Resposta a um comentário do Hugo Oliveira
No post anterior, defendi a tese de que os conservadores defenderiam um tipo de liberalismo diferente daquele que maior parte dos liberais da blogosfera assume defender. Daí que o aparente convívio entre liberais e conservadores me pareça resultar de um engano involuntário que rasura as diferenças políticas entre as duas tendências, quando não resulte, como em alguns casos (revista Atlântico ou o recente discurso do PND), de uma estratégia política comum.
1. Assim, por exemplo, o Hugo Oliveira, a propósito das críticas do Carlos e do JLP ao artigo de MFM sobre os Morangos com Açúcar, diz isto: "O indeferentismo, cultural ou moral, que eu saiba, não é uma característica do liberalismo". E tem razão, mas não no sentido em que pensa que a tem. A verdade é que os liberais, como tantas outras pessoas, querem viver numa sociedade de gente culta, inteligente, trabalhadora e honesta. Simplesmente, não admitem que tal desiderato seja conseguido à custa da liberdade dos indíviduos, fazendo tábua rasa do princípio da neutralidade, segundo o qual o Estado não pode impôr uma moral particular à sociedade e reprimir modos diferentes de encarar ou de viver a vida. Lutar contra o Morangos com Açúcar ou contra outras imbecilidades do género poderá ser um objectivo de segmento da sociedade civil, que tem meios para se fazer ouvir e convencer o resto da população de que se deve acabar com programas do género. Mas enquanto tais manifestações de imbecilidade forem populares e lucrativas, cabe aos pais educarem as suas crianças no sentido de elas não se renderem a programas como o Morangos.
2. O conceito de liberdade negativa explica-se brevemente com a frase estafada de que a liberdade de uns acaba quando a dos outros começa. Simplesmente, há que ter em conta que a liberdade negativa não é um conceito operacional em direito. Os direitos têm de ter um conteúdo preciso e, por isso, o direito à vida, o direito à liberdade e o direito de propriedade exemplificam formas protegidas de liberdade. É na medida em que o exercício desses direitos conflitua com o exercício dos mesmos direitos por terceiros, que cabe ao Estado regular tais conflitos e, eventualmente, sancionar aquele que viola os direitos de outrém. O princípio do dano de Mill diz isto da perspectiva do Estado: o Estado só pode restringir a liberdade dos indivíduos quando o exercício da mesma cause danos a terceiros. O próprio Mill reconhece excepções ao princípio em causa: as crianças, por exemplo, têm de ver a sua liberdade restringida como forma de poderem ser protegidas da sua falta de autonomia. O que me leva a considerar que os liberais não podem apenas fazer uso de um conceito de liberdade enquanto livre-arbítrio, mas têm também de reconhecer um conceito de liberdade enquanto autonomia, que permita explicar o tratamento diferenciado que as crianças (e, eventualmente, os velhos ou doentes) mereçam. Assim se abre a porta à admissibilidade em certos casos de políticas que promovam as liberdades positivas de certos grupos; pelo menos, do grupo das crianças. A diferença entre o liberalismo clássico e o liberalismo moderno de Rawls e de Dworkin reside aqui. Mas estamos perante uma diferença subtil: trata-se apenas de saber que restrições à liberdade são admissíveis e quais é que não são. Os liberais puros dirão que as liberdades negativas só podem ser restringidas por outras liberdades negativas; os liberais moderados admitirão que algumas liberdades negativas possam ser, em casos contados, restringidas por algumas liberdades positivas.
O que é certo e sabido é que ambas as correntes liberais defendem o princípio da neutralidade, impedindo este as tais políticas moralistas que conservadores como MFM defendem. Nesse sentido, não concordo com o Hugo Oliveira, quando diz que a liberdade está sujeita a restrições resultantes do sentimento generalizado das pessoas. Porque vivemos em sociedades democráticas, a ideia do Hugo Oliveira é, em certo sentido, verdadeira: em democracia, vale o princípio maioritário e a maioria pode fazer vingar as suas ideias. Mas, partindo do princípio de que o liberalismo está correcto, o que há a fazer é tornar difícil a vitória de ideias iliberais, nomeadamente exigindo maiorias qualificadas para a remoção da constituição de princípios liberais importantes como o princípio da neutralidade. No dia em que a vontade maioritária prevaleça, a sociedade deixa de ser liberal e passa a ser outra coisa...
3- Não existe nenhuma antinomia entre liberalismo e religião. Precisamente o que se quer evitar numa sociedade liberal regida pelo princípio da neutralidade é que qualquer religião imponha a sua agenda moral, limitando a liberdade dos indivíduos e também a liberdade de culto de crentes de outras religiões. O princípio da neutralidade é, pois, uma garantia da liberdade religiosa e não uma qualquer forma do Estado impôr o ateísmo. Por exemplo, os muçulmanos têm direito de se manifestar pacificamente contra os cartoons e o jornal de os publicar. O governo, esse, não tem nada a ver com o assunto...
4- O liberalismo existe, pelo menos, desde Locke. Em certo sentido, alguns liberais até consideram que a o Feudalismo era um exemplo típico de uma sociedade liberal. Uma tradição política tão rica alberga necessariamente autores com diferentes pontos de vista, frequentes vezes, contraditórios entre si. Mas não é porque o autor liberal X defendeu Y que Y é uma política liberal. É nesse erro que me parece que o Hugo Oliveira cai quando menciona as posições de Popper ou de Hayek para dizer que o liberalismo aqui defendido não é o verdadeiro liberalismo ou, pelo menos, o único. A questão não é essa, mas saber se as posições aqui e noutros lados assumidas são melhores que as alternativas (mesmo as liberais) existentes.
5- Finalmente, concordo com o Francisco quando diz que o liberalismo está à margem da dicotomia direita-esquerda. Começou, no tempo dos Whigs por ser de esquerda, hoje está mais associado à direita, pelo facto de a esquerda acreditar no papel interventor do Estado na economia. Mas isso pouco nos deve interessar. Neste blogue, parece-me que posso falar por todos quando digo que o que se quer para o país é uma alternativa política liberal e não uma alternativa política liberal-conservadora ou liberal-social.
Ps: o interessante comentário do Hugo Oliveira pode ser lido na caixa de comentários deste post do Francisco.
1 comentário:
Ó JB: está um gajo quase a embarcar para as picanhas e os chimarrões, a cidade dos 25000 restaurantes de 52 gastronomias diferentes, com conectividade limitada, e tu "postas-me" umas coisas destas, a tentar o pessoal? Não se faz!
:-D
Parabéns pelos artigos.
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