2006/09/05

A obscenidade do sucesso

Escreve Manuel Câmara, n'O Telescópio:

[Brad] DeLong usa como justificação para um sistema fiscal progressivo a ideia de que a opulência dos ricos causa um mal-estar entre os pobres, e que assim há uma transferência de bem-estar de ricos para pobres, que também gostarão de se sentir invejados.

[...]

Enquanto para alguns na direita a justificação de Brad DeLong pode parecer uma laracha, os economistas não a podem tratar levianamente. A sugestão de que os ricos retiram prazer da ostentação da sua riqueza e assim criam mau-estar entre os pobres não é completamente ridícula. Isso implicaria a existência de uma externalidade, o que levanta naturalmente a sugestão de se criar um imposto de pigou para a corrigir.

[...]

No fundo podem-se inventar uma série de justificações económicas (nem sempre correctas) para promover qualquer política, mas o caso da progressividade dos impostos não me parece uma questão económica mas sim uma moral. Que justificação existe para penalizar o sucesso?
Não sou economista, mas conto ter a legitimidade de quem está atento a esse género de questões para comentar o cenário que é proposto.

Resumidamente, o suposto cenário de justificação de uma suposta "externalidade" acaba por não ser muito diferente da argumentação de alguma da nossa esquerda no sentido da classificação de alguns rendimentos como "obscenos", tentando promover impostos sobre grandes fortunas e lucros. A diferença neste caso é que tenta-se almejar a alguma credibilidade técnica sustentada num formalismo econonómico.

O problema desse género de considerações morais no que toca a uma política pública de fiscalidade afectando rendimento e património é que essencialmente precisam de uma entidade externa, normalmente o estado, que faça essa distinção entre o que é "obsceno" ou não, o que é "ostentação" e mero usufruto da sua propriedade. No caso referido, é necessário alguém que estabeleça objectivamente a natureza dessa externalidade, ou seja, quem transforme todos esses considerandos morais em regras práticas de cálculo desses efeitos.

Ora dificilmente será aceitável a possibilidade de conferir a alguém essa autoridade e legitimidade de transformar a sua perspectiva moral em regra geral coerciva que todos afecte. Pior do que uma mera laracha abre-se um caminho perigoso para demagogias e análises perversas reinarem:
  • O que é um "rico"?
  • O que é "mal-estar entre os pobres"?
  • Quanto é que o aumento dessa riqueza representa em termos de "ostentação" e "mal-estar"?
E estabelece-se o terreno propício a que sejam colocadas outras questões decorrentes desta:
  • Não sofrerá também um "rico" o efeito de uma externalidade semelhante tendo que conviver ou cruzar-se com um pobre andrajoso, que viva pacificamente com a sua situação, mas que provoque "mal-estar" no rico não por ostentação mas por decadência?
  • O exercício do poder coercivo do estado sobre a propriedade do "rico" também não lhe causa "mal-estar"?
Este género de considerandos demonstra a perversão que é misturar decisões e poderes arbitrários de indole moral com poder coercivo ao nível do que é conferido a um estado.

Não posso deixar de concordar com as considerações finais e com a conclusão apresentada por Manuel Câmara: a fiscalidade progressiva é uma questão moral e não económica. E é como tal profundamente errada e injusta, como qualquer penalização arbitrária e moralista do sucesso o é.

3 comentários:

FMP disse...

nem mais...

AA disse...

Muito bem.

Migas disse...

E se as pessoas com menor inteligência sentissem "mal-estar" ao ter de viver com a ostentação de células cinzentas dos mais inteligentes? E se os artistas medíocres sentissem "mal-estar" ao presenciar o génio dos grandes artistas? Criava-se um "sistema progressivo" de lobotomias para diminuir as assimetrias?