2006/09/06

Electricidade 2.0

A EDP tem todo um conjunto de infra-estruturas, construído e solidificado durante anos de monopólio protegido pelo Estado. Esta rede permite-lhe aceder com facilidade aos nossos contadores, provavelmente com custos médios decrescentes, o que lhe dá uma vantagem enorme em relação às restantes empresas e lhe permite arrancar com muito mais força para esta nova era de concorrência.

Assim, e embora não nos devamos esquecer que foram (pelo menos em parte) o esforço e os euros da EDP que sustentaram o crescimento da estrutura, é tempo desta servir de igual modo todos os fornecedores. Deste modo, em analogia com o famoso processo de desagregação do lacete local, em prática nas redes da PT desde a revolução da banda larga, proponho que se desagreguem os fios da tomada de todos os lares domésticos, de modo a facilitar a concorrência. Uma operação que poderia ser subsidiada pelo Estado, como forma de compensar os consumidores pelos anos de preços altos e de inexistência de evoluções.

Tiago Alves, n'O Telescópio.
Tendo como mote o referido artigo do Tiago Alves, impõe-se alguma revisão histórica sobre o passado da infrastrutura do sistema eléctrico de energia português, bem como uma reflexão sobre o futuro e as apostas que fazem sentido.

A versão 1.0 do SEE português não foi muito diferente do que pôde ser visto nos outros países: os custos elevados de estrutura, com a necessidade de grandes investimentos em equipamento com oferta relativamente limitada e em construção de infra-estruturas (muitas vezes requerendo processos públicos de expropriação), constituindo deste modo investimentos extremamente capital-intensivos e com prazos de amortização dilatados (geralmente inviáveis para a generalidade das débeis economias privadas da época) fizeram com que a solução encontrada tenha sido a de esploração centralizada de grandes recursos de produção, integrada verticalmente com o transporte e a distribuição dessa energia em enormes empresas públicas. Portugal não foi excepção, e a solução acabou por convergir num cenário essencialmente de monopólio do mercado pela EDP. À face das limitações da época, o negócio da produção, transporte e distribuição de energia (PTDE) era essencialmente visto como um monopólio natural entregue deste modo ao estado. Mas, contrariamente ao que diz o Tiago Alvez, não foram os "o esforço e os euros da EDP que sustentaram o crescimento da estrutura". Foram sim essencialmente os escudos dos impostos dos portugueses que permitiram a consolidação do modelo de negócio da empresa, mantendo-se também sobre ela uma obrigação de "serviço público" que a forçava a aceitar empreitadas muitas vezes económicamente não justificáveis, mas que politicamente lhe eram impostas.

Posteriormente, o progresso da técnica e das economias dos vários países começaram a fazer duvidar da bondade da anterior classificação do mercado de energia eléctrica como um "monopólio natural". O surgimento da vontade privada em assegurar significativos investimentos na área da produção, e de uma maneira geral, a visão de que essa classificação de monopólio natural da generalidade do mercado de PTDE deixava de fazer sentido e começava a constituir um entrave à liberdade comercial. Foram assim iniciados, mais ou menos agilmente, esforços de desverticalização das empresas monopolistas de PTDE, forçando-as a dividirem-se nas suas constituintes autónomas de produção, transporte e distribuição. Interviu-se também no sentido de desregulamentar o mercado e de permitir a livre concorrência entre os diversos agentes nas diversas áreas. Essencialmente, reduziu-se na generalidade a perspectiva de monopólio natural de todo uma negócio somente ao sector do transporte que, por imperatívos técnicos e/ou políticos, está limitado na sua capacidade de não impôr barreiras de entrada ao mercado, tendo-se portando optado por manter empresas monopolistas nessa área debaixo da alçado do estado ou de reguladores. Chegou-se assim ao presente cenário "1.5" do SEE.

Concretamente em Portugal, a EDP foi privatizada e, com este processo, foi alienada a rede de distribuição. Ou seja, o estado considerou que foi pago o preço justo pelo investimento que havia feito (nomeadamente) na rede de distribuição. Manteve, pelas considerações atrás referidas, a rede de transporte. Não há portanto qualquer justificação moral ou comercial para que persista e se justifique alguma possibilidade de "desagregação do lacete local" como é referido no artigo.

Um comentário à parte: é referida a possibilidade de o estado subsidiar o acesso a essa rede de distribuição, para compensar "os consumidores pelos anos de preços altos e de inexistência de evoluções". Ora isto é exactamente persistir no erro. Esses "preços altos" não eram altos. Eram sim preços artificialmente baixos criados administrativamente pela imposição administrativa de tarifas separadas da realidade do mercado e do valor real da energia, associada a mecanismos de subsídio e compensação alimentados, obviamente, por esses mesmos contribuintes. Mecanismos esses que, apesar da suposta "liberalização" do mercado, ainda subsistem, quer por exemplo em relação ao subsídio aos grandes consumidores ou às obrigações de compra e tarifárias em relação aos produtores eólicos.

Qual é, quanto a mim, a solução do problema? A solução, quanto a mim, envolve uma mudança de paradigma, o que creio vai acontecer naturalmente a médio, longo prazo. Essencialmente uma mudança de um paradigma de produção centralizada para um paradigma de produção distribuída. E porquê?

Actualmente, a produção é essencialmente centralizada. Centrais de grande dimensão produzem, geralmente a distância significativa do local de consumo, enormes quantidades de energia que são injectadas na rede de transporte. Tipicamente, o rendimento desta produção, quando envolve combustíveis fósseis, é tipicamente da ordem dos 30-50% podendo em casos excepcionais atingir 70%. Ou seja, há logo à partida uma enorme fatia de recursos energéticos que é pura e simplesmente desperdiçada e perdida em calor. Nestas centrais, por razões de segurança de exploração da rede, que advém essencialmente da sua interligação e da imprevisibilidade de acidentes e consumos, é necessário proceder a sobredimensionamentos dos equipamentos, bem como assegurar que alguns operem em condições sub-óptimas de modo a assegurar essa segurança. Essencialmente, os planos de exploração (envolvendo compra de combustíveis, escalonamento de unidades) são baseados em previsões do consumo, como tal tendo que acautelar algum nível de incerteza.

Posteriormente, na rede de transporte, são adicionadas a este balanço energético perdas de (números redondos) 10%.

Veja-se portanto todo o enorme desperdício de energia associado a este paradigma de produção centralizada de energia, muitas vezes para, no final da cadeia se produzir, como utilização final da energia eléctrica... calor! Basta pensarmos na fatia da utilização de energia eléctrica associada ao ar-condicionado e aquecimento doméstico.

Qual é a alternativa?

Aproximar o consumo dessas formas de energia primária do consumo final de energia, em regime autónomo ou ligado à rede de distribuição. Convertendo-a directamente em calor ou em energia eléctrica no local de consumo. Livre de tarifários e de intermediário.

A energia passa a ser produzida "on demand" sem necessidade de tão grande sobredimensionamento de equipamentos e de dependência de previsões e com segurança acrescida, pela ocorrência de contingências ser muito mais limitada nas suas consequências no espaço.

Qual é o problema?

Essencialmente a necessidade de uma mudança da mentalidade dos consumidores e do enquadramento legislativo. Os equipamentos, apesar de ainda não disponíveis com o nível de solidez técnica e estabilidade dos associados aos sistemas "clássico", já existem e podem ser comprados numa diversidade de formas e permitindo o uso de diversos tipos de energias primária como a eólica, o gasóleo ou o gás, em formas que vão desde as micro-turbinas às pilhas de combustível, desde a cogeração aos geradores eólicos de última geração. Passando até, no futuro, por mini reactores nucleares sem manutenção nem necessidade de intervenção humana por períodos alargados e inerentemente seguros por não terem combustível suficiente para sustentar uma reacção em cadeia descontrolada.

Além disso, no caso do funcionamento ligado à rede, há a necessidade de fazer a reconversão de alguns equipamentos dessa rede de distribuição, concebidos originalmente para um fluxo previsivelmente unidireccional de energia eléctrica, bem como ao nível de gestão da rede será necessário adoptar novas práticas de gestão associadas à nova realidade.

Como se vê, excelentes perspectivas para um mercado emergente, com diversidade acrescida (maior relação com os produtores de equipamentos, mais escolha entre energias primárias) e a funcionar mais racionalmente e de uma maneira mais consonante com o Ambiente. E, acima de tudo, mais livre.

1 comentário:

JLP disse...

Tiago Alves,

A ideia foi só trazer mais achas à "fogueira" da discussão! :-)

Pessoalmente, de um ponto de vista técnico, não acho que a situação seja assim tão diferente no que toca à electricidade e às comunicações. A questão é que, quanto a mim, no campo das telecomunicações foi cometido um erro crasso de que a electricidade se salvou, que foi a Manuela Ferreira Leite ter decidido vender a rede fixa de novo à PT. Pelo menos no que toca ao "backbone" devia ter sido mantida uma situação semelhante à da REN (apesar de já irem também surgindo as ameaças, falta de dinheiro oblige, em vender também esta), mesmo que se tivesse optado por vender o lacete local.

Paralelamente ao problema da rede de distribuição, poder-se-ia pensar que o monopólio da rede da distribuição poderia ser um entrave à entrada no mercado. Mas acho que isso é uma conclusão precipitada. O que aconteceu foi que os operadores concorrentes não quiseram abrir os cordões à bolsa e investir em soluções concorrentes, perfeitamente viàveis tecnicamente e economicamente como as soluções baseadas em rádio, Wi-Fi ou na perspectiva WiMAx. A questão complicada, quanto a mim, é sim a do backbone, que ficou seriamente comprometida com o gesto errado do governo de Durão Barroso, e que vai navegando ao sabor dos acessos de coragem da Anacom e da Autoridade da Concorrência.

Obrigado por ter levantado o assunto!

Abraço