O meu pedacinho de Arroja
Acho que em todo este "affair" Pedro Arroja, que só pude acompanhar em fase já algo tardia, a reacção tem sido um pouco de cabeça quente e, na generalidade da blogosfera lusa, com contornos no mínimo pavlovianos.
Acho que tem passado um pouco à margem o contexto temporal em que a entrevista foi feita. Não nos podemos esqueçer que passaram entretanto 13 anos, e que, nomeadamente, a Internet que na altura era um previlégio de alguns universitários nos cursos certos, passou a ser disseminada e foi em grande parte responsavel por um abrir das consciências das pessoas a um mundo maior em redor.
Sem dúvida que para muitos os que hoje acampam na blogosfera mas têm ainda a sua cabeça em ideais e em causas muito mas muito anteriores à data da entrevista, o tratamento a dar a Pedro Arroja vai ser o mesmo de freak-show que foi dado na época e que aliás transparece bem na participação de Fernanda Câncio na entrevista. Veja-se como o João Miranda é também ainda muitas vezes alvo do mesmo exacto tratamento por muitos os que o interpelam e que dele falam.
Mas os tempos mudaram, e em muito a mentalidade das pessoas. Se em 1993 o Pedro Arroja falava essencialmente para a parede e para meia dúzia de carolas, hoje em dia a abertura de espírito acontecida entretanto fez com que hajam já bastantes que não estranham as suas teses e, pasme-se, para quem as quais já passaram a fazer algum sentido.
Naturalmente que concordo que, individualmente, as afirmações com possível conotação racista que o José Barros aqui enuncia foram infelizes. Nem acho que haja em relação a algumas delas, nomeadamente sobre a questão da "livre-vontade" da ida para a América, alguma hipótese mínima de corroboração historico-científica. Mas, que diabo, deixem o homem esclarecer-se ou pelo menos escrever alguma linha! Também para ele passaram 13 anos e não sou grande partidário de julgamentos, ainda mais apriorísticos, por delitos de opinião.
Nem acho que valha a pena entrar pelos discursos dos "juízos de facto" ou "de valor". A essência dos movimentos que pugnam pelo totalitarismo ou pela violação da liberdade de terceiros, como os racistas, é a do seu discurso ser constituído por uma mistura cuidadosa de juízos de facto e de valor. É assim que melhor se "vendem" as coisas! A Ciência e a História não têm (ou não devem ter) uma moralidade que suscite juízos de valor: todas as conclusões devem ser admissíveis, desde que sejam verificáveis e/ou sustentadas em estudos ou fontes históricas credíveis. A partir daí que se façam os juizos de valor que se quiserem e que não interfiram negativamente com terceiros.
Porque exactamente aí, pelo menos para um liberal, é que deve estar a diferença: uma coisa é tentar avançar com conclusões científicas ou interpretações históricas credíveis, com objectivos de conhecimento ou de discussão científica. Outra é utilizar dessas conclusões para implementar soluções políticas iníquas e que violem a liberdade de terceiros.
Não creio que Pedro Arroja tenha alguma agenda política ou que defenda politicamente consequências que derivem das afirmações que fez. Liberdade também é constatar que as pessoas também podem errar ou ser mais ou menos felizes no que afirmam.
8 comentários:
Não percebo a indignação com a constatação que a maioria dos negros vieram para os EUA de livre vontade. Parece-me evidente que sim. Hoje, se as autoridades o deixassem, mesmo com o tratamento desigual, muito africanos iriam para os EUA de bom grado.
Parece-me evidente também que entre o mundo ocidental, é nos EUA que os negros mais oportunidades de vida têm. Não conheço nenhum país ocidental cujo representante externo seja um negro... Qualquer português devia ter vergonha de acusar os americanos de racistas. Vivemos num país em que muitas empregas não contratam negros para "não assustar os clientes" e hoteis que não os aceitam como hóspedes. Enfim...
Karloos,
Acho que não estamos a falar da mesma coisa.
Não estou a falar do período em que havia tratamento desigual entre pretos e brancos, entre o fim da escravatura e as conquistas dos movimentos de emancipação da altura do Martin Luther Kung. Estou a falar na altura da escravatura. E nessa altura o comercio de escravos, além de ser algo organizado e relativamente bem documentado, era algo que não tinha nem achava os escravos para nada. Não percebo como num ambiente desses de total privação de liberdade(s) desse grupo de pessoas podes sequer pensar em enunciar com rigor histórico algo como "livre vontade". Estamos a falar de pessoas que não eram "recrutadas". Eram a maior parte das vezes raptadas, prisioneiros de conquistas militares ou já haviam sido constituído como escravos nos países de origem, sendo transaccionados como mera propriedade.
Quanto ao resto das considerações, relativas ao presente, não têm nada a ver. Independentemente da opinião que possa ter sobre elas, não é isso que está em discussão.
Quando Pedro Arroja refere que os negros foram para lá de livre vontade, o assunto escravatura ainda não tinha sido referido. É incorrecto dizer hoje que quem levou os negros para a América foram os comerciantes de escravos. Uma pequena minoria de negros americanos descende de escravos. A maioria veio, ou descende de alguem que veio, de livre vontade.
Fica a parte relevante da entrevista:
"Mas a realidade é. E como existem outros números e dados que dizem que para se ser condenado à morte nos EUA é preciso ser-se pobre e de preferência negro, estamos conversados.
É natural que sendo pobres tenham mais tendência a cometer crimes...
E sendo negros tenham mais tendência a ser mortos.
Posso-lhe dizer que não há país do mundo onde os negros vivam tão bem como na América.
Costumava ouvir-se isso em relação à Àfrica do Sul...
E com verdade. Era o país com o mais alto nível de vida para os negros em África, mas agora vai cair.
Claro que estamos a falar de valores económicos.
Sim. Repare, eu acho que eles têm todo o direito à liberdade, é a terra deles. Agora não se esqueça que os negros americanos não estão na sua própria terra.
Ah não? E quem é que os levou para lá?
Foram eles que foram. Atraídos pelo nível de vida que não têm em mais parte nenhuma do mundo.
Para começar a terra era dos Indios. E está-se a esquecer do pequeno pormenor da escravatura.
Alguns foram levados como escravos. Mas ainda hoje há gente a emigrar para lá, negros. E deixe-me dizer-lhe uma coisa. O homem que ganhou o prémio Nobel, este ano, Robert Fogel, provou que se o sistema da escravatura era politicamente inaceitável, em termos económicos, para os negros, era um sistema muito eficaz. Mais: que o trabalhador negro da época, escravo, vivia melhor que o trabalhador médio branco. Certamente que a conclusão é surpreendente, é por isso que ganhou um prémio nobel. Mas documentou extraordinariamente bem..."
"Quando Pedro Arroja refere que os negros foram para lá de livre vontade, o assunto escravatura ainda não tinha sido referido. É incorrecto dizer hoje que quem levou os negros para a América foram os comerciantes de escravos. Uma pequena minoria de negros americanos descende de escravos. A maioria veio, ou descende de alguem que veio, de livre vontade."
Estamos a falar de negros, não de negros E latinos. Desse modo disputo a afirmação que fizestes de que é somente uma minoria dos negros americanos que descende de escravos e que não foram os comerciantes de escravos que levaram os negros para a América. Aliás, basta veres em quais estados existem populações significativas de negros e quas eras as suas actividades económicas no passado e ligação à escravatura. Questiono também, não tendo tal acontecido como defendes, quando existiu a leva de imigração negra tão significativa no pós abolicionismo que tenha "abafado" os números significativos de escravos negros que lá estavam antes.
De qualquer modo, por este facto, a afirmação de Pedro Arroja concretamente criticada por mim, mesmo antes de se introduzir o tema da escravatura:
- Politicamente, é habilidosa, porque procura fazer uma generalização abusiva e não sustentada históricamente, ignorando dados que não são desprezáveis nem passiveis de ser ignorados claramente com um fim e para "puxar a brasa à sardinha dele".
- Mesmo que só em termos "académicos", produz uma afirmação, quanto a mim, muito duvidosa, pelos motivos acima enunciados. Face à colisão da sua afirmação com o que parece pacífico para a generalidade das pessoas, seria de esperar que corroborasse a sua afirmação com fontes científicas e/ou históricas, à semelhança do que fez no outro caso com o trabalho do prémio Nobel Fogel. Não o fez, levando-me portanto a duvidar quer da exactidão do que afirmou, quer da razão porque o fez.
"É incorrecto dizer hoje que quem levou os negros para a América foram os comerciantes de escravos. Uma pequena minoria de negros americanos descende de escravos. A maioria veio, ou descende de alguem que veio, de livre vontade."
"According to census figures, at various times in the country's history, people of sub-saharan African ancestry have formed as much a 19.3% of the country's population (1790) [durante a escravatura] or as little as 9.7% (1930); currently they constitute about 12.3% (2000). Until the events of the American Civil War (1861–1865) and, in particular, the Thirteenth Amendment to the United States Constitution (1865) resulted in the end of slavery in the United States, most Blacks in America were slaves."
"By 1860, there were 3.5 million enslaved Africans in the Southern United States, and another 500,000 Africans lived free across the country."
African Americans, na Wikipedia, com negritos meus.
"African American history is the history of an ethnic group in the United States also known as black Americans. The majority of African-Americans are the descendants of enslaved Africans transported from West and Central Africa to the States during the trans-Atlantic slave trade. Others have arrived through more recent immigration from the Caribbean, South America and Africa."
African American history, na Wikipedia, com negritos meus.
Aceito a correcção.
Mas a questão mantém-se. O que eu defendo é:
1- nenhum negro, branco ou mulato está na América obrigado.
2- Entre a América e a sua terra de origem, qualquer grupo étnico minoritário prefere a América, apesar da discriminação.
3- Nenhum país no mundo ocidental, respeita tanto as minorias étnicas como os EUA.
4- A afirmação de que os negros não estão na sua terra e de que não trabalham porque gostam muito de sexo são racistas. Mas o facto de o PA ter um preconceito, não lhe retira genialidade noutras áreas.
Exacto, penso que estamos de acordo, mas em sintonias diferentes.
Abraço
"Mas a questão mantém-se."
Sinceramente, acho que não. A questão extinguiu-se uma vez que concordamos que, de um ponto de vista académico (ou de "juízo de facto"), a afirmação de Pedro Arroja é falsa.
De resto, exceptuando os "inquilinos" de Guantanamo no primeiro ponto e, por exemplo, a generalidade dos fundamentalistas islâmicos espalhados aqui e ali por países ocidentais no que toca ao segundo, concordo com os teus pontos... ;-)
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