2007/05/25

Direito e Política I

"A minha tese, essencialmente, é que o excesso de "treino", ou seja, de ajuste de um sistema jurídico ou de uma filosofia política (na generalidade) e a ausência de regras bem definidas e cristalizadas, degrada progressivamente a sua capacidade de ajuste às caracteristicas fundamentais da sociedade que pretende compreender e interpretar. Ou seja, a tentação da excepção, do "mais um" ou do sacrifício de uma regra geral em prol de um suposto incremento de eficiência local degradam a própria capacidade de um sistema político (ou jurídico) em representar efectivamente as escolhas fundamentais e os princípios directores que regulam uma sociedade. - JLP
Caro João,


1) Parece-me que partes de expectativas erradas quanto ao papel que uma determinada teoria política pode ter na regulação dos infinitos problemas jurídicos que podem surgir. A ideia de que, por exemplo, uma constituição define os princípios que regulam a vida social e que, enquanto tal, se encontra no topo da pirâmide do sistema jurídico, embora correcta, será fantasiosa se se quiser com isso dizer que as soluções da maioria esmagadora dos problemas jurídicos encontram alguma resposta no texto constitucional. Tal, como é óbvio, não só não acontece, como não é desejável que aconteça. A nossa constituição é um retrato infeliz dessa utopia e os resultados estão à vista.
Por outro lado, se é verdade que nenhuma outra instituição - à excepção da Igreja - perdurou tanto no tempo como o Direito Romano, a verdade é que, a todo o tempo, surgem novos problemas, cuja solução não se pode esperar retirar dos princípios daquele direito. Se há crítica que se pode fazer ao direito civil nos países de tradição romanística é terem sido demasiado respeitadores do Direito Romano e terem quase que abdicado de encontrar respostas fora dele. Pese embora não haver nada mais perdurável que o direito civil, este comporta diferentes princípios que conflituam inúmeras vezes entre si. Dizia-me um Professor um dia que o Código Civil, ao contrário que se pensava, era um poço de contradições. São contradições produzidas pela tradição. Para dar exemplos, é natural que a boa fé e a liberdade contratual colidam; tal é apenas um sintoma de que recorrentemente se torna necessário limitar certos direitos negativos para proteger outros direitos negativos. É precisamente essa a tarefa do jurista: conciliar aquilo que se afigura, muitas vezes, inconciliável.

2) Acresce que o aplicador do direito trabalha essencialmente com leis que resultam do jogo democrático. Leis produzidas pela maioria parlamentar ou pelo governo ou pelas autarquias. Leis que, mal ou bem, como é próprio da democracia, tanto podem ser liberais, como social-democratas, como comunistas. Daí que, conquanto a preocupação com a coerência do sistema jurídico deva ser prioritária, será fantasioso esperar-se que o sistema jurídico seja governado por um conjunto limitado de axiomas e teoremas perfeitamente coerentes entre si. Nem é desejável que isso aconteça pela simples razão de que o sistema assenta na legitimidade democrática e se destina a resolver um conjunto infinito e extremamente heterogéneo de problemas. Não se pode esperar regular o casamento da mesma forma que se regula uma compra e venda. Também não se pode esperar regular contratos não negociados da mesma forma que se regula contratos negociados. Se se aplicasse regras uniformes a estas questões, o resultado seria trágico.

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