2007/05/24

Overfitting

Em direito, pelo contrário, temos de aprender a estudar assuntos numa perspectiva microscópica. As palavras em direito têm diferentes significados consoante o problema que se queira resolver (os diferentes conceitos de boa fé, por exemplo) e percebe-se rapidamente que as grandes teorias políticas ou filosóficas são demasiado limitadas para resolver bem todos os problemas jurídicos. Daí o nosso cepticismo face a grandes teorias; daí que o nosso liberalismo provavelmente seja diferente do dos outros. Aprendemos a ver as limitações de qualquer teoria face a problemas comezinhos como aqueles que, frequentes vezes, estudamos. Estamos mais dispostos a sacrificar um princípio liberal se isso ajudar a resolver melhor um pequeno problema que ocorra, sem acharmos que estamos a trair o que quer que seja ou que estamos a ser incoerentes.

José Barros, na caixa de comentários deste artigo.
Overfitting é um conceito que emerge quando se treina um determinado modelo dinâmico sintético (por exemplo uma rede neuronal) que se pretenda utilizar para classificar ou representar a resposta de um determinado sistema físico complexo e multivariado. Nesse processo, o que geralmente se faz é contruir um conjunto de treino, de valores de entrada (estímulos) do sistema físico, e das respectivas respostas do sistema, e treinar o modelo de modo a que, sendo esse modelo sujeito a novos estímulos, diferentes dos que foram utilizados no treino, tenha respostas próximas das que são apresentadas pelo sistema físico.

Em termos leigos, o que se passa é que se o conjunto de treino for demasiado grande (ou se o processo de treino for demasiado prolongado, ou o conjunto de treino tiver pouca diversidade), o modelo que se obtêm tem mais tendência a emular com exactidão o próprio conjunto de treino do que as respostas espectáveis do sistema. Ou seja, o processo de treino perde a sua função de apreensão das características fundamentais (e encobertas pela sua complexidade) do sistema físico, e passa a ser um mero mecanismo de representação do conjunto de treino.

O que é que isto tem a ver com o comentário? A questão, quanto a mim, é que o que é demonstrado por este conceito é algo que é perfeitamente transponível para a realidade do liberalismo, genericamente, em contraposição às teorias políticas progressístas e socialistas, ou concretamente no caso do direito, à tentação que o José Barros refere de ajustar os princípios e as teorias aos "aspectos comezinhos" ou de "sacrificar um princípio para melhor resolver um problema".

A minha tese, essencialmente, é que o excesso de "treino", ou seja, de ajuste de um sistema jurídico ou de uma filosofia política (na generalidade) e a ausência de regras bem definidas e cristalizadas, degrada progressivamente a sua capacidade de ajuste às caracteristicas fundamentais da sociedade que pretende compreender e interpretar. Ou seja, a tentação da excepção, do "mais um" ou do sacrifício de uma regra geral em prol de um suposto incremento de eficiência local degradam a própria capacidade de um sistema político (ou jurídico) em representar efectivamente as escolhas fundamentais e os princípios directores que regulam uma sociedade.

É essa exactamente, quanto a mim, uma das maisvalias do liberalismo. A vontade não de imortalizar monoliticamente por extensão uma sociedade, não de ir criando sucessivos regimes de excepção e de regras excepcionais disconexas, mas sim de estabelecer regras simples, que emerjam com clareza dessa mesma sociedade e que permitam a interpretação clara da generalidade dos desafíos que se lhe apresentem no futuro.

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