Respondendo ao desafio...
Abusando descaradamente da minha posição privilegiada de co-blogueira, posto aqui, como defensora do sim, a minha resposta ao desafio do Carlos:
1.Concorda com a realização do referendo e a formulação da pergunta?
Na minha opinião, esta questão não é em abstracto referendável, porque interfere com uma liberdade da mulher que não deve ser sujeita ao escrutínio da maioria. Todavia, atendendo a que, presentemente, essa liberdade é invadida por uma proibição legal, estou interessada, principalmente, em que esta seja levantada. Acredito que isso deveria ter sido feito por via legal, sem recurso a plebiscitos de qualquer género. Mas também acho que, depois de se referendar a questão uma primeira vez (ademais tão próxima temporalmente), sem dúvida depois de se concluir (erradamente, digo eu) que a questão é referendável, seria muito pouco legítimo atentar contra a vontade expressa (mesmo que não conclusiva) dos cidadãos sem nova consulta.
Com a formulação da pergunta ainda concordo menos. Mistura duas questões que não têm relação nenhuma, a questão da criminalização do aborto com a questão do seu financiamento. Salta uma etapa lógica. Mas, do meu ponto de vista, o que verdadeiramente me incomoda é a intromissão ilegítima do Estado na liberdade das cidadãs e, nessa medida, votarei olhando unicamente a esse aspecto. O prioritário. O demais, terei que lutar para mudar depois. Entre os dois erros, aliás não cotejáveis – a criminalização do aborto e o seu financiamento pelo Estado – o primeiro é de longe mais profundo, mais essencial, mais preocupante para um liberal.
NOTA (em adenda posterior): Depois de ler o comentário do José Barros, fiquei a pensar que, efectivamente, a pergunta não contém nenhuma referência ao SNS ou ao financiamento do aborto. Todavia, não sei de que outra forma possa entender (aliás parece que o próprio Governo a entende dessa forma) aquela referência aos estabelecimentos autorizados, ou o que seja. É que, se o fulcro é a liberdade da mulher, pouca importância tem onde ela realize o aborto – o exercício das liberdades não deve exigir condições assim ou assado. O risco de o realizar em estabelecimentos duvidosos sempre correrá, aliás, por conta dela…
2.Qual a pena que pensa que deveria ser aplicada a mulheres que abortem com 3 meses de gravidez? E 6 meses?
Este é, a meu ver, um falso problema. A partir do momento em que uma mulher disponha de condições para decidir sobre a vida do feto, durante um tempo considerado razoável para tomar conhecimento do seu estado e ponderar, serenamente, sobre as suas opções, acho que a punição penal do aborto para além dessa moratória é justa. Exceptuam-se, evidentemente, casos em que aquele período de reflexão não tenha cumprido a sua função (por exemplo, a mulher não ter tido conhecimento, sem culpa, que estava grávida – e acontece, acreditem).
Quanto à pena concreta, provavelmente defenderia uma pena mais leve que a do infantícidio. O infantícidio está especialmente previsto na lei, e diferenciado do homicídio vulgar, porque se acredita (não estou a afirmar que concordo ou discordo, é uma questão de coerência do sistema) que o período pós-parto tem uma influência especialmente perturbadora sobre a mulher e que portanto aquilo que pareceria um homicídio pleno deve ter um quadro atenuado. Ora, mais perturbador que o parto, parece-me, é a gravidez. Por isto, assim de repente (mas mereceria maior reflexão) defenderia uma moldura especialmente atenuada (bastante!), mas ainda penal, e para ser cumprida em todos os casos em que o aborto pudesse ter sido perfeitamente realizado no período em que seria legal.
3.A partir de que período da gravidez deverá a mulher ser punida criminalmente pelo aborto?
Essa pergunta coloca-se como necessidade prática e só pode ter uma resposta, evidentemente, artificial. Coloca-se porque o que está em causa é a impossibilidade de obrigar uma mulher a levar uma gravidez a bom termo sem interferir ilegitimamente na sua capacidade para dispor do seu corpo. Ninguém deve obrigar outrem a fazer ou a não fazer com o seu próprio corpo determinada coisa, mesmo que em homenagem ao direito de um terceiro. Todavia, parece-me que para cumprir este princípio basta assegurar à mulher um período em que se possa desfazer dessa imposição indesejada. Se teve a possibilidade de legalmente a descartar, e não o fez, parece-me razoável que a primazia passe a ser dada ao direito do feto.
Este quadro implica, naturalmente, a necessidade de traçar uma linha. Não a linha de onde passa a haver vida humana, ou sofrimento, ou sistema nervoso central (pois que o único momento disruptivo, em todo o processo, é de facto o momento da concepção, além do do nascimento, claro), mas antes a linha traçada por outro critério: o do tempo necessário para a mulher reflectir e decidir, com razoável ponderação, a opção que pretende tomar. Parece-me que, em casos normais, o período proposto será razoável a esta luz, sempre salvaguardando casos em que em concreto não baste (porque, por exemplo, a mulher não teve qualquer sinal de que estava grávida).
4.Considera que o aborto deverá ser realizado e suportado pelo Serviço Nacional de Saúde?
De forma alguma.
5.Tem algum tipo de oposição moral à prática do aborto?
Remains to be decided, comigo própria. Mas isso não tem influência nenhuma na minha posição sobre a questão legal, nem as oposições de qualquer pessoa deverão ter.
6.Caso o SIM vença e o referendo não seja vinculativo, aceitaria a realização de um novo referendo nos próximos 10 anos?
Bem, abriu-se o precedente, por isso já não digo nada… mas penso que a repetição ad aeternum de referendos, quando se prova que a comunidade nada quer com o assunto, não dignifica o Estado Português.
7.Caso o NÃO vença e o referendo não seja vinculativo, defenderia a aprovação da lei no parlamento?
Ainda menos. Como comecei por dizer, acho que a questão está a priori fora da possibilidade de escrutínio pela maioria. Trata-se de uma liberdade, de um direito da mulher (não o de fazer um aborto, mas o de dispor do seu próprio corpo, também no sentido de não a poderem obrigar a levar a gravidez até ao fim) e, como dizia Dworkin, rights trump preferences. Always. Num estado ideal, claro.
Todavia, se não foi assim entendido e a questão é colocada a referendo, passar por cima da resposta das pessoas (vinculativa ou não) é ainda mais atentatório do Estado de Direito do que não compreender a irreferendabilidade da questão.
7 comentários:
Uma vez que não aceita que a IVG seja suportada e feita dentro do SNS, tem consciência que continuaram a existir "vãos de escada"(termo tão utilizado por defensores do sim).
Para si é de todo impensável, que o homem possa ter uma palavra sobre o acto de abortar.
A mulher abortando não estará a destruir um "conjunto de células" que por si só não consegue gerar.
Ainda bem que sabe o que tudo eu penso. Passando esse pormenor: não me interessa a que argumentos recorrem, em geral, os defensores do sim. Eu não me represento senão a mim própria, e voto neste referendo em defesa de uma liberdade (a da mulher a dispor do seu próprio corpo) e não de um direito positivo ao aborto. Não é no plano da liberdade, mas no da solidariedade, que os vãos de escada me interessam, e esses dois planos não devem ser misturados, muito menos com leis penais à mistura.
Quanto à palavra do homem, não é para mim “de todo impensável” que conte. Aliás, o direito a nascer do feto já gerado também conta. Não conta é mais do que a referida liberdade da mãe ao seu corpo. Só nos faltava agora, realmente, transformar isto numa guerra entre géneros.
(Reparei agora que ontem, ao fazer copy-paste do texto para o Blogger, o último paragráfo «fugiu». E os snehores co-blogueiros não me avisavam... ninguém deu por que assim como estava a coisa não fazia lá muito sentido?
Não, não sei tudo o que pensa, nem leve a mal as questões colocadas, isto de facto não é uma tentativa de agressão muito menos uma guerra.
Eu acho que a mulher(assim como o homem) sabendo que esta pode engravidar, ao não se proteger previamente ou depois, estão a assumir a responsabilidade por aquilo que daí possa advir, amenos que não tenham conhecimento. Coisa que infelizmente ainda acontece.
Não acha que isto colide com a liberdade da mulher e do homem, que quase nunca é responsabilizado.
Cumpr.
Eis o que eu acho: a perspectiva de que uma acção negligente do indivíduo deve forçosamente acarretar consequências perniciosas, ainda quando elas não sejam uma fatalidade, só se pode enraizar numa perspectiva moral da sociedade. Não vou discutir se esta é boa ou má, mas a minha opinião é que ela nunca deverá fazer lei. Obrigar uma mulher a ter um filho que ela não deseja (e portanto a sofrer as consequências nefastas de uma atitude impensada – se é que a teve), mesmo quando exista alternativa, é condenar o ser humano a um fatalismo estúpido e desprovido de sentido.
Quanto ao papel do homem (aqui com letra pequena), e sem prejuízo de achar que deve ter uma palavra a dizer (embora a última, como disse acima, tenha de ser da mulher por um exercício de ponderação de valores), está a colher, cultural e historicamente, o que cultural e historicamente semeou. Pode parecer politicamente incorrecto, e até feminista – de que não tem nada -, mas é uma pura e dura realidade. O que não quer dizer que não devamos e possamos tentar mudá-la. Mas as mulheres lutaram por séculos pelos direitos delas, não hão-de esperar com certeza que lutem também agora pelos dos homens!
Em todo o caso, porque não é do direito a dispor da vida do feto que se trata (esse seria dos dois progenitores) mas do direito a dispor do corpo da mãe, o paradoxo será sempre resolvido a favor da mulher.
smp,
Vejo aqui um pouco de desilusão e individualismo, mas apesar de não concordar com tudo, aceito.
Cumpr.
JB:
Não concordo. Se o que se trata é meramente de o Estado deixar de interferir no que é uma liberdade da mulher – como eu penso que seja -, a menção não faz sentido. Corre por sua conta o risco de escolher mal as circunstâncias em que efectiva o aborto.
O meu sim não tem nada a ver com o aborto clandestino, excepto na medida em que ele seja clandestino por ser ilegal. Acho, por isto mesmo, completamente bizarra a ideia de punir penalmente uma mulher que faz um aborto antes das 10 semanas (concedendo que o sim ganhará) pelo simples facto de o fazer fora de um estabelecimento «legalmente autorizado».
De resto, tenho sérias dúvidas que a menção em causa tenha sido introduzida por outra razão que não para misturar as águas e pôr um sim no referendo de dia 11 a avalizar o financiamento do aborto pelo Estado, quando a questão da liberdade e a questão do financiamento não têm qualquer relação uma com a outra.
O problema social do aborto clandestino, na medida em que se prove que ele não deriva apenas da necessidade das mulheres se furtarem à sanção penal, tem de ser resolvido, mas não devia ser disso que se tratava aqui. É pular um salto lógico. Uma coisa de cada vez.
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