2006/09/03

O manifesto equivocado

Naturalmente, não pude deixar de ir satisfazer a minha curiosidade no anunciado Manifesto da Direita em Portugal, anunciado por Manuel Monteiro e pelo PND como o caminho da salvação para a direita portuguesa.

Li o documento que, ele próprio, se anuncia como "não sendo um tratado de filosofia política". O que restou no final: muito pouco.

Honra se lhe seja feita, o referido documento é, à semelhança de outros documentos de outrora divulgados pela organização, bem escrito, claro e, acima de tudo, cuidadoso em apontar para os consensos óbvios e em contornar as areias movediças das ideias objectivas e dos temas (que os há) fracturantes da direita. Não fica portanto dúvida na clareza das intenções, na necessidade do disclamer e no destino do documento, essencialmente não os protagonistas de discussões ideológicas mas sim a massa popular do povão de direita.

Ultrapassada uma introdução preenchida pelas verdades históricas do cenário político do pós-25 de Abril, que recorde-se, já passou os 30 anos de história, e que nada acrescenta a uma constatação que é pública e mais que estafada em inúmeros artigos de opinião da auto-reconhecida direita, avança-se para a necessidade do "recentrar" do espectro político, assente num espectro incompleto que "salta da esquerda para a extrema direita".

O primeiro equívoco será exactamente esse. Será que efectivamente não existe direita em Portugal? Será que não existem arautos imemoriais do conservadorismo e da Doutrina Social da Igreja que pregam há anos (ou mesmo décadas) as virtudes da sua boa-nova e a contraposição com o papão da "esquerda"? Não seremos nós ainda herdeiros em muita da nossa legislação de um conservadorismo popular (e bem reconhecível) que não hesitou em se associar à esquerda das mesmas "causas" e "valores" e que, esse, não teve problemas em disseminar pelo nosso ordenamento jurídico e constitucional as marcas da "tradição" e da "boa moral"? Mesmo quando agora parece ter descoberto que ganhar dinheiro e ter lucro deixou de ser "pecado"?

Pior do que isso, será que ainda faz sentido arregimentar combatentes para uma batalha baseada em esteriótipos gerados na escolha de cadeiras numa assembleia revolucionária de há mais de 200 anos atrás? Ou não estará a luta mais apropriadamente a ser travada entre os que defendem o totalitarismo do estado como solução para todos os problemas e os que defendem a liberdade e o indivíduo como a melhor solução?

O que me parece é que o alvo é bem mais a tal "direita" que congregua desde os "totalitários dos valores" aos "liberais da carteira" (bem consentâneo aliás com a auto-classificação do PND como partido do "conservadorismo liberal"), do que uma verdadeira opção pela Liberdade que contrarie a tirania do estado. Senão vejamos, analisando ponto por ponto todos os pontos de vista esclarecedores em contrário:

A Nação surge como quadro de referência à acção do Homem, funcionando como entidade facilitadora e integradora do seu desenvolvimento e da sua acção. Uma nação entendida como comunidade de sangue, de terra, de bens e de destino, reunindo os homens que, entre si, possuem vínculos históricos, culturais e linguísticos.
Não será de estranhar que, antes de mais, a afirmação primeira de manifesto seja em prol da "Nação", naturalmente de deterimento do indivíduo, como unidade orgãnica do desenvolvimento. Conservadorismo oblige. O colectivismo da esquerda proletária é rapidamente substituído por uma alternativa do "colectivismo do sangue, da terra, dos bens e do destino", e o endivíduo despromovido a uma mera roda da sua engrenagem. Sintomática é além disso a adopção de um critério de nacionalidade "de sangue", da raça, não afirmado na liberdade da escolha mas sim filho da aleatoriedade do nascimento.
Este homem concreto representa um feixe de valores, mas também de direitos essenciais e liberdades concretas que ultrapassam, em muito, os direitos, na generalidade menores, que a nossa Constituição garante, bem como a única liberdade que hoje lhe é reconhecida entre nós, assim como na generalidade dos países formalmente democráticos: a liberdade de voto.

Esses valores, esses direitos e essas liberdades representam a matriz fundadora do homem que, nascido na Grécia, lançou as bases da civilização ocidental na qual nos integramos e que é parte essencial e insubstituível do nosso património como portugueses.
Sem dúvida a passagem citada será uma das mais sintomáticas do texto, e exemplar no que toca à forma de "liberalismo" proposta. Sem querer entrar em discurso de "filosofia política", e como tal contrariar o espírito do anunciado do documento criticado, a critica é tão simples e óbvia, mesmo para não liberais, que facilmente será compreensível para os que não partilham dessa filosofia: o Liberalismo não se afirma por um "feixe" de "liberdades", de "direitos" ou de "valores". O Liberalismo defende sim que o estado normal do homem é a Liberdade, e que tudo o resto são limitações que só se legitimam quando defenderem o respeito pela Liberdade de terceiros. Tão somente isto. Não há liberdades enumeradas, direitos concedidos por simpatia ou condescendência majestática pelo estado ou "valores" que não sejam os sentidos pelos próprios indivíduos. O defender o contrário é assumir uma faceta claramente não-liberal de que cada um só existe na medida do alvará que lhe for concedido pelo estado. Veja-se o exemplo da Constituição dos Estados Unidos da America, claramente liberal em espírito e em grande parte em forma, que estabelece o seu conteúdo não pela afirmação de "direitos" ou liberdades avulsas, mas em proclamar a liberdade negativa e em enunciar os casos particulares em que é necessário o seu arbítrio entre indivíduos.

Esta tendência garantista está aliás expressa noutras passagens:
Ser sujeito de deveres é um direito inalienável de todo o homem e é nos seus deveres, mais do que nos seus direitos, que se funda o essencial da sua dignidade de Homem.

[...]

A Lei e um certo consenso ético que estruturam uma sociedade democrática moderna, são padrões válidos pelos quais terão de ser aferidos e julgados os comportamentos individuais. Esses comportamentos serão claramente certos ou evidentemente errados, e como tal julgados, à luz desses padrões éticos e jurídicos.

[...]

Ao Estado, através de um conjunto de competências que lhe é outorgado pelos cidadãos, compete definir as regras da vida em comunidade, aplicá-las e vigiar para que sejam cumpridas.
O raciocínio é bem claro: o Homem só tem legitimidade quando a justifica pelo cumprimento dos seus deveres e se subjuga aos padrões "válidos" que aferem e julgam a sua liberdade individual, e só participa na sociedade na medida em que cumpre as suas "regras", superiormente definidas.

Esta perspectiva surpreendentemente soviética da vida em sociedade, ainda mais expressa num documento que começa por referir o Manifesto Comunista de Marx e Engels, é sim um tique esclarecedor de quem visualiza a sociedade como definida por regras precisas que definem o que é permitido e tolerado. Com um direito que regule a periodicidade da amamentação e que puna quem cuspa no chão ou mastigue pastilha elástica, ou que coma comida "imprópria" e faça sexo de maneira "insalúbre".

O resto, o ser liberal na economia, além de ser pouco credível face a estas generalidades anunciadas, acaba por pouco interessar. Acaba por ser só uma estratégia de marketing conveniente para aliciar os que dentro do liberalismo se afirmam como mais utilitaristas. Também os que dia-a-dia são expoliados da sua propriedade por um estado que não olha a limites. Acaba por ser um conjunto de lugares comuns para um determinado público. Mas, esteja-se atento e as contradições são rápidas a surgir. Como numa anunciada proposta de nova Constituição que, em toda a sua extensão e em toda o seu "rigor", desde em definir duração de mandatos até datas de eleições, se "esquece" de uma coisa tão básica (aliás estabelecida na nossa Constituição em vigor) como o direito à propriedade privada. Aliás, curiosamente, a palavra "propriedade" não é referida uma única vez num documento que, apesar de pretensões de neutralidade política, é proposto por um partido com supostos objectivos liberais. Assim como endeusa a nação mas em seguida inclui directamente tratados internacionais na Constituição, para além da legitimidade que já lhes assiste pelo reconhecimento da integração do direito internacional no direito interno.

Direita desta, ainda bem que se clarifica. Porque é dela que eu não quero minimamente fazer parte.

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