2007/05/14

Pena de morte

Rui Albuquerque relança (I, II) no Portugal Contemporâneo a problemática da pena de morte, e nomeadamente a discussão relativa à posição liberal em relação a esta. No caso concreto, defende a aplicação da referida pena a crimes violentos tendo como vítimas crianças, nomeadamente o rapto, abuso sexual ou a pedofilia (fica a dúvida se será extensível a todos os crimes violentos que envolvem crianças). Lança-se também à discussão a problemática da pena (em geral) como mecanismo retributivo ou de punição, ou como mecanismo de promoção da reinserção social dos condenados e de protecção temporária da sociedade deste.

Pessoalmente, sou a favor da pena de morte e da justiça eminentemente retributiva, já que acho que a segunda se insere melhor na idealização liberal do papel do estado na Justiça, sendo que concordo com a perspectiva enunciada por João Miranda nos comentários aos artigos referidos. Acho que o principal papel da pena é o de agir, em primeiro lugar, como mecanismo dissuasor dos comportamentos lesivos das liberdades e garantias sancionadas socialmente, bem como o de conferir às vítimas (e aos seus) o seu direito de reparação em relação a quem as ofendeu. Como tal, um mecanismo que clarifique o risco criminal associado aos crimes, e que defenda e permita a tranquilização psicológica das vítimas e o seu desejo natural de retribution é algo que vejo como benéfico para a paz social e para a noção de Justiça.

Mas isso sou eu, que sou relativista, contractualista e positivista.

Já acho mais estranho, e porventura incoerente, assistir a essa defesa feita por liberais que constroem o seu Liberalismo no edifício do Direito Natural, e que justificam neste a defesa do direito de propriedade, compreendido na sua extensão que envolve o direito à integridade física. Como utilizar um alegado princípio de Direito Natural para defender o absoluto da propriedade perante o estado, e a seguir conferir a esse mesmo estado o poder de exercer uma força terminal em relação a um indivíduo? Concebemos um estado inserido numa sociedade com Liberdade e propriedade (inalienáveis) pessoais apriorísticas e que o precedem (sendo que este somente se torna numa ferramenta da sua garantia), ou passamos a conceber um estado que determina democraticamente os seus próprios limites e capacidade interpretativa em relação à propriedade de cada um?

É que uma coisa é o arbítrio entre situações de confronto de liberdades e de direitos (pense-se na legítima defesa), em que os agentes das violações e aqueles que atentam contra esses referidos direitos e liberdades são os próprios indivíduos. Outra é pressupôr um estado com um direito ou com um alegado poder representativo de matar.

Pessoalmente, essa ideia não me repugna, emergindo de um contrato social consciente e de largo consenso (unânime ou quase unânime). É fruto dos meus condicionalismos filosóficos enunciados a cima. Mas será isso pacífico para os "outros" liberais?

E onde é que se pára? Não é pelo menos tão mau um crime de abuso sexual de um menor do que o de um indivíduo que abre fogo em público e mata, sem arrependimento e de forma confessa, inocentes? É pior alguém que abusa uma criança, ou alguém que por negligência (potencialmente até com dolo eventual) a mata?

12 comentários:

Snowball disse...

No nosso sistema legal, considera-se (e bem) que mais vale 100 culpados soltos que um inocente preso. A situação é ainda mais relevante para a pena de morte - se um inocente for morte, não há possibilidade de reparar o dano. Ao preso - pode-se soltar e indemnizar. Ao morto - só se mandar rezar missas...

JLP disse...

"No nosso sistema legal, considera-se (e bem) que mais vale 100 culpados soltos que um inocente preso."

Eu percebo a questão, nomeadamente no que toca à eventual banalização da pena de morte. Mas há imensos casos em que os criminosos são confessos (e muitas vezes, nem sequer arrependidos), ou que a prova é claramente esmagadora e o delito flagrante.

Filipe Melo Sousa disse...

Já no passado propus-me desmontar o dogma da infalibilidade da justiça. http://blog.liberal-social.org/projecto-inocencia

É claro que tanto o facto de se encarcerar um inocente, como ilibar um culpado são nefastos para a sociedade. Só que a justiça coíbe-se teimosamente de tecer tais considerações, refugiando-se em algoritmos prejudiciais para a sociedade.

Miguel Madeira disse...

"Mas há imensos casos em que os criminosos são confessos"

Pois,mas se só vamos aplicar a pena de morte a criminosos confessos, estamos a criar um incentivo poderoso para que eles não confessem (com todas as desvantagens que isso terá)

"ou que a prova é claramente esmagadora "

Bem,supostamente todos os criminosos são condenados com provas esmagadoras (ou que o juiz assim o achou)

Agora, a respeito da ligação entre pena de morte, direito natural e liberalismo (espero que não se incomodem que um radical de esquerda deia palpite sobre um tema alheio): penso que foi Nozick que disse que qualquer teoria da propriedade teria que cobrir quatro itens - uma regra da aquisição original,uma regra da transferencia, uma regra do abandono e uma regra da restituição - e nunca passou daí. Neste caso, estamos perante a dificuldade de definir uma regra da restituição.

JLP disse...

"Pois,mas se só vamos aplicar a pena de morte a criminosos confessos, estamos a criar um incentivo poderoso para que eles não confessem (com todas as desvantagens que isso terá)"

Mesmo assim, e mesmo num sistema com "plea bargains" como o dos EUA, ainda há criminosos confessos. Nomeadamente porque há crimes em que a publicidade e o reconhecimento da sua autoria fazem parte do móbil destes. Já para não falar nos vários casos de confissões de crimes por pessoas que não os cometeram sequer.

"Bem,supostamente todos os criminosos são condenados com provas esmagadoras (ou que o juiz assim o achou)"

Bem, uma coisa será a razoabilidade da dúvida, que é o critério vulgarmente a bater em questões criminais. Outra será prova esmagadora. Acho que é possível separar ambas as coisas.

Uma coisa é uma pessoa ser condenada por exemplo por testemunhos, considerando-se que estes são idóneos e credíveis. Outra diferente são largas quantidades de provas físicas dificilmente irrefutáveis e que apontam todas no mesmo sentido. Já para não falar, como referi acima, na própria confissão de culpa pelo autor do crime.

"espero que não se incomodem que um radical de esquerda deia palpite sobre um tema alheio"

:-)

Os comentários sérios são sempre bem-vindos!

"Neste caso, estamos perante a dificuldade de definir uma regra da restituição."

No caso, se calhar seria dizer que os pais teriam direito a matar os seus filhos se achassem que tinham trazido mal ao mundo pela sua criação... ;-)

Isto considerando que foram os pais que doaram a vida aos filhos, e esperando legitimamente que este cumprisse um determinado enquadramento moral vigente.

De qualquer modo, penso que a solução geralmente apresentada, na minha leitura, em termos de Direito Natural no que toca à propriedade, é que esta é uma dádiva de Deus, adquirida legitimamente (no caso da integridade física) pelo acto da concepção, e que, como tal, somente Deus terá o direito de solicitar essa restituição, se se provar que essa transferência não obedeceu aos seus ditâmes.

Mas aceito que existiram outras construções...

Miguel Madeira disse...

"Mesmo assim, e mesmo num sistema com "plea bargains" como o dos EUA, ainda há criminosos confessos. "

Pois, mas acho a "plea bargain", em termos de incentivos, tem um efeito contrário à regra de aplicar a pena de morte para criminosos confessos - aí a confissão leva, em principio, à redução de pena (ou à retirada de acusações); pelo contrário, usar a confissão como argumento para a pena de morte consistiria um desincentivo à confissão.

"Já para não falar nos vários casos de confissões de crimes por pessoas que não os cometeram sequer."

Mais um bom argumento contra a pena de morte...

"Neste caso, estamos perante a dificuldade de definir uma regra da restituição."

O que eu queria dizer com este meu comentário acima era que todas as discussões acerca de qual a pena "justa" para determinado crime podem ser remetidas para a questão "se eu ofendo a propriedade de alguêm, quanto tenho que dar em troca?"

JLP disse...

"Pois, mas acho a "plea bargain", em termos de incentivos, tem um efeito contrário à regra de aplicar a pena de morte para criminosos confessos - aí a confissão leva, em principio, à redução de pena (ou à retirada de acusações); pelo contrário, usar a confissão como argumento para a pena de morte consistiria um desincentivo à confissão."

Sim, mas eu estava-me a referir exactamente ao facto de, mesmo existindo esse mecanismo, optarem por continuar a confessar sem chegar a nenhum acordo.

"Mais um bom argumento contra a pena de morte..."

Bem, nesse caso a questão passa a ser mais quase que um suicídio. E. para mim, toda a gente tem o direito de se suicidar. O problema passará, eventualmente, a ser o facto de o sistema judicial poder ser abusado para esse fim e de acabar por não atingir a verdade (apesar de eventualmente a própria condenação errada bastar como dissuasor para terceiros e como "retribution" para os da vítima). Ou seja, não será a morte que é errada, somente o processo para a atingir.

"O que eu queria dizer com este meu comentário acima era que todas as discussões acerca de qual a pena "justa" para determinado crime podem ser remetidas para a questão "se eu ofendo a propriedade de alguêm, quanto tenho que dar em troca?""

A questão é que essa perspectiva de "dano patrimonial" geralmente é o que preside à questão cível, não à questão criminal. No caso da questão criminal, para além da mera restituição, ainda existe a ponderação que se lhe acrescenta da pura sanção. Ora, sendo essa sanção uma construção eminentemente moral e que poderá emergir da agregação das vontades subjectivas de todo um povo, admito que possa atingir uma grande latitude, que poderá chegar no caso de alguns crimes à pena de morte.

Filipe Brás Almeida disse...

Considero que é o dever moral de todo o liberal de opor-se a todo e qualquer tipo de democídio.

Não existe qualquer justificação para a pena de morte, quer pelo factor dissuasivo, ou retributivo. O critério da justiça não é vingança, e o estado não pode possuir o direito de tirar a vida a alguém em quaisquer circunstâncias.

Em relação à noção do direito natural, se segundo os seus critérios liberais, a aplicabilidade e legitimidade de uma lei, requer a unanimidade de uma sociedade, então como com legitimidade pode reclamar e justificar o direito natural em si?

Filipe Brás Almeida disse...

*então com que legitimidade.

Ricardo G. Francisco disse...

Comentário aqui:


http://blog.liberal-social.org/direito-vida-e-a-pena-de-morte

JLP disse...

"Em relação à noção do direito natural, se segundo os seus critérios liberais, a aplicabilidade e legitimidade de uma lei, requer a unanimidade de uma sociedade, então como com legitimidade pode reclamar e justificar o direito natural em si?"

Como já referi, não sou adepto do direito natural...

JB disse...

Ora, sendo essa sanção uma construção eminentemente moral e que poderá emergir da agregação das vontades subjectivas de todo um povo, admito que possa atingir uma grande latitude, que poderá chegar no caso de alguns crimes à pena de morte. - JLP


Discordo da frase do João. O que as penas visam é evitar novos crimes. As penas olham para o futuro, não para o passado. Não se trata de retribuir um mal que o criminoso causou, mas sim evitar que ele cause novos males no futuro ou que outros, como ele, venham a ter essa ideia. Nada há de moralista na concepção das penas desde há, pelo menos, 100 anos. O que se quer é eficácia. Mas uma eficácia justa que não instrumentalize o criminoso para finalidades sociais como a pacificação da sociedade ou algo do género. Daí que não haja pena sem culpa e que a medida da pena esteja limitada pelo grau de culpa demonstrado no acto criminoso.