2007/02/01

A contracepção Just-In-Time


RU486, nome histórico do Mifepristone, percursor do aborto químico.

Num estranho consenso entre apoiantes do Não e do Sim no que toca ao próximo referendo, defende-se que ninguém quer o aborto, que este é um "último recurso", uma saída in extremis para uma situação limite. Os apoiantes do Sim demonstram até geralmente uma reacção quase pavloviana à mera sugestão de que o aborto possa ser empregue como método contraceptivo. Porque é "traumático", porque "deixa sequelas", porque "ninguém com juízo o fará".

Para ajudar ao cenário, são acenados cenários dantescos de mulheres amarradas a marquesas, operadas com instrumentos medievais, de raspagens "a frio". Do "dilema". Da "escolha difícil". É este cenário, o do aborto cirúrgico, que é em grande parte anunciado como dissuasor da tentação que possa presidir a utilizar-se o aborto como contraceptivo.

Sejamos sérios.

A perspectiva de que o aborto será feito por métodos cirúrgicos no prazo que os apoiantes do Sim pretendem que este seja livre, é uma farsa que importa desmontar. O aborto, no período até às 10 semanas, será feito essencialmente por meios químicos, ou seja, tomando fármacos em forma de comprimidos. Eventualmente, será seguido por uma consulta de ginecologia e/ou por uma ecografia para que se verifique o seu sucesso e a expulsão completa do feto. Será este o propalado e generalizado "trauma físico" que irá "dissuadir" as mulheres apartir da aprovação da nova lei, caso vença o Sim.

Senão vejamos o panorama nacional da contracepção, desde a generalização do acesso à pílula contraceptiva e ao preservativo, métodos que são aliás acessíveis com comparticipação plena pelos contribuíntes. Mesmo quando, por limitações da Medicina, o risco de se necessitar de recorrer ao aborto cirúrgico era substancialmente maior, tal parece não ter motivado a generalidade dos homens e das mulheres a recorrerem por sua iniciativa à contracepção, quando afinal eram estes os principais afectados pelos previsíveis resultados. De qualquer modo, houve apesar de tudo um grupo dominante que adoptou essa rotina de contracepção, à falta de melhor e mais conveniente para surtir o efeito desejado, e face aos riscos apresentados pelo cenário alternativo, enquanto outros se mantiveram a ignorar a contracepção, e a aceitar consciente ou inconscientemente os seus riscos.

Depois veio a pílula do dia seguinte. Também comparticipada (mas requerendo receita médica), ou acessível em qualquer farmácia (e até, anunciadamente, nos locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica), sem receita médica, por um preço que ronda os 10 euros. Um tremendo sucesso. A venda em formato livre da pílula do dia seguinte tomou rapidamente 90% do mercado de venda do fármaco, e tornou-se num sucesso de vendas a nível europeu. É fácil de presumir, pela própria expressão do volume do mercado do fármaco, que muitas das pessoas que faziam contracepção regular passaram a substituí-la por "contracepção ocasional", desmentindo na prática o carácter de "emergência" que lhe pretendiam conferir. Afinal, pelo progresso da Medicina, o cenário em caso de falha também tinha passado já por ir tomar uns comprimidos a Espanha, ou arranjá-los clandestinamente em Portugal, ou em último caso, recorrer ao aborto cirúrgico, em cenários bem mais plácidos do que dantes. Tudo cenários suficientemente remotos e "soft" para não motivarem a "chatice" e o "trabalho" da regularidade. Apesar disso, alguns continuaram a insistir em ignorar a contracepção, e a aceitarem consciente ou inconscientemente (o argumento da falta de informação não colhe: veja-se a velocidade com que se disseminou a pílula do dia seguinte) as suas previsíveis consequências.

E qual é agora o cenário que se anuncia? Agora, os comprimidos ocasionais de 10 euros, vão ser previsivelmente (cautelosamente e cuidadosamente ninguém desminte em contrário) substituídos, caso haja gravidez, por outros comprimidos (convenientemente ainda mais ocasionais), agora plenamente a expensas do contribuinte, e uma ou outra taxa moderadora. Ou seja, o contribuinte paga as pílulas e preservativos, paga algumas pílulas do dia seguinte, e previsivelmente pagará as pílulas abortivas e os exames médicos associados, tudo com a garantia de rapidez de prestação de serviço para que "encaixe" em dez semanas, enquanto as outras patologias esperam (e às vezes desesperam) pela sua vez.

É este o cenário de "dissuasão" e de "contracepção responsável" que se pretende promover. Aliado ao despontar de um previsível (e compreensível) mercado que se irá constituir para a prestação desse serviço, provável e previsivelmente a custas do SNS. Aos que esperam que sejam estes a promover a "contenção" e a "decisão consciente", contra os seus interesses económicos, bastará ver os exemplos apresentados por fontes (curiosamente) insuspeitas.

Compreende-se o pudor do Não em levantar o assunto. Afinal, não é de bom tom chamar "irresponsáveis" a uma tão significativa fatia do eleitorado, algum que até poderá estar indeciso.

Mas "escolhas"? Abortos que "ninguém quer"? Dilemas?

Quando muito, para muita gente, o dilema que restará será o de tomar os comprimidos com água ou sumo de laranja.

5 comentários:

Anónimo disse...

Eu acho que o JLP, em coerência, deveria defender aqui a proibição legal da pílula do dia seguinte, do preservativo, e da pílula. Todas essas coisas incitam à desresponsabilidade a expensas do contribuinte, portanto, todas elas deveriam ser proibidas por lei. Quem desse uma queca com camisinha, comprada a expensas do contribuinte, ia prá choldra. Assim é que estava certo.

Luís Lavoura

Anónimo disse...

Ainda piores do que aquelas mulheres que abortam com RU 486 comprada a expensas do contribuinte, são aqueles homens que, para evitarem sujar-se com esperma, usam preservativo comprado a expensas do contribuinte quando se masturbam. E que, ainda por cima, fazem isso regularmente, dia sim, dia não.

Deviam ir todos prá sombra, os sacanas.

Luís Lavoura

SMP disse...

Oh Luís, mas de uma vez por todas, porque é que insiste em misturar a questão das liberdades com a questão do financiamento do seu exercício?
Diga-me lá, a que propósito é que eu tenho de financiar as explosões amorosas do meu vizinho do lado?

Anónimo disse...

Oh SMP,

eu não misturei as liberdades com o financiamento do seu exercício. Quem o faz é o seu colega de blogue jlp. Ele é que quer proibir o aborto para impedir que ele seja financiado pelo erário público (tanto quanto percebo a posição dele - confesso que não a percebo bem). Eu apenas caricaturei a posição dele.

Luís Lavoura

JLP disse...

Caro Luis Lavoura,

Confirma-se que há pessoas que, por maioria de razão, deveriam ficar longe de qualquer tentativa de fazer humor...