2007/05/10

Propriedade, estado e Liberalismo

No seguimento da acesa discussão em curso sobre a temática da nova lei do tabaco, tem surgido uma discussão paralela, inevitável, sobre o conceito de propriedade privada absoluta, e sobre os seus fundamentos de acordo com uma teoria liberal, e sobre se tal carácter absoluto é ou não intrínseco ao próprio Liberalismo. Nomeadamente, discute-se se a propriedade é um conceito autónomo e existe por ela própria, ou se é a existência de um estado e de um corpo de Direito que sustenta esse "direito".

Uma nota prévia: o meu Liberalismo é construído sobre alicerces contractualistas e sobre uma perspectiva positivista do Direito, contrariamente a muitos outros liberais da blogosfera lusa que o sustentam em teses de direito natural e da tradição. Como tal, a minha argumentação afastar-se-à dessa perspectiva, e será provavelmente um espelho da minha simpatia pela Public Choice Theory.

Em primeiro lugar, há que referir que a existência de propriedade como "domínio" do seu senhor precede, quanto a mim, a própria existência de estado. Ao longo da História, a realidade do conceito de propriedade foi o espelho do Caos que reinava quer no interior das nações, quer nas suas incursões estrangeiras. Como em qualquer situação em que não haja uma Ordem estabelecida e reconhecida por todos, o juízo que presidia ao conceito de propriedade era essencialmente que propriedade é aquela porção de terreno, adquirida por quaisquer mecanismos eficazes, que o seu proprietário consegue defender. Ou seja, numa situação de convulsão, a propriedade sempre se afirmou pela força dos argumentos militares ou de fitness individual do seu dono em a defender. Quem era mais forte e mais capaz, tinha mais propriedade, e podia exercer a sua vontade absoluta num maior domínio.

Num cenário destes, não há noção de justeza na aquisição dessa propriedade. A propriedade existe, e tal é um facto, porque ninguém mais consegue pela força dos seus argumentos fazer valer a sua vontade nesse domínio. Como tal, é natural aceitar-se que, enquanto vigorou essa regra, o exercício da propriedade era sem dúvida absoluto, já que não havia sequer a noção de direitos e liberdades de terceiros que vigorassem nesse domínio.

Ora, para mim, a perspectiva liberal é que a propriedade, como se pode julgar pelas considerações acima, nunca precisou objectivamente na História de estado para se afirmar por si só e sem demais considerações, e para sobreviver a uma transição do Caos para a Ordem. O existência de estado demonstrou sim que houve motivação espontânea para estabelecer mecanismos de enforcement e de regulação dos efeitos da propriedade entre indivíduos.

E onde é que entra, quanto a mim, o Liberalismo nesse cenário?

Entra exactamente na definição de princípios para que se possa estabelecer essa Ordem, nomeadamente de modo a que todas as concessões para o seu estabelecimento sejam espontâneas e consensuais, e para que não sejam feridos os interesses particulares de todos os indivíduos e não se contribua, desse modo, para motivar os mais fortes a regressar ao Caos de modo a terem rédea solta para afirmar a sua superioridade.

A principal motivação para o fazer é que o ambiente de não-beligerância e a possibilidade de estabelecer relações entre indivíduos com regras e sem desconfianças e receios desproporcionados mútuos contribui, ao diminuir o risco dos projectos pessoais, para um maior crescimento do rendimento individual de todos, também beneficiando do efeito multiplicador da cooperação.

Ora quanto a mim, e julgo que de uma forma plenamente liberal, a melhor maneira de garantir esse equilíbrio é garantir que cada um tem o poder absoluto na sua esfera de influência individual (o que inclui, por consequência óbvia, a sua propriedade). Que não lhe é permitido (e/ou que sofrerá sanções) invadir essa esfera do próximo, e que todos prescindem voluntariamente (e exclusivamente na medida da sua vontade absoluta) da sua quota parte de propriedade em prol do financiamento de uma entidade reguladora que supervisiona e arbitra essas relações interpessoais, assim como estabelece os mecanismos de minimização do risco colectivo que sejam estabelecidos pelo consenso de todos.

É este, quanto a mim, um entendimento liberal do estado.

Neste cenário, confirma-se que a propriedade não é "concedida" pelo estado, mas sim uma realidade que o precede e que provavelmente perdurará na sua ausência, caso este dê pela sua actuação motivos para que o consenso deixe de ser voluntário e como tal rompido pelos mais capazes.

10 comentários:

Anónimo disse...

Caro João,

Esta é a velha história do ovo e da galinha. Não me parece que ajude a resolver a "estória" da proibição do fumo. Até porque não me parece que esteja em causa a propriedade, mas sim a liberdade de iniciativa privada. O problema não reside em dizer-se ao proprietário que, enquanto comerciante, não pode permitir o fumo no seu estabelecimento, mas sim que não pode estabelecer as condições sob as quais desenvolve o seu negócio, atraindo os clientes de acordo com a sua estratégia negocial. A proibição do fumo não me aparece ser uma limitação grave da propriedade do proprietário, até porque, ao abrir um EC este sabe que está a sujeitar a mesma a restrições várias (chamem-se polpotiano, se quiserem:)). Já não aceito que um comerciante não possa desenvolver o seu negócio de acordo com as suas estratégias negociais, uma delas sendo a atracção de clientes fumadores e fazer da possibilidade de se fumar no seu EC uma mais-valia relativamente a outros EC`s. É isso que me parece uma violação injustificável da liberdade de iniciativa privada. É por isso que não concordo com a lei e com aqueles que a defendem.

Anónimo disse...

Correcção:

"Chamem-me polpotiano, se quiserem". Mas com ternura...

Anónimo disse...

Discordo de um pormenor: na ordem natural não há propriedade privada...por isso, é-me difícil dissociar propriedade privada de existência de estado...para mim o conceito de propriedade privada está subjacente a uma contratualização com a sociedade, e a uma aceitaçÃO generalizada do direito que assiste ao respectivo proprietário...numa lógica de imposição de força pelo mais forte (antes da existência de um Estado), essa legitimação não existia

Snowball disse...

O post está muito bom, mas discordo da sua conclusão.

"a melhor maneira de garantir esse equilíbrio é garantir que cada um tem o poder absoluto na sua esfera de influência individual (o que inclui, por consequência óbvia, a sua propriedade).Que não lhe é permitido (e/ou que sofrerá sanções) invadir essa esfera do próximo, e que todos prescindem voluntariamente (e exclusivamente na medida da sua vontade absoluta) da sua quota parte de propriedade em prol do financiamento de uma entidade reguladora"

Está a falar do sistema do feudalismo (mas está mesmo!!! - era assim que funcionava, mais coisa menos coisa). Na verdade, o que confere estabilidade à propriedade privada é a sua não absolutização, e a obediência a regras consideradas mais ou menos justas pelas maiorias, e que levam estas a aceitar manter situações que à partida veriam como injustas, inaceitáveis, ou contrárias aos seus interesses.
É por beneficiar a todos que o sistema se mantém - não por beneficiar apenas aos que têm propriedade.

JLP disse...

"Discordo de um pormenor: na ordem natural não há propriedade privada..."

É exactamente essa ideia que o artigo pretende demonstrar.

JLP disse...

"Está a falar do sistema do feudalismo (mas está mesmo!!! - era assim que funcionava, mais coisa menos coisa)."

Curiosamente, o artigo era para ser mais extenso e referir-se exactamente a isso, mas foi abreviado por questões de facilidade de leitura e síntese!

Foi também um juízo que presidiu à gestão das terras durante as Descobertas.

"e que levam estas a aceitar manter situações que à partida veriam como injustas, inaceitáveis, ou contrárias aos seus interesses."

A questão é exactamente essa: essas decisões devem ser espontâneas o voluntárias, e não impostas pela força ou pela via de "maiorias democráticas".

Pelo facto de serem eminentemente coercivas, essas decisões não devem estar entregues a mecanismos de maioria (pelo menos que não sejam próximos de uma "quasi-universalidade"). De contrário, corre-se o risco de violar o equilíbrio espontâneo de concessões e de trocas que presidiram à formulação do contracto social.

"É por beneficiar a todos que o sistema se mantém - não por beneficiar apenas aos que têm propriedade."

Sim, eu não disse nada em contrário. A questão é que deverão ser os próprios envolvidos a avaliar desse benefício, e não uma entidade externa a parametrizá-lo e a estabelecê-lo.

Snowball disse...

Confesso que o post me deixa muitas questões (que bom!!!)...

É que sendo esta uma pura lógica de poder e defesa dos interesses pessoais - e sendo o Estado um instrumento de poder à disposição do povo - o Estado acaba por ter toda a legítimidade para impôr restrições à propriedade privada - caso os "privados" não aceitem, arriscam-se a ver a sua propriedade confiscada.

Não sei se me faço entender - mas fica legítimada a utilização do Estado pelo "povo" não como instrumento imparcial - mas como instrumento activo para defesa dos interesses da maioria (sem respeito especial pelas minorias). Num cenário puro de "poder" - o Estado como actor mais poderoso pode definir o que entenda.
Na verdade, a grande questão é "quem controla o Estado para os seus próprios fins?"

Não me parece nem desejável, nem muito defensável (nem liberal).

Não é própriamente uma crítica ou discordância - é mesmo uma dúvida.
Não lhe parece que este sistema "liberal" acaba por entrar nestas contradições muito pouco liberais?

(espero ter sido claro na minha exposição - temo ter sido um pouco confuso...)

JLP disse...

"É que sendo esta uma pura lógica de poder e defesa dos interesses pessoais - e sendo o Estado um instrumento de poder à disposição do povo - o Estado acaba por ter toda a legítimidade para impôr restrições à propriedade privada - caso os "privados" não aceitem, arriscam-se a ver a sua propriedade confiscada."

Aí é que entra exactamente a questão da unanimidade (ou quase unanimidade) como mecanismo de consenso para alterações do mandato do estado, partindo (lembremo-nos) de um ponto de partida de respeito absoluto pela propriedade.

Se for garantido esse princípio, fica claro que todas as restrições ao direito de propriedade ou os "confiscos" são consentidas, e como tal um prolongamento do poder absoluto de cada um sobre a sua propriedade.

Se, por exemplo, toda a gente concordar com a construcção de um hospital, e no mecanismo de financiamento da sua construcção, não há quanto a mim nenhuma objecção para que isso não aconteça, e para que esse hospital seja uma "obra pública".

"Num cenário puro de "poder" - o Estado como actor mais poderoso pode definir o que entenda."

A questão é que, partindo destes princípios, tal não deverá acontecer, já que o estado será sempre uma entidade mandatada e não com "vida própria". Além disso, o facto de se partir de muito poucas competências, e definindo a unanimidade como mecanismo de mudança, garantirá à partida que o estado se manterá pequeno e que nunca terá ao seu dispôr meios que lhe possibilitem ganhar vontade própria contra os cidadãos que lhe dão sustento político.

Snowball disse...

"A questão é que, partindo destes princípios, tal não deverá acontecer, já que o estado será sempre uma entidade mandatada e não com "vida própria". Além disso, o facto de se partir de muito poucas competências, e definindo a unanimidade como mecanismo de mudança, garantirá à partida que o estado se manterá pequeno e que nunca terá ao seu dispôr meios que lhe possibilitem ganhar vontade própria contra os cidadãos que lhe dão sustento político."

Eu compreendo isso. A questão é que a pertença é quase (?) coerciva. Quem não concordar com os termos da maioria, abdica da protecção do Estado, e essa mesma maioria pode simplesmente expropriar os bens (e não pode recorrer ao Estado, pois rejeitou a sua pertença a este).

Pensando bem nisto, é mais ou menos o que acontece - pertencemos à força ao Estado...

Voltando um pouco atrás, considero uma boa análise "ao que é".
Mas acho que a análise "ao que deveria ser" é igualmente importante - pois é ela que vai (ou melhor, que se pretende que vá) sair da vontade da maioria (de preferencia, de uma larga maioria).

JLP disse...

"Quem não concordar com os termos da maioria, abdica da protecção do Estado, e essa mesma maioria pode simplesmente expropriar os bens (e não pode recorrer ao Estado, pois rejeitou a sua pertença a este)."

Estás a falar no momento da definição do contrato social ou à posteriori?

É que, se fosse à posteriori, esse problema não se põe. A propriedade é absoluta, o estado vela por ela (como critério mínimo desse contrato social), e qualquer alteração obriga à unanimidade (logo, não pode haver uma expropriação pela maioria). Se for no momento da definição do contracto social, o que pode acontecer é que, à falta da existência de um consenso, pode haver um grupo significativo que opte por estabelecer esse contrato, que não vincula os demais, criando uma "ilha de sociedade" no meio do caos.

Naturalmente, a ameaça que isso pode constituir para os que não aderiram ao contrato (uma vez que a relação destes para com os outros continuará a ser a lei do mais forte), deve constituir um incentivo para estes aderirem ao referido contrato social, e engradecerem os números que a ele aderem. Mas, lá está, isso dependerá da motivação que tiverem para o consenso. Se forem mais fortes do que os demais, e eventualmente com mais propriedade, podem achar que se safam sozinhos.