2006/11/16

Aborto III

As minhas razões porque sou a favor do aborto:

  1. Defendo que o aborto seja livre, a pedido da mulher, até às 20-22 semanas, e até à data do nascimento no caso de deficiências graves (que comprometam fisicamente a sobrevivência) como a anencefalia. Acredito que quem não adquiriu a autonomia potencial de sobreviver a cargo de terceiros ou do estado pelos seus próprios meios, de forma espectável e científicamente sustentada, não deve ser portador de direitos, liberdades e garantias constitucionais. Ora o consenso científico sustenta, no presente, que tal ponto de viragem se atinge por volta das 22 semanas de gestação, sendo que os casos relatados que existem de nascimentos prematuros depois desta data sustentaram razoáveis probabilidades de sobrevivência. Sobre isso, leia-se a recente tomada de posição do Nuffield Council on Bioethics, do Reino Unido, no sentido de que não se deve promover a rescuscitação nem prestar cuidados intensivos a prematuros nascidos até à 22a semana (inclusivé), uma vez que se verifica que a vida desses nascituros é geralmente curta, para além de desenvolverem deficiências graves. Até em termos de costume, a situação tem sustentação no território português: é prática corrente dos hospitais que os abortos espontâneos para além das 20 semanas sejam inscritos no livro de partos e sepultados, à semelhança do que aconteceria em qualquer momento posterior de gestação ou se morresse durante o parto, enquanto que antes dessa data tal não acontece.
  2. Não aceito que, em nenhuma circunstância, os custos relativos ao aborto (se praticado sem motivo de força maior, como o perigo para a mãe ou caso este tenha sido gerado por consequência de uma violação) sejam custeados pelo SNS ou por qualquer estrutura pública semelhante. O aborto não é um cuidade de saúde primário nem de primeira necessidade, não previne nenhuma situação que atente contra a integridade física e segurança da mãe, e a gravidez pode ser prevenida pela utilização de inúmeros métodos contraceptivos (eventualmente, como no nosso caso, até compartecipados em pleno) que permitem à mulher tomar a decisão de não engravidar plenamente no âmbito da sua esfera individual, sem a interferência de terceiros.
  3. Defendo que, posteriormente ao período referido, o aborto seja considerado crime de homicídio doloso, ou pelo menos enquadrado no crime de infanticídio, mas que paralelamente seja concedido à mulher o direito de provocar o parto em qualquer instante posterior às 20-22 semanas e até ao nascimento. Nesse caso, deverá caber ao estado o apoio ao nascituro, e a condução do processo no sentido de posterior adopção.
  4. A intenção de abortar deverá obrigatoriamente ser comunicada ao pai. No caso de este se opôr ao aborto, tal deverá constituir causa justa para divórcio litigioso (caso sejam casados) e, também nesse caso, legitimar pela quebra precoce do contrato de casamento, indemnização em termos de responsabilidade contratual.
  5. Também o pai deverá ter o direito de solicitar que a mulher aborte. Caso esta recuse, este deverá ter o direito de negar futuro apoio à criança, bem como excluir quaisquer direitos da criança sobre ele advindos da paternidade. No caso da mulher aceitar abortar, esta será também justa causa de divórcio litigioso para esta, bem como conferir-lhe-à o direito a indemnização nos mesmos termos do ponto anterior.
  6. O legislador deverá escusar-se de transpor em letra de lei considerações de índole moral, nomeadamente quando não são unânimes para uma larga (sublinho, larga) faixa dos cidadãos. O que não inviabiliza que aqueles que tenham considerações pessoais, morais, religiosas e éticas no sentido de restringir as liberdades enunciadas devam ter toda a liberdade de as exercer limitando-se, obviamente, à sua esfera pessoal.

5 comentários:

SMP disse...

1. Quem pode o mais, pode o menos. Se aceitas o aborto até esse limite alargado, parece-me evidente que o aceitas também até ao limite, mais modesto, previsto pelo projecto actualmente em discussão. Pelo que nos mantemos na mesma: a única razão válida para o teu (válida do teu ponto de vista, evidentemente)são os concretos contornos deste projecto de despenalização e, do que julgo ter concluído de anteriores debates, a alegada leviandade genética dos portugas.
2. Estamos de acordo no ponto, mas não quanto à relevância que o ponto deve ter no momento da resposta ao referendo.
3. A primeira parte, parece-me bem. Espero que saibas, todavia, que o infanticídio é um homicídio atenuado. Reza o artigo 136º do Código Penal: “A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos.” No fundo, segundo sempre me pareceu, trata-se de dar cobertura legal à depressão pós-parto. E no nosso caso? Justificar-se-ia tratar-se de um infanticídio? Não há depressão pós-parto; mas há gravidez, que é um estado não menos perturbador…
Quanto à segunda parte da tua proposta, parece-me perfeitamente orwelliana. E já agora levanta a questão: quem é que paga esse parto provocado? E a que propósito é que o Estado que até dá a mulher a possibilidade de atempadamente abortar vai arrostar com o encargo de um filho cuja responsabilidade é de dois cidadãos perfeitamente livres e capazes de decisão? Isso é mil vezes pior que pôr o SNS a fazer abortos à nossa custa.
4. Isso é inviável para muitos dos casos em que o pai não é o marido. E se a mulher não sabe quem é o pai? E como vai provar-se que sabia ou não sabia?
Causa de divórcio litigioso: como já aqui foi dito, já pode ser enquadrada como tal. Quanto à indemnização contratual, já expliquei que isso não se coaduna com o actual figurino jurídico da filiação, muito menos do casamento. E, de qualquer forma, sempre seria contra, ainda que juridicamente não me parecesse abstruso.
5. O direito de ter ou de não ter um filho que já está concebido não existe de per se. A única razão que legitima a sua existência, para a mulher, é a circunstância de ser uma violência obrigá-la a carregar dentro do seu corpo um ser que não se confunde com ela, com todas as limitações que isso implica. Procurar arranjar aqui uma simetria exacta para o caso do pai poderá parecer muito prafrentex e muito igualitário mas é ignorar completamente a razão de ser das coisas. O direito de abortar não pode ser concedido ao homem pela simples razão de que essa operação não se produz no seu corpo.
Por esta razão, evidentemente que acho que o homem pode solicitar o que entender, mas que nada o deve eximir das responsabilidades perante o filho. Até porque estas responsabilidades são mesmo perante o filho e não perante o Estado ou perante a mãe do filho. Logo, nenhum acordo ou desacordo anterior ao nascimento, e em que a criança evidentemente não possa ter participado, podem quebrar os deveres que cabem ao pai. Como a mãe também nunca deverá poder, tendo a criança, ficar eximida desses deveres.
A última frase (“no caso da mulher aceitar abortar, esta será também justa causa de divórcio litigioso para esta, bem como conferir-lhe-á o direito a indemnização nos mesmos termos do ponto anterior”) não faz sentido. Admitindo que existia uma expectativa tutelada legalmente de um dos cônjuges à filiação, e à sua aceitação pelo outro, ao aceitar o aborto a mulher estaria a renunciar voluntariamente a esse direito. Como poderia depois vir pedir o divórcio litigioso? Seria um abuso de direito, pois que ela própria deu o consentimento para o aborto.

JLP disse...

1- A questão é que, enquanto a situação actual proposta propõe um período "caído do céu", o que proponho é um critério objectivo, que se poderá julgar com clareza e, também importante, acompanhar e reavaliar com o progresso da Ciência.

"Pelo que nos mantemos na mesma: a única razão válida para o teu (válida do teu ponto de vista, evidentemente)são os concretos contornos deste projecto de despenalização [...]"

E não é isso que vai ser votado?

2- Certo. É uma questão de opinião. De um ponto de vista liberal acho que é um ponto que não pode ser ignorado nem deve desmerecer a sua relevância.

3- Pessoalmente apontaria para o homicídio doloso, mas havendo no Código Penal em análise um crime de infanticídio, não acho descabido que fosse integrado neste, partindo dos pressupostos que também referes.

"E já agora levanta a questão: quem é que paga esse parto provocado?"

Isso é, quanto a mim, um problema mais lato do que a questão em causa, que é o da maternidade numa sociedade e num enquadramento constitucional e funcional legal, nomeadamente se o parto faz ou não parte das atribuições que seria legítimo atribuir a uma safety net, sendo resultado de um comportamento planeável e evitável pelos seus protagonistas. Sou tentado a achar que sim, porque acho que nesse caso faz sentido a defesa da vida do nascituro, providenciando-lhe um nascimento tecnicamente seguro. Ou seja, acho que é uma competéncia do estado assegurar ou trabalhar em prol do sucesso do nascimento. É uma outra discussão, com grandes repercursões, que se poderá também ter, mas resolvido esse caso, não vejo em que é que fosse muito diferente o assegurar desse direito a quem nasce ao fim do tempo normal ou a quem nasce prematuramente, quaisquer que sejam os motivos.

4-

"Isso é inviável para muitos dos casos em que o pai não é o marido. E se a mulher não sabe quem é o pai? E como vai provar-se que sabia ou não sabia?"

No caso de alegar não saber quem é o pai, tudo passará a ser uma questão de prova. Como actualmente tal acontece, sendo uma obrigação do MP enveredar os esforços necessários para o tentar identificar.

A prova do conhecimento deveria ser feita por preenchimento de um formulário, à semelhança do que acontece nos casais quando se pretende fazer uma laqueação de trompas.

5-

"Por esta razão, evidentemente que acho que o homem pode solicitar o que entender, mas que nada o deve eximir das responsabilidades perante o filho. Até porque estas responsabilidades são mesmo perante o filho e não perante o Estado ou perante a mãe do filho. Logo, nenhum acordo ou desacordo anterior ao nascimento, e em que a criança evidentemente não possa ter participado, podem quebrar os deveres que cabem ao pai."

Não concordo. Assim como defendes que a decisão do pai não tem legitimidade por dizer respeito ao corpo de outra pessoa, não aceito que a decisão da mulher, em clara oposição com o pai, possa ter repercursões na propriedade do pai. Mais uma vez, trata-se de uma questão de responsabilidade. A decisão da mãe em querer prosseguir com a gravidez deve ter em conta que o ónus desta lhe cabe a si, não que vai ser amortizada criando uma externalidade em quem não tem qualquer poder de decisão, pelo que dizes, no assunto.

"Admitindo que existia uma expectativa tutelada legalmente de um dos cônjuges à filiação, e à sua aceitação pelo outro, ao aceitar o aborto a mulher estaria a renunciar voluntariamente a esse direito. Como poderia depois vir pedir o divórcio litigioso?"

São para mim questões separadas. Uma é ter que fazer algo partindo do princípio que a decisão não é um monopólio seu. Outra é achar que o ter sido forçada a isso viola o pacto de solidariedade nas decisões do casal que estabeleceu aquando do casamento.

SMP disse...

Para não estarmos eternamente a discutir diferenças de perspectiva, vou tocar só no ponto 5:

"Não concordo. Assim como defendes que a decisão do pai não tem legitimidade por dizer respeito ao corpo de outra pessoa, não aceito que a decisão da mulher, em clara oposição com o pai, possa ter repercursões na propriedade do pai."

Propriedade do pai ?!!! Espero bem que não estejas a falar da criança... evidentemente, não é por achar que a criança seja propriedade da mãe que lhe quero conceder o direito a fazer um aborto!

"Mais uma vez, trata-se de uma questão de responsabilidade. A decisão da mãe em querer prosseguir com a gravidez deve ter em conta que o ónus desta lhe cabe a si, não que vai ser amortizada criando uma externalidade em quem não tem qualquer poder de decisão, pelo que dizes, no assunto."

É curioso: umas vezes, tu pareces ter a perspectiva que, gerado um filho, o natural, o de acordo com todas as expectativas, para ambos os progenitores, é tê-lo; outras vezes, partes subitamente para a perspectiva de que afinal ter um filho já concebido é uma decisão deliberada que deve constituir um ónus para quem a toma.


"São para mim questões separadas. Uma é ter que fazer algo partindo do princípio que a decisão não é um monopólio seu. Outra é achar que o ter sido forçada a isso viola o pacto de solidariedade nas decisões do casal que estabeleceu aquando do casamento."

Por outras palavras, tem-se um direito que se não pode exercer. Nada na lei funciona dessa forma.

JLP disse...

"Propriedade do pai ?!!! Espero bem que não estejas a falar da criança..."

Não estava... Falava da outra! ;-)

"outras vezes, partes subitamente para a perspectiva de que afinal ter um filho já concebido é uma decisão deliberada que deve constituir um ónus para quem a toma."

Não será uma decisão deliberada, mas é fruto de uma omissão e resultado de uma demissão objectiva de agir em sentido contrário.

"Por outras palavras, tem-se um direito que se não pode exercer. Nada na lei funciona dessa forma."

Claro que se pode exercer. O que não quer dizer que o seu exercício seja isento de responsabilidades.

Quanto à questão da lei, "argumento positivista"? ;-)

Anónimo disse...

que coisa linda este ponto 5...

c'um caralho, ele há cada tarado à solta