho: o indíviduo A rouba o B e, no decorrer do assalto, utiliza termos insultuosos em relação uma putativa orientação sexual do segundo. Em que casos é que este ílicito seria agravado pelo crime de ódio? Se A for efectivamente homossexual? Se B souber disso? Mesmo que B não saiba? E se A não for homossexual? E se B recorrer habitualmente aquele tipo de insultos em todos os roubos que comete? Ou basta que A percepcione que se sentiu ofendido?

8 - A resposta a estas perguntas não implicará, estando os crimes de ódio legislados, uma averigação judicial bastante mais profunda? O poder judicial terá de investigar e conhecer, não só a efectiva orientação sexual de A, como os sentimentos de B em relação a ela. Vão fazer o quê? Entrar em casa, investigar a biblioteca e os sites que consultam, falar com os amigos? Isto parece-me caro e, para muitos casos que podem cair na alçada dos "crimes de ódio", francamente exagerado.

9 - Parece-me que isto poderá conduzir a situações em que ou existem "mind-readers" na investigação judicial ou pessoas que cometem exactamente o mesmo crime são culpabilizadas em graus diferentes devido a terem pensamentos diferentes. Ou, até em função dos pensamentos e dos hábitos e inclinações das suas vítimas. Mais, parece-me uma porta aberta para erros judiciais.

10 - Se o ódio agrava especialmente a ilicitude apenas quando é dirigido a um grupo e não a um indíviduo, isso não provoca desigualdade perante a lei?

11 - Uma pergunta puramente assente no meu pessoalíssimo entendimento da política: afinal, quandos crimes de ódio já foram cometidos em Portugal? O estado está a legislar em função de que realidade?

12 - Finalmente, parece-me que o maior problema com os crimes de ódio são as unintended consequences - por definição, não destrinçáveis neste momento. Acho que existirão sérios riscos de agravar, injustamente, medidas penais; e de ser - no futuro, se não é já -, uma porta aberta para a penalização de quadros de pensamento odiosos (e a valoração do que é odioso pode ser - e é - frequentemente conflituante).