2007/05/24

reguladores, teoria de jogos e o preço da des-regulação

Vai no Speaker's Corner uma discussão que me é muito cara: o paper do Estado enquanto regulador. A conclusão a que o Miguel Duarte (MD) chega é a seguinte:

em mercados onde exista um número de concorrentes reduzido, é necessária de facto a intervenção de uma entidade reguladora, por forma a garantir que a lógica difusa das empresas não as leva a tomar opções que vão contra os interesses dos consumidores
Sustenta-se a conclusão usando teoria de jogos e uma "nova" though experience (o dilema do viajante).

Antes de mais, há algum abuso na utilização de teoria de jogos (TJ) nestes contextos. A TJ é essencialmente um formalismo e o famoso equilíbrio de Nash é apenas o ponto (que pode não existir) onde todos os jogadores, dadas as suas estratégias particulares, consideram ver os seus objectivos cumpridos, ainda que de forma não óptima para cada um. Se a resposta da TJ ao Dilema do Viajante não coincide com a realidade, a culpa não é da TJ mas tão somente de quem formalizou o problema (especialmente a estratégia de cada jogador).

Fazer derivar a conclusão de cima destas considerações é abusivo. Contudo, curiosamente, a sua essência está correcta desde que devidamente reformulada. Prova-se, e aqui é que a TJ é útil como ponto de partida, que a anarquia e o mercado des-regulado implica um custo que tem de ser dividido entre os vários players (não necessariamente equitativamente). Um bom exemplo está aqui (algo técnico mas o resumo deve chegar). Ou seja, ainda que haja alguns players que ganhem pontualmente, no longo prazo, todos incorrem em custos. Ou seja, uma fracção do esforço não produz trabalho que configura uma espécie de competição negativa.

Exemplo simples mas ilustrativo. Duas pessoas têm de ir de Lisboa ao Porto. Há dois cenários: (i) combinam entre si, usam o mesmo automóvel e dividem despesas; (ii) vai cada um no seu automóvel. Se a estratégia de cada player for a de minimizar o custo da deslocação, o cenário (i) é, de longe, o mais vantajoso. Contudo, é necessário coordenação. E se as duas pessoas não se conhecerem, é necessário existir uma terceira parte que ofereça mediação.

O Estado está em excelentes condições para assumir este papel de regulador graças à centralidade que lhe é própria. Ignorando teses que defendem que não há nada para regular porque o colectivo simplesmente não existe, seria de defender regulação económica massiva, incluindo repensar as economias planeadas.

O problema é dar o passo seguinte: como é que na prática se implementa esta regulação? Por partes:
- Deve o Estado combinar a regulação com outros mecanismos que lhes são próprios tais como a autoridade e força?
- e como é constituída esta regulação? Dado que o Estado começa e acaba em grupos de pessoas, quem nomeia o corpo regulador e como garantir que a melhor solução colectiva (a que minimiza os custos de anarquia) é defendida?
- subindo na hierarquia, temos depois grupos competindo com grupos. Ainda que, por cada grupo, o regulador consiga a melhor solução, como garantir a melhor solução entre todos os grupos? Em última análise, como considerar toda a população criando um jogo de 10 milhões de jogadores?
- alargando fronteiras, é necessário aceitar sem romantismos ou utopias que nem todos os Estados regulam de forma justa (no sentido do colectivo). Por esse prisma, e para não entregar o ouro ao bandido, como incluir eventuais estratégias de defesa de interesses nacionais? Daqui aos "centros de decisão" permanecerem em mãos nacionais é um passo pequeno.
- etc. etc. etc. etc.

Já agora, defendo reguladores nacionais e até defendo que sejam fortes...

6 comentários:

JLP disse...

Juicy... :-D

"Fazer derivar a conclusão de cima destas considerações é abusivo."

Mais do que isso: o modelo que é apresentado pelo Miguel é demasiado simplista, e ignora para mim dois factores fundamentais que têm que ser modelizados: o perfil de risco dos intervenientes e a sua curva de utilidade. Partir do princípio que todas as pessoas reajem do mesmo modo à perda dos mesmo valores é uma simplificação que pura e simplesmente prejudica neste caso todas as outras conclusões que se possam tirar em termos de modelização da realidade.

Em relação à regulação, e não descartando que o estado possa ter algum papel nesse âmbito (e não, não acho que deva ser coercivo e "autoritário", para responder à tua pergunta :-) ), há uma questão que colocas que em grande parte acho que responde às tuas dúvidas: se há uma consciência das perdas que afectam todos os player por estes, porque é que não hão-de ser eles mesmos a promover os entendimentos necessários a evitá-las?

A questão da assimetria e da não universalidade da distribuição da informação é um facto (ainda me lembro bem das nossas conversas!). Mas a pergunta é se deverão todos ser alvo de coerção para patrocinar o acesso a essa informação (toda, e em todos os ramos, o que é claramente impossível e uma terefa perdida à partida), ou se deverão ser os interessados a tomar consciência dessa maisvalia e a trabalhar para ela.

Pessoalmente, acho que a regulação é desejável. Mas terá que o estado tem necessariamente que ter a ver com isso? Não deverão ser os próprios produtores e consumidores de determinado bem ou serviço a coligarem os seus interesses espontaneamente para reduzir esses custos?

Já tens vários exemplos de reguladores que não passam pelo estado e que são credíveis. Vê, por exemplo, na nossa área o IETF ou o W3C.

Não digo que o estado não possa promover esse género de associativismo, criando enquadramentos legais ou funcionais que possam ser colocados à disposição dos interessados. Mas daí a assumir uma posição de meter o bedelho em todas as relações comerciais...

JLP disse...

"alargando fronteiras, é necessário aceitar sem romantismos ou utopias que nem todos os Estados regulam de forma justa (no sentido do colectivo)."

A conclusão é que geralmente são esses exactamente os principais prejudicados... ;-)

Migas disse...

Alguns preciosismos:

- O equilibrio de Nash aplica-se apenas a jogos não-cooperativos, finitos, com um nº N de jogadores.

- Para este tipo de jogos, existe sempre um equilibrio de Nash. É justamente este o principal valor do teorema.

- O equilibrio não implica que os jogadores "vêm os objectivos cumpridos"; implica que nenhum deles estaria disposto a trocar de estratégia se soubesse que os restantes jogadores não mudariam as deles. Uma situação de equilibrio pode ser uma péssima para todos mas em que a mudança de estratégia de um jogador seria, para ele, ainda pior.

- Em jogos cooperativos, os resultados são diferentes, pois podem existir coligações que permitem melhorar o resultado para todos.

- Quando se constroem teorias sobre como tudo seria melhor se houvesse maior coordenação, e se recorrem a estes exemplos puramente matemáticos, é costume esquecer que para a análise devem também ser considerados os custos de cooperação. Tipicamente, o estado custa uma pipa.

Tiago Mendes disse...

Ia escrever uma série de comentários, mas o Migas já disse quase tudo o que havia a dizer. Acrescentaria apenas que um equilíbrio de Nash, por definição, envolve escolhas óptimas por parte de cada indivíduo no momento em que são tomadas, onde são tidas em conta as escolhas dos outros (sob a forma de expectativas). Tudo o que é escrito no post sobre Teoria dos Jogos é - não há outra forma de dizê-lo - verdadeiramente assustador, e retira a vontade de ler o resto do post.

Contudo, ainda o li. O exemplo de "facilitar a coordenação" entre dois jogadores não tem NADA que ver com regulação. Regulação tem que ver com o controle-avaliação-correcção do poder de mercado de alguns players. Facilitar a coordenação pode passar por ser "intermediário" ou por criar "instituições" que favoreçam essa cooperação. Relacionar isso com regulação não tem cabimento.

Vítor Jesus disse...

respondendo ao Migas e ao Tiago:

-- "O equilibrio não implica que os jogadores "vêm os objectivos cumpridos""
é que te faltou a palavrinha mais importante da frase. eu disse "...que _consideram_ ver os objectivos cumpridos". Especialmente para uma discusão não técnica, muda tudo. Há aqui a tal componente subjectiva em relação à noção de estratégia e contra a qual a TJ nada pode fazer.

-- "Para este tipo de jogos, existe sempre um equilibrio de Nash." Eu não defini com rigor as condições em que existem equilíbrios de Nash (nem tu...). Dei um ar da coisa e ressalvei (pq achei importante) que o equilibrio de Nash pode não existir. P.ex., se houver cooperação ou se não houver garantia de que o jogo não termina, as coisas mudam.

-- "facilitar a coordenação" entre dois jogadores não tem NADA que ver com regulação.

Depende como encaras o papel do regulador: ou o imaginas como o pai tirano que educa os filhos ("controle-avaliação-correcção do poder de mercado de alguns players") ou o imaginas como um "facilitador de coordenação", sendo que "coordenação" pode perfeitamente ser entendido como "potenciador de competição" que, se todos, ou uma boa parte, os agentes o desejarem, acaba por ser um agente de coordenação e/ou alinhamento. ou não...?

Mas uma coisa é certa: não é pelo dilema do Viajante que os vais justificar ou questionar...

Tiago Mendes disse...

Caro Vitor,

Em relacao ao primeiro ponto, o que e' dito e' isto:

"consideram ver os seus objectivos cumpridos, ainda que de forma não óptima para cada um."

Ora, eles so' consideram ver os seus objectivos cumpridos *na exacta medida* em que as escolhas sao optimas no momento em que sao feitas. Ou seja, nao so' a segunda parte da afirmacao e' incorrecta, como a primeira parte e' inconsistente com a segunda. Dai a minha critica em relacao tambem 'a primeira parte (que era de inconsistencia com o que e' dito a seguir, que esta' errado, mas podemos separar as coisas).

Acho muito dificil, honestamente, e no contexto de uma discussao que emprega algumas nocoes de teoria dos jogos, achar que "regulacao" pode ser vista como algo bastante proximo de "coordenacao". Enfim, ate' posso aceitar o ponto noutro contexto, mas entao que nao se meta a teoria dos jogos ao barulho. Isto nao e' "sacralizar" nada, ate' porque, como o Vitor avisa logo de inicio, e TJ e' sobretudo uma ferramenta formal (passe a redundancia) para analise de uma serie de situacoes. Mas, ao usa-la, temos de ser rigorosos, tal como teriamos de o ser se recorrermos a matematica pura ou logica.