Domínio público
Tal como este vereador da Câmara Municipal de Coimbra, também acho que «todo o estacionamento público deveria ser pago». Como escrevi anteontem no meu artigo do «Público» (em breve disponível na Aba da Causa), a posse de um automóvel não confere nenhum direito à ocupação privativa do espaço público.As intenções do referido vereador da CMC não serão difíceis de compreender. Afinal as receitas do pagamento do estancionamento serão sempre bem-vindas para equilibrar os orçamentos camarários. Mas o apoio de Vital Moreira, sustentado numa posição de princípio, já é mais difícil de aceitar. Em primeiro lugar, porque tenta colar um utilização essencialmente temporária de espaço do domínio público para estacionamento a uma suposta "ocupação". Ora nem o estacionamento está normalmente revestido do carácter permanente ou pelo menos prolongado no tempo de uma ocupação (como acontece por exemplo com o abandono de viaturas no domínio público), nem é intenção do condutor a aquisição de um particular direito real sobre a parcela do domínio público que temporariamente utiliza.
Vital Moreira, na Causa Nossa.
Além disso, há uma questão de legitimidade e de propriedade. O domínio público não é propriedade camarária, nem sequer, poder-se-ia discutir, propriedade pública. É território que pode ser usufruido em liberdade por todos, numa perspectiva de respeito pela liberdade de usufruto de todos os outros do mesmo espaço. Não sendo propriedade camarária, será portanto quanto a mim muito discutível o suposto "direito" que assiste às câmaras municipais de, estas sim, se apropriarem do domínio público e fazerem, no fundo, uma exploração comercial desse espaço que não lhe pertence, já que a cobrança de valores afectos ao estacionamento nem sequer se prende a uma lógica de sustenção dos custos de manutenção do referido lugar de estacionamento, mas sim a uma lógica completamente comercial e especulativa num mercado em que impõe o seu monopólio por força do poder coercivo do estado.
Porque, se falamos em limitar o usufruto exclusivo de parcelas do domínio público, qual será a próxima etapa: taxar os velhotes que ocupam os bancos e mesas do jardim a jogar à sueca? Taxar os banhistas pelo espaço que ocupam na areia? Taxar os barcos pelo espaço que ocupam quando estão fundeados nos rios, lagos ou no mar? Taxar os piqueniques?
12 comentários:
A questão de legitimidade e propriedade também existe em relação ao automobilista. Como o espaço em que estaciona não é dele, não é legítimo que nele estacione. Ao estacionar, está a impedir de forma mais ou menos permanente o usufruto desse espaço por outrem.
Na prática, o argumento justifica a manutenção de "baldios", com todas as consequências gravosas que a sua sobre-utilização acarreta. Numa situação de baldio sobre-explorado, a solução é: privatizar. E é isso que tem que ser feito ao espaço de estacionamento. A privatização é, de facto, uma solução extra-legal, mas é, não obstante, uma solução necessária, sob pena de males ainda piores.
Ou seja: é verdade que o espaço de estacionamento não pertence às Câmaras Municipais. Mas também é verdade que, se o estacionamento não fôr taxado, o caos imperará. Logo, é imprescindível que, de uma forma ou de outra, o estacionamento seja privatizado - que passe a pertencer a alguém, que dele cuida e que o vende ou aluga a quem dele precisa. Esse alguém pode ser a Câmara Municipal ou um privado, para o efeito tanto faz. Mas é imprescindível.
Luís Lavoura
"numa perspectiva de respeito pela liberdade de usufruto de todos os outros do mesmo espaço"
Isto é uma visão decididamente idílica do estacionamento.
Nas cidades portuguesas, não é claramente esta perspetiva que impera.
Luís Lavoura
Luis Lavoura,
"Ao estacionar, está a impedir de forma mais ou menos permanente o usufruto desse espaço por outrem."
Dificilmente acho que seja considerável que o estacionamento é uma ocupação permanente ou sequer semi-permanente. Aliás, o próprio Código da Estrada, actualmente e ao que sei, já limita no tempo o que é considerado como estacionamento (válido). O usufruto do domínio público não tem que ser uma anarquia nem ser privado de regras. Mas a orientação destas regras deve ser essencialmente para mecanismos reguladores, e não para esquemas de "engenharia social" de previlégio ou penalização de meios de transporte.
Não vai ser de mim que vai ouvir nada contra a privatização do estacionamento. Mas atenção: eu compreendo a propriedade privada como sendo absoluta, e também acho que é inevitável que, para além do estacionamento, também as vias fossem privatizadas. É uma consequência óbvia.
Não sei se o Luis Lavoura partilhará dessa perspectiva, mas ficando a coisa no "meio caminho", acho que seria de todo inaceitável.
Além de que essa questão encerra quanto a mim um problema maior: das duas uma, ou essa "privatização" seria feita por concessão, e portanto sem efectiva transferência de propriedade, ou caso fosse feita integralmente por venda da propriedade, levanta-se a questão de como (e seguindo que regras) é que é legítimo ao estado alienar parcelas do domínio público.
Pensando melhor, corrijo a minha tese de ontem.
As ruas já hoje são de facto, legalmente, propriedade das Câmaras Municipais. As CM têm o direito legal de decidir, em cada rua, onde é passeio para peões, onde é faixa para circular, e onde é local para estacionar. Experimete o JLP instalar uma cadeira na faixa de rodagem de uma rua e sentar-se nela a apanhar sol, dizendo que está a "usufruir do espaço público", e logo verá aparecer um polícia a explicar-lhe que não pode estar ali, porque a faixa de rodagem está destinada, pela proprietária do espaço público - ou seja, pela CM -, à circulação de automóveis.
Ou seja, já hoje, legalmente, o espaço público das cidades tem um proprietário - a CM.
A questão não é, pois, uma de privatização. A questão é apenas saber se o proprietário do espaço público - a CM - pode cobrar dinheiro por certas formas da sua utilização. É uma questão que legalmente ainda não está decidida.
Se o JLP defende que o espaço público não é das CM, pois bem, está errado. E felizmente está-o porque, se não, reinaria a anarquia e a luta no espaço público, com pessoas sentadas a apanhar sol no meio das ruas, outras a cagar nos passeios, e assim por diante.
Luís Lavoura
Portanto, a perspetiva do JLP está errada: já hoje as Câmaras Municipais têm legalmente o direito de "limitar o usufruto exclusivo de parcelas do domínio público". As CM determinam que os velhotes podem jogar à sueca nos bancos do jardim, mas não numa mesa instalada no meio do passeio; que os automobilistas podem estacionar nas faixas laterais, mas não nos passeios; etc.
A questão é apenas saber em que medida as CM podem COBRAR pela utilização do espaço público. Ora, já hoje as CM são autorizadas a cobrar pelo estacionamento. E ainda bem - antes de haver parquímetros reinava a maior anarquia no estacionamento, com pejuízo, sobretudo, para a parte mais fraca - os peões.
Portanto, se as CM já hoje são autorizadas a cobrar pelo estacionamento, nada obsta, em termos legais, a que cobrem também pelo estacionamento de residentes.
É claro, o JLP pode discordar disto tudo. Pode achar que o estado de anarquia é que era bom. Cada um jogava à sueca onde queria, circulava ou estacionava pelos passeios para peões, etc. Era a lei da selva, a lei do mais forte. Eu, por mim, não desejo isso.
Luís Lavoura
Ou seja, já hoje, legalmente, o espaço público das cidades tem um proprietário - a CM.
Não se deve confundir propriedade de uma coisa com o poder para a gerir. Ao dizer-se que uma coisa é domínio público, está-se a afectar a mesma a um regime especial, que exclui a possibilidade de ela ser propriedade da Câmara ou, já agora, de um privado. As Câmaras têm direito de propriedade sobre certos espaços e edifícios, mas não é sobre aqueles que estão em domínio público.
"As ruas já hoje são de facto, legalmente, propriedade das Câmaras Municipais. As CM têm o direito legal de decidir, em cada rua, onde é passeio para peões, onde é faixa para circular, e onde é local para estacionar."
Como bem refere a Sandra, uma coisa é ser proprietário, outra coisa é ter-lhe sido delegado um poder de gestão.
A CM não estabelece o que é que se pode ou deixa de poder fazer nos passeios. Quem o faz é o estado, atravéz de legislação específica que regula o comportamento nas zonas que sejam destinadas à função de via pública. Quem diz o que pode ou não ser feito nos passeios e nas vias é o Código da Estrada. Mesmo podendo, em certos casos, a CM alterar a classificação de uma determinada parcela do domínio público de espaço "livre de passeio" para via, o que faz é tão somente mudar o enquadramento de regras que condicionam esse espaço, mas que não é seu poder alterar. Não se limita o usufruto do DP: o que se faz é afectar esse DP a novas regras de usufruto. Não tem, portanto, vários dos poderes que assistem o proprietário (mesmo no actual enquadramento do direito de propriedade) sobre a sua propriedade.
Naturalmente que existem certos casos em que efectivamente as CM são proprietárias, como por exemplo no caso de algumas vias municipais que foram resultado de expropriação (e não eram, portanto, sequer domínio público). Nesse caso, efectivamente houve propriedade que mudou de mãos.
Aliás, sinal de ser essencialmente uma competência do estado e não das CM a regulamentação de como se usufrui do domínio público é o facto de, por exemplo, os sinais de trânsito que estabelecem zonas de proibição ou permissão (paga ou não) de estacionar (bem como os outros sinais) terem que ser homologados pelo estado, nomeadamente registando-se a sua localização. Além disso, a fiscalização e a autuação de violações ao CE compete à polícia, no exercício do seu mandato nacional, e não a nenhum orgão camarário. A legitimidade dos poderes supostamente atribuídos a organismos como a EMEL é há muito motivo de discórdia e são, quanto a mim, uma situação clara de abuso e de violação das regras e do espírito que rege o poder policial.
Concordo com a Sandra e com o JLP quando clarificam que as Câmaras não têm a propriedade do espaço público, mas sim o poder da sua gestão.
Em particular, têm o poder da gestão do estacionamento. As CM podem (e devem) determinar que parcelas do espaço das ruas são destinadas a estacionamento, e em que parcelas é proibido estacionar.
A questão que se levanta é, pois, a de saber se as CM podem cobrar pelo estacionamento e, em particular, pelo estacionamento de residentes.
Na lei, de facto, tal competência não estava inicialmente prevista, tal como ainda não está prevista a possibilidade de as CM cobrarem pelo acesso automóvel aos centros das cidades.
Trata-se de facto de competências distintas: a gestão, e a possibilidade de cobrança.
Porém, no caso do estacionamento, parece-me espantoso que uma pessoa liberal e de direita objete contra a cobrança de um serviço prestado, ainda para mais quando se trata de um bem escasso como é o espaço para automóveis no centro das cidades.
Havendo um bem objetivamente escasso, como é o local de estacionamento, parece-me claro que dos deveres de gestão das CM faz parte a gestão de quem, e em que circunstâncias, pode utilizar esse bem. As CM têm de facto o direito de dizer que certos locais de estacionamento são reservados a táxis, ou a deficientes, ou a cargas e descargas, ou a transportes coletivos, etc.
Parece-me, e julgo que é consensual entre os liberais, que a gestão através do preço é a forma mais livre de gerir um espaço escasso e muito procurado. As alternativas são muito piores e menos liberais.
Faço notar que o Movimento Liberal Social aprovou, na sua última Assembleia-Geral, uma moção a favor da alteração da lei no sentido em que seja permitido às CM cobrar pelo acesso automóvel aos centros das cidades, a exemplo daquilo que já se faz em várias cidades no mundo.
Luís Lavoura
"a fiscalização e a autuação de violações ao CE compete à polícia, no exercício do seu mandato nacional, e não a nenhum orgão camarário"
Isso era dantes.
Atualmente, e por modificação da lei, há outros órgãos que têm competência para fiscalizar e punir violações ao estacionamento.
Isto faz todo o sentido, dado tratar-se de uma função muito especializada.
Faz sentido, para uma maior eficiência e rapidez na deteção e punição das infrações, ter uma entidade especializada para vigiar o estacionamento.
Também, dado que o estacionamento é um serviço que é utilizado apenas por uma parte restrita da população, é justo (e correto, em termos liberais e económicos) que seja apenas essa parte da população a suportar os custos da gestão desse serviço, em vez de eles serem pagos por toda a comunidade através do órgão menos especializado que é a polícia.
Portanto, foi muito benvinda a alteração da lei no sentido de que as entidades gestoras do estacionamento pudessem, diretamente, punir as violações ao código do estacionamento.
Quem objeta a tais alterações só pode ter um objetivo: o do retorno à anarquia no estacionamento, a da permissão da violação da lei.
Luís Lavoura
"Em particular, têm o poder da gestão do estacionamento. As CM podem (e devem) determinar que parcelas do espaço das ruas são destinadas a estacionamento, e em que parcelas é proibido estacionar."
Como já referi acima, esse não é um poder que pode ser exercido com autonomia pelas CM. Nomeadamente porque a obrigação de sinalizar esse facto é uma competéncia do estado central, e não das CM.
"Porém, no caso do estacionamento, parece-me espantoso que uma pessoa liberal e de direita objete contra a cobrança de um serviço prestado, ainda para mais quando se trata de um bem escasso como é o espaço para automóveis no centro das cidades."
O liberal de direita objecta quando vê uma instituição cobrar pelo exercício do seu poder coercivo um serviço que não é prestado. A CM não presta um serviço porque o terreno que afecta ao estacionamento não é seu para dispor, como tal não podendo "arrendar" um espaço que não é seu. Qual é o serviço?
Eu não tenho nada contra o pagamento do estacionamento num cenário em que se procedesse a uma efectiva privatização do domínio público. Mas, como já referi, isso levanta questões mais genéricas e complexas sobre quem tem e seguindo que procedimentos legitimidade para o fazer.
"Isso era dantes."
Pois, lá está. Aparentemente, a demissão do estado de uma das suas competências exclusivas, e a banalização de actividades que se deviam restringir à esfera policial aparentemente parecem colher ainda aplausos de alguns "liberais". Com que direito é que um funcionário da EMEL, que não foi investido de qualquer fé pública, se arroga num processo sumário a bloquear um automóvel, na prática sendo "polícia, juiz e executor" num claro abuso das mais elementares regras?
"Isto faz todo o sentido, dado tratar-se de uma função muito especializada."
Especializada em quê? Quer dizer que a polícia, que lida com crime económico, crime informático e outras formas essas sim especializadas de crime, que tem uma brigada de trânsito e polícia especialmente afecta nas grandes cidades à fiscalização do trânsito não consegue meter uns papelinhos nos vidros dos carros?
A "entidade especializada por fazer cumprir a lei" é a Polícia e são os Tribunais. Tudo o resto são tendências totalitárias e securitárias de um estado que não olha a meios para encher os cofres, demitindo-se das suas competências mais básicas.
"Também, dado que o estacionamento é um serviço que é utilizado apenas por uma parte restrita da população, é justo (e correto, em termos liberais e económicos) que seja apenas essa parte da população a suportar os custos da gestão desse serviço, em vez de eles serem pagos por toda a comunidade através do órgão menos especializado que é a polícia."
Pelos vistos não é uma parte assim tão insignificante, senão não havia sequer problema. Mas não deixo de assinalar uma deriva, no mínimo perigosa: a de associar o princípio do utilizador-pagador à Justiça e ao Estado de Direito.
"Portanto, foi muito benvinda a alteração da lei no sentido de que as entidades gestoras do estacionamento pudessem, diretamente, punir as violações ao código do estacionamento."
Entidades gestoras a punir? Acho que estou esclarecido.
O Estado central delega o poder de gerir o espaço de estacionamento nas Câmaras Municipais, que são órgãos locais do Estado. As Câmaras Municipais são o Estado, a nível local.
Quem passa multas de estacionamento não precisa de andar armado nem de estar investido de poderes globais de autoridade pública. É uma autoridade pública, mas apenas para os efeitos restritos do estacionamento. Não se chama "polícia" mas tem efetivamente os poderes estatais para verificar e sancionar o cumprimento das leis. O Estado delega em quem quer os seus poderes. Pode chamar-se "polícia" e andar armado, ou não, se tal não fôr considerado necessário.
É claro que as Câmaras Municipais prestam um serviço ao deixar um cidadão estacionar num determinado local público. Esse local é público, não é do cidadão, logo, o cidadão não tem a priori o direito de lá colocar um pertence seu. Se eu colocar a minha cama no meio da rua, tal não é permitido. No caso especial do meu carro, por outro lado, a Câmara presta-me o serviço de me deixar guardá-lo na rua. Se a Câmara não me prestasse tal serviço, eu seia obrigado a pagá-lo a uma garagem, ou a comprar eu mesmo uma garagem. É justo que, já que a tal não sou obrigado, tenha que pagar à Câmara o serviço que ela me presta. Até porque esse serviço prestado pela Câmara o é em prejuízo de outros cidadãos, os quais ficam privados de ususfruir do espaço público que eu estou a ocupar com o meu carro.
Luís Lavoura
Está tudo muito bem. Só resta agora perguntar para que serve então a "monstruosa" carga fiscal incidente sobre os automóveis? Ou o Estado não sabe que cada carro vendido, com os correspondentes impostos cobrados não só nesse momento mas também no futuro sob a forma de IVA nos seguros obrigatórios, peças, serviços de mecânica, combustíveis, portagens, etc, etc, vai circular e, naturalmente, estacionar?
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