Crimes de ódio
O que são crimes de ódio? A julgar pela não muita esclarecida opinião geral, tratar-se-ia de uma cedência ao politicamente correcto ditado por sabe-se lá qual ditadura do pensamento. Lamento, mas não é verdade. Crimes de ódio são crimes qualificados pelo facto de neles ocorrerem circunstâncias modificativas do tipo normal de crime. Circunstâncias que só podem merecer um maior repúdio por parte do direito criminal e, em consequência disso mesmo, uma sanção mais pesada. Um homicídio de um preto por um gangue de skinheads munidos de tacos de basebol não é o mesmo que o António matar o Bento, o qual mantinha uma relação amorosa com a mulher do primeiro. Se formos razoáveis, percebemos que o homicídio motivado por ódio racial tem de ser valorado de forma diferente de um crime passional. Da mesma forma que um homicídio de um deficiente indefeso tem de ser mais censurável do que o acto do António. As circunstâncias que permitem qualificar um crime podem dever-se a diferentes factores: o motivo que preside ao crime (ganância, ódio racial), a especial natureza da vítima (deficientes, crianças) o método utilizado (tortura, sadismo).Todos estes critérios são espectacularmente neutros: não há ninguém que não possa matar um deficiente, ou matar com requintes de crueldade ou matar por ódio racial. Mais, nenhum de nós está livre de ser vítima de um crime desses. E por isso não faz sentido criticar o legislador por nos proteger.
31 comentários:
Zé, não é por isso que a moldura penal é variável (de X a X anos)?
Não será mais lógico que a regulamentação seja um pouco mais curta e abrangente, e a jurisprudência mais relevante?
Isso será mau? Coloca o poder mais no executor do que na legislação?
You tell me.
As circunstâncias que permitem qualificar um crime
...centralismo....
podem dever-se a diferentes factores: o motivo que preside ao crime
...e engenharia social. O interesse público acima de tudo.
"As circunstâncias que permitem qualificar um crime podem dever-se a diferentes factores: o motivo que preside ao crime (ganância, ódio racial), a especial natureza da vítima (deficientes, crianças) o método utilizado (tortura, sadismo)."
Em relação ao método, completamente de acordo. O motivo e a natureza da vítima por serem aspectos alheios ao crime em si, não me parece que devam ser ponderados.
Mas há aqui uma justificação que considero perigosa para um liberal que é:
"Todos estes critérios são espectacularmente neutros: não há ninguém que não possa matar um deficiente, ou matar com requintes de crueldade ou matar por ódio racial."
Defender que um critério é neutro porque as pessoas continuam a ser livres de praticar o que quer que seja, é ir longe de mais. Por exemplo, difamar o bom nome de um indivíduo é crime na maior parte dos países. Se houvesse uma lei que ditasse que difamar o bom nome dos membros do governo dava direito a pena de morte, por este teu critério poderíamos dizer que a lei é neutral: não há ninguém que não o possa fazer. O que é certo é que, neste caso, há um grupo mais protegido por lei que os outros todos. Esta lei é neutral?
Não concordo de todo, Zé. Estás a comparar coisas incomparáveis. A especial situação de helplessness da vítima influi na própria gravidade do ilícito; não já o motivo, que deve ser perfeitamente alheio ao sistema penal. Afinal de contas, faz parte da esfera subjectiva, e dessa esfera,até por critérios de segurança jurídica, a única coisa com que o sistema penal se deve importar é com a existência (e grau) de culpa.
Caro Cirilo,
A moldura do homicídio simples vai de 8 a 16 anos; a moldura do homicídio qualificado vai de 12 a 25 anos (pena máxima em Portugal). Para que o homicídio seja qualificado é necessário que seja preenchido algum dos critérios previstos. Por outro lado, o direito penal tem de ser o mais claro possível: tem de tipificar todos os crimes para que as pessoas saibam com o que contar. É por isso que se torna necessário haver um artigo para o homicídio qualificado. Quem pretender matar um deficiente indefeso ou criança passa a saber que apanha ou que pode bem apanhar 12 a 25 (o que é muito diferente de apanhar 8 a 16). E o facto de a moldura penal ser publicitada na lei serve de dissuassão a quem tenha a ideia de praticar tal crime.
Em relação ao método, completamente de acordo. O motivo e a natureza da vítima por serem aspectos alheios ao crime em si, não me parece que devam ser ponderados. - Carlos
É indiferente então que o criminoso mate por paixão ou mate por ódio? Se não distingues com base no motivo, como é que defines a culpa do agente? E como defines a pena do agente se não utilizas a culpa?
...centralismo....
Ui, ui, estão-me a chamar polpotiano. Vou já escrever um post.:)
Agora a sério. Não sei onde é que o AA vê o centralismo e engenharia social. Faço-lhe as mesmas perguntas que ao Carlos:
É indiferente então que o criminoso mate por paixão ou mate por ódio? Se não distingues com base no motivo, como é que defines a culpa do agente? E como defines a pena do agente se não utilizas a culpa?
E para que a discussão se torne interessante, respondam.
Não concordo de todo, Zé. Estás a comparar coisas incomparáveis. A especial situação de helplessness da vítima influi na própria gravidade do ilícito; não já o motivo, que deve ser perfeitamente alheio ao sistema penal. Afinal de contas, faz parte da esfera subjectiva, e dessa esfera,até por critérios de segurança jurídica, a única coisa com que o sistema penal se deve importar é com a existência (e grau) de culpa.
Cara Sandra,
Como é que defines a culpa se não atendes ao motivo?
Até parece que ninguém vê o Law and Order.:)
Zé,
Estás há uns dias em lista de espera, e ainda não é desta que vais ter artigo :-) . Mas entretanto:
"É indiferente então que o criminoso mate por paixão ou mate por ódio?"
Para mim é.
"Se não distingues com base no motivo, como é que defines a culpa do agente?"
O pressuposto, com que eu concordo em relação à qualificação do crime, é a intenção. Não "qual" a intenção mas a mera existência desta. Deixando um crime de ser meramente incidental e passando a ser intencional ou culposo, para mim é indiferente a substância da intenção em si. É indiferente se alguém matou um preto porque o odeia, em retaliação de algo, por paixão ou porque tinha curiosidade em ver o padrão que os miolos dele faziam na parede quando lhe rebentasse a cabeça.
A existência, por exemplo, de antecedentes de ódio racial podem quando muito servir como mecanismo que facilite a prova da intenção, mas não deve refletir-se na avaliação da culpa do crime. O crime deve limitar-se a avaliar o dano, e a intenção em o praticar, não em fazer juízos morais relativos ao que passava pela cabeça de quem o praticou.
Porque a alternativa, é enveredares por um caminho perigoso de relativismo moral judicial. O que é mais grave, um homicídio motivado pelo ódio, ou um homicídio com motivações absolutamente frívolas, como por exemplo o referido "interesse estético"? É pior quem mata por raiva ou ódio ou quem mata insensivelmente e de forma fria e clínica só por matar?
A existência, por exemplo, de antecedentes de ódio racial podem quando muito servir como mecanismo que facilite a prova da intenção, mas não deve refletir-se na avaliação da culpa do crime. O crime deve limitar-se a avaliar o dano, e a intenção em o praticar, não em fazer juízos morais relativos ao que passava pela cabeça de quem o praticou - JLP
Caro João,
Insisto: diz-me que elementos é que consideras essenciais na determinação da medida da pena e diz-me como é que os relacionas. Que papel joga aí a culpa? Serve como limite máximo da pena, como limite mínimo? Como aferes a culpa sem ter em conta o motivo do agente e sem fazer um juízo de maior ou menor censura sobre esse motivo?
Quanto ao dano, é sempre o mesmo: a morte. Pelo que não me parece que sirva de critério para dizer que o A leva com 16 anos numa moldura penal que vai de 8 a 16 anos e que o B leva 8 ou 10; como ambos cometeram o mesmo crime (homicídio simples), a diferenciação tem de ser feita com base noutros critérios. Quais?
"a diferenciação tem de ser feita com base noutros critérios. Quais?"
Acho que há imensos factores que podem ser tomados em conta sem se entrar com juízos de valor relativos á intenção de quem praticou o crime (atenção que nalguns deles concordo contigo, o meu juízo é concretamente em relação à análise moral do motivo e à tipificação pelo motivo):
- A existência de tortura ou de sevícias prolongadas antes da morte.
- Premeditação.
- Existência de um ascendente físico ou mental sobre a vítima (por exemplo esta ser uma criança ou um deficiente)
- Benefício material directo pela morte.
- Ausência de arrependimento.
- Ausência de colaboração com a justiça.
Todos estes critérios são objectivos e plenamente independentes de juízos da razão moral concreta e motivação para a prática do crime.
Caro João,
O ódio racial também é um critério objectivo e qualquer jurista te dirá isso. Porquê? Por uma questão fácil: se tu vires um grupo de skinheads com bastões a gritar "negro" enquanto lhe batem és capaz de estar bem próximo da verdade quando considerares que tal crime tem um motivo de ódio racial. Ou seja, qualquer prova de um estado interior do agente considerado juridicamente importante (conhecimento ou desconhecimento de algo, intenção fraudulenta, fraqueza de espírito momentânea) é provado por factos exteriores que são tão objectivos como aqueles que levam a dizer que um crime foi premeditado ou que havia um ascendente mental sobre a vítima.
E a própria prova de que tu não afastaste os elementos subjectivos do teu elenco é o facto de dizeres que a ausência de arrependimento é um elemento a ter em conta. Como é que sabes que o agente está ou não está arrependido? Pelo comportamento exterior; da mesma forma que sabes que ele agiu por ódio racial pela exteriorização do seu comportamento.
Porquê ter em conta então o arrependimento e não o motivo de ódio racial? Que lógica seria essa que permitiria atender a certos elementos subjectivos, mas não a outros tão ou mais importantes como a razão por que o crime foi cometido?
Um abraço,
Ps: fico à espera do post..:)
"O ódio racial também é um critério objectivo e qualquer jurista te dirá isso."
Será? Se fossem a casa do autor, que não exteriorizou nada durante o homicídio e vissem o Mein Kampf ou na cache do browser vissem páginas de sites racistas, será que isso possibilita inferir que a causa da morte foi ódio, ou esta não poderá ser uma coincidência desagradável? Não vês perfeitamente a coisa a poder descambar?
"é provado por factos exteriores que são tão objectivos como aqueles que levam a dizer que um crime foi premeditado ou que havia um ascendente mental sobre a vítima."
Não acho. A premeditação demonstra-se com factos concretos que demonstraram que o réu tinha um intenção clara e anterior ao momento do crime de o cometer, como planificação ou preparação. O que eu refiro como "ascendente mental", corresponde ao cenário de a vítima ser deficiente, e não a qualquer juízo subjectivo. Tudo o resto que referes são essas sim construções subjectivas que eu não defendo.
"Como é que sabes que o agente está ou não está arrependido?"
Perguntando-lhe? E servindo a sua resposta como factor a ter em conta em futuras acusações? Além de esse arrependimento ter de se demonstrar ser consequênte e resultar em colaboração com o processo, mesmo que resulte em auto-incriminação.
"Que lógica seria essa que permitiria atender a certos elementos subjectivos, mas não a outros tão ou mais importantes como a razão por que o crime foi cometido?"
Espero que tenha esclarecido a minha posição em relação aos "critérios subjectivos..." ;-)
Abraço
O Zé marca um bom ponto com este último argumento.
Não estou convencido da ausência da motivação como factor atenuante ou não da pena.
E, João, embora concorde totalmente com a tua enumeração de critérios, não são todos de resposta sim ou não.
Pelo que me parece implícito algum lampejo de subjectividade na decisão de uma pena do género.
Mas concordo que faz alguma aflição pensar que a cabeça de um ou mais senhores decide sem objectividade expressa.
Zé, porque motivo se há-de proteger mais os negros, ou outra minoria racial, do que os Don Juan que gostam de se meter em camas alheias? Quem mata os don juan não os mata também por ódio? Parece-me que falta um bom motivo para haver esta diferenciação, nem de que forma isso nos protege mais.
Do ponto de vista utilitarista, até seria preferível punir mais os crimes passionais porque são mais frequentes.
abraço
dsclp a demora na resposta, tava a jantar com um dos novos recrutas ;)
Isso já vai assim?
Daqui a nada, junta-se a facção da mouraria e espetam com uma opa à provínca. Pois fica sabendo que no passaran.
Caro JLP,
Assim como não se inventa a roda em física quântica ou em economia, também não se inventa a roda em direito. O direito existe há milhares de anos e nunca prescindiu da consideração de estados interiores do indivíduo, bem sabendo que estes se provam apenas indirectamente por factos exteriores (ninguém tem acesso à mente de outra pessoa, felizmente).
Pergunta à Sandra se eu não estou a dizer a verdade.:)
No caso do direito penal, o princípio básico é de que alguém só responde pela sua culpa. Se A é empurrado por B, caindo sobre C que bate com a cabeça numa pedra, A não responde por ofensas à integridade física. Porquê? Afinal,
o acto foi causa natural do dano. Mas tem de haver algo mais: um comportamento voluntário que mereça censura ética e jurídica, tanto enquanto acto considerado em abstracto (um homicídio) como em concreto (tendo em conta as circunstâncias e o que agente sabia ou não sabia, queria ou não queria). Sempre foi assim, sempre será. E isto corresponde ao princípio liberal mais básico: o de que uma pessoa responde pelos seus actos, mas só responde na medida em que for responsável. Ora este juízo não é possível sem referência a actos interiores. O agente representou mentalmente
que por detrás do arbusto estava o vizinho e não a perdiz que ele queria caçar? O agente quis a produção do evento "morte do vizinho" ou essa foi uma consequência indesejada pelo agente?
E se ele não pensou que por detrás do arbusto pudesse estar o vizinho, poderia ainda assim, se não tivesse sido irresponsável, ter verificado se ele lá estava?
Tudo isto se refere a estados interiores sobre os quais têm de ser feito juízos para saber se o arguido deve ser condenado e, se sim, em que pena. Lamento, mas não há algorritmos.
Zé, porque motivo se há-de proteger mais os negros, ou outra minoria racial, do que os Don Juan que gostam de se meter em camas alheias? Quem mata os don juan não os mata também por ódio? Parece-me que falta um bom motivo para haver esta diferenciação, nem de que forma isso nos protege mais.
Do ponto de vista utilitarista, até seria preferível punir mais os crimes passionais porque são mais frequentes. - Carlos
Vamos a ver se nos entendemos: se essa lógica utilitarista fizesse sentido no direito penal, aqueles que provocassem acidentes nas auto-estradas teriam de ser, por uma lógica de prevenção estrita, punidos com pena máxima de prisão. Isto porque se há coisa que provoca danos são acidentes de viação e, no nosso país, ainda mais. Os condutores teriam de responder independentemente de terem actuado como dolo ou com negligência ou se quer sem culpa nenhuma. Pelo simples facto de haver muitos acidentes, seria necessário punir com pena máxima quem estivesse na sua origem, mesmo que tal causalidade fosse meramente natural: uma poça na estrada que desviou o carro, um ataque epiléptico que o condutor sofreu, um pneu que furou inesperadamente: zás, pena de prisão.
Isto é absurdo como é evidente. É necessário que o comportamento do agente seja censurável para merecer punição criminal e para tal é nessário verificar se houve culpa do agente, o que só se pode saber através de factos exteriores que permitirão tal ilação (ele acelarou quando o embate se avistava, ele tinha uma garrafa de vodka no assento do lado, ele estava a falar ao telemóvel, etc.).
A ideia dos crimes de ódio é precisamente a consciência de que é mais censurável aquele que mata por ódio racial ou por ganância (o ladrão que para furtar 10 Euros mata o empregado da loja) do que aquele que mata por cíumes. No meu exemplo, é mais censurável o skin do que o António. E isto independentemente dos crimes passionais serem mais habituais. Porque se a lógica fosse de pura prevenção, sem consideração da ilicitude e da culpa, estar-se-ia a violar a ideia liberal de que um indivíduo não pode ser sacrificado para segurança ou bem-estar da sociedade. Não, ele responde criminalmente, mas responde na medida da ilicitude do seu acto e da sua culpa.
E mais uma vez, não se está a proteger os negros. Os critérios são neutros quanto aos agressores e quanto às vítimas. Não se está a proteger nenhuma classe em particular. Tão só a valorar as coisas do ponto de vista da censurabilidade diferente que diferentes comportamentos merecem. Daí que o homicídio seja mais grave que um roubo e este mais grave que um furto.
um abraço,
"Assim como não se inventa a roda em física quântica ou em economia, também não se inventa a roda em direito."
Olha que não! :-)
A Física (e é uma ciência!) é pródiga em reinventar-se ao longo da História, e mesmo a Economia sofreu sucessivamente mudanças de paradigma.
Aliás, mesmo no Direito e de acordo com essa perspectiva ainda estávamos no Hamurabi ou no Salomão... ;-)
"Ora este juízo não é possível sem referência a actos interiores. O agente representou mentalmente
que por detrás do arbusto estava o vizinho e não a perdiz que ele queria caçar? O agente quis a produção do evento "morte do vizinho" ou essa foi uma consequência indesejada pelo agente?"
Eu não objecto a que se apurem os factos relativos a actos anteriores. Tal é, afinal, imprescindível para avaliar da existência ou não de intenção. Mas uma coisa é fazer juízos de facto baseado em dados objectivos anteriores para avaliar da intenção do agente. Outra é fazer uma ponderação e uma avaliação moral subjectiva do que se passava na cabeça desse agente e das suas escolhas morais, e utilizar essa ponderação não para ajuizar relativamente à intenção, mas sim do grau de culpa e da "gravidade" do crime.
Seguindo no teu exemplo, uma coisa é utilizar o facto de que o agente estava a caçar para inferir que provavelmente o acto foi acidental. Outra seria, por exemplo, fazer um juízo moral (numa sociedade hipotética em que a caça fosse mal-vista socialmente) em relação à caça e à escolha de ser caçador para dizer que essa escolha tornava o crime mais grave, e como tal passível de uma pena mais elevada.
"Vamos a ver se nos entendemos: se essa lógica utilitarista fizesse sentido no direito penal, aqueles que provocassem acidentes nas auto-estradas teriam de ser, por uma lógica de prevenção estrita, punidos com pena máxima de prisão."
A minha comparação implicava manter constante todos os outros factores. Obviamente não estava a defender que, como pisar linhas contínuas é mais frequente que assassinar por motivos raciais, que pisar linhas contínuas deveria ter uma pena mais pesada. Eu não entendo é porque é que alguém que mate o amante da mulher com um tiro na nuca, tendo planeado com uma semana de antecedência fazê-lo e não mostrando arrependimento deva ter uma pena mais baixa do que alguém que mate um chinês com um tiro na nuca, tendo planeado com uma semana de antecedência fazê-lo e não mostrando arrependimento.
Bem vocês escrevem, escrevem, uma pessoa vai tratar da sua vidinha e encontra este relambório.
Gostava de comentar mais do que vou fazer agora, mas Zé, cá entre gente dos calhamaços jurídicos:
Cara Sandra,
Como é que defines a culpa se não atendes ao motivo?
Até parece que ninguém vê o Law and Order.:)
Não ponho em causa que em determinados casos possa ser necessário atender (sociologicamente) ao motivo para determinar se há dolo ou negligência; mas isso não significa que tal factor deva ser valorado por si. Ele será uma mera forma de chegar a uma conclusão que, essa sim, tem relevância jurídica.
Por mim ando a instruir-me antes n'«A Lei do Mais Forte». Um gajo tem de se defender!
E já agora, para acabar com as angústias existenciais do Cirilo: até admito que o motivo, em certos casos (por exemplo, a futilidade do motivo atendendo à valia do bem lesado) possa ser factor agravante/atenuante. Mas esse surge num momento posterior, em termos do processo iterativo que o juiz segue num julgamento. A tipificação dos crimes é um mau momento para entrar com essa consideração.
E, já agora, convém sempre pensar nisto, mesmo na base da mera atenuação/agravação: essa valoração dos motivos não deixa de se rmuito perigosa. Matar alguém para lhe roubar 60 cêntimos (motivo fútil) é mau. Matar alguém por motivos de ódio religioso é mau, embora provavelmente a pessoa que comete o crime ache o seu acto muito mais justificado que o tal dos 60 cêntimos. Matar alguém por razões passionais é mau, porque as pessoas são livres e não pertencem a ninguém. Assim sendo, se quase todos os motivos em que podemos pensar são agravantes, o que é que resta para o crime «base»?
Eu não entendo é porque é que alguém que mate o amante da mulher com um tiro na nuca, tendo planeado com uma semana de antecedência fazê-lo e não mostrando arrependimento deva ter uma pena mais baixa do que alguém que mate um chinês com um tiro na nuca, tendo planeado com uma semana de antecedência fazê-lo e não mostrando arrependimento. - Carlos
Podem ter a mesma pena, depende do caso concreto. A premeditação qualifica o crime, pelo que o agente apanhará entre 12 a 25 anos. Agora se não achas que matar por ódio racial é diferente do que matar por se ter sido traído não te posso ajudar.:)
Cara Sandra,
O tribunal vai obrigatoriamente ter de fazer uma valoração dos motivos que levaram ao crime para determinar o grau de culpa do agente. Sendo a culpa o limite máximo da pena, isso significará necessariamente que se terá levar em conta a razão de ser do crime para encontrar o limite máximo da pena.
Caro JLP,
Caramba, estou desiludido com vós.:) Se acham que o muçulmano que degolou o Van Gogh por razões religiosas não deve apanhar mais anos que um tipo que comete um crime passional, fico com medo do que seria ter tribunais de júris. :)
Agora a sério, como é que distingues intenção do agente e grau de grau de culpa e da "gravidade" do crime. É que me parece que estás a fazer distinções onde elas não existem. É claro que o tribunal vai ter de fazer uma ponderação ética e jurídica de todas as circunstâncias, porque vai ter de aplicar uma pena. Para distinguir os casos uns dos outros, tem de se trabalhar assim. Parte-se do senso comum de que matar por ódio racial não é o mesmo que matar porque se tem fome.
Assim sendo, se quase todos os motivos em que podemos pensar são agravantes, o que é que resta para o crime «base»?
10:19 - Sandra
A lei faz todas as distinções: matar por piedade não é o mesmo que matar por ódio racial. Roubar porque se tem fome não é o mesmo que roubar por prazer. Matar porque se quer herdar milhões não é o mesmo que matar num momento de fúria no auge de uma discussão.
JB,
Não estás a misturar muitas coisas diferentes?
Motivação, intenção, responsabilidade são coisas diferentes.
Considerando um crime, como uma agressão. Sendo que para duas agrssões iguais, como a mesma intencionalidade (racionalidade de decisão, informação sobre as consequencias do acto). Para a punição deve influir quem cometeu o crime e quem foi o alvo do crime?
Eu entendo como princípio que não. Porque todos os indivíduos devem ter iguais direitos negativos e responsabilidades.
Zé:
O tribunal vai obrigatoriamente ter de fazer uma valoração dos motivos que levaram ao crime para determinar o grau de culpa do agente. Sendo a culpa o limite máximo da pena, isso significará necessariamente que se terá levar em conta a razão de ser do crime para encontrar o limite máximo da pena.
Acho que essa afirmação não é correcta juridicamente. Como te digo, o motivo pode ser um indício, uma forma de atingir, o grau de culpa, e nessa medida ajudar a determinar o limite máximo da pena. Mas de per se pouco vale.
Ademais, mesmo que te desse razão completa, estarias sempre a dar-me razão: o lugar e momento certo para a valoração desses factores é no momento da determinação concreta da pena, nunca na tipificação do crime (ou seja, dizendo que cabe ao juiz concordas comigo que não cabe ao legislador).
Caro JLP,
Caramba, estou desiludido com vós.:) Se acham que o muçulmano que degolou o Van Gogh por razões religiosas não deve apanhar mais anos que um tipo que comete um crime passional, fico com medo do que seria ter tribunais de júris. :)
Porque é que és tão condescendente com o tipo que comete um crime passional? O outro ao menos está a lutar por um dieal de sociedade, por muito estúpido que esse idal seja e condenáveis os métodos usados para o alcançar. Um tipo que comete um crime passional só olha para o seu próprio umbigo, e nega a liberdade dos seres humanos para se relacionarem com quem querem.
Ademais, mesmo que te desse razão completa, estarias sempre a dar-me razão: o lugar e momento certo para a valoração desses factores é no momento da determinação concreta da pena, nunca na tipificação do crime (ou seja, dizendo que cabe ao juiz concordas comigo que não cabe ao legislador). - Sandra
Não, aí é que discordamos. O acto em si - agora abstraindo do caso concreto e encarando a questão em abstracto - é mais censurável no caso de ser motivado por ódio racial ou religioso. Pelo que acho bem que o legislador faça a distinção entre homicídio simples e homicídio qualificado também com base no motivo que presidiu ao crime. O juiz tem o papel de subsumir o caso concreto à norma.
Porque é que és tão condescendente com o tipo que comete um crime passional? O outro ao menos está a lutar por um dieal de sociedade - Sandra
Quem mata por ódio religioso ou racial não aceita sequer a existência do outro. Quem mata por 10 Euros atribui a vida humana um valor irrisório. Isto tem de se tratar na forma como se encara o acto em abstracto e portanto tem se traduzir na ilicitude, isto é na valorização ética do acto em si mesmmo considerado.
No demais concordamos em discordar; mas quanto à seriedade dos motivos, em abstracto aferida (de um ponto de vista moral e não jurídico):
Quem mata por ódio religioso ou racial não aceita sequer a existência do outro. Quem mata por 10 Euros atribui a vida humana um valor irrisório. Isto tem de se tratar na forma como se encara o acto em abstracto e portanto tem se traduzir na ilicitude, isto é na valorização ética do acto em si mesmmo considerado.
E quem mata a mulher/marido, ou o amante do dito cujo, que aceita a existência do outro mas apenas enquanto ele se dispõe a funcionar como sua propriedade?
Sejamos francos: quem mata (ponto) não aceita a existência do outro. Mata porque pode, como o cão que entra na igreja. por isto, por aquilo, não importa.
Em primeiro lugar, parabéns pelo blogue, de indiscutível qualidade.
Permitam-me que intervenha na discussão, ainda que correndo o risco de repetir algo já debatido nos comentários. Os “crimes de ódio” (coloco o termo entre aspas uma vez que é nomenclatura de cunho norte-americano, não utilizada pelos juristas continentais) pretendem abranger, como o nome indica, todo uma complexa franja do fenómeno criminal em que o elemento “ódio” faz parte do tipo de crime, quer fundando a ilicitude (por exemplo, entre nós, o crime de discriminação racial, punido no artigo 240.º, n.º 1, do CP), quer agravando a ilicitude (por exemplo, entre nós, o aqui já homicídio qualificado, punido pelo artigo 132.º, n.º 2, al. e), do CP). Daqui já se vê que há essencialmente duas formas ou técnicas legislativas de fazer relevar o “ódio” como elemento típico: aquela primeira, que respeita, em geral, aos chamados “crimes de incitamento” ou “apologia” (veja-se o negacionismo tão na moda); a segunda, que, para relevar o ódio, o consagra como mera agravante de facto fundamental, como sucede, paradigmaticamente como a morte dolosa de outrem. Curiosamente, comentou-se aqui essencialmente esta segunda modalidade que é que tem gerado menos ou mesmo nenhuma polémica. Ela é, efectivamente, mais compatível com um “direito penal do facto”, que só censura o ódio enquanto este é “guia” ou motivação de um comportamento manifestamente danoso. Se quisermos arrumar as coisas, este modelo corresponde tipicamente ao modelo norte-americano, que afasta claramente o modelo dos crimes de incitamento (paradigmaticamente, a decisão do supremo Tribunal Federal, R.A.V. v. St. Paul, 1992). E, com efeito, este modelo é pouco compatível com um “direito penal do facto” e mais atreito à subjectivação do direito penal; ou seja é típico de um “direito penal do autor” (isso para não falar do “chiling effect” produzido sobre a liberdade de expressão). Curiosamente, este paradigma, um pouco espalhado por toda a Europa continental, conheceu desenvolvimentos extremos precisamente nos países latinos, com Espanha à cabeça e Portugal (onde surge misturado com características próprias do modelo norte-americano) em vias de tomar, “ex aequo”, a dianteira, com o anteprojecto de revisão do CP. A punição pura e simples do negacionismo, em Espanha, em termos muito mais abertos do que sucede na própria Alemanha, Áustria e outros países que seriam o “ambiente natural” ou ao menos “compreensível” para essas incriminações é bem prova do que acabei de dizer. Esta será, de resto, uma discussão próxima, entre nós, pois a Alemanha já fez saber a sua intenção a este propósito.
Caro Pedro Albergaria,
Obrigado pelo seu comentário.
Sou evidentemente contra a criminalização do que seja apenas um exercício de liberdade de expressão como acontece no crime do negacionismo. Daí que concorde consigo quando critica aquilo que designa por a primeira modalidade de "criminalização do ódio".
Ao contrário dos meus colegas do blogue também não acho que seja problemático qualificar o crime em virtude do elemento "ódio" naquilo a que chama segunda modalidade de "criminalização do ódio". Pelo contrário, acho que tal é necessário para a valoração correcta do acto em si mesmo considerado. Nessa medida, relevei a segunda modalidade de "criminalização" do ódio, porque o meu post pretendia fazer uma defesa da qualificação do crime homicídio nesses casos. E sim, também sou defensor de um direito penal do facto e não do autor, pelo que também aí concordamos.
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