Atestado de incompetência (II)
Na sequência deste post do JLP:
- O consumo de heroína (é bom não lhe chamar "droga", porque drogas há muitas) nas prisões é um fenómeno bastante generalizado e está longe de ser exclusivo nacional. Como todos os fenómenos generalizados acontece pois ambas as partes estão interessadas que assim seja. É a chamada "win win situation". O preso quer alimentar a dependência, o guarda quer o preso no seu estado mais calmo e inofensivo (parto do princípio, talvez ingénuo, que os guardas não ganham mais nada com isso).
- Dito isto é bom frisar que a não entrada de heroína e de seringas nas prisões está nas mãos dos guardas. O tráfico de heroína, na prisão ou fora dela, é ilegal em Portugal. Os guardas prisionais estão a queixar-se de um risco que assumem por culpa própria, ou por serem incompetentes (porque não conseguem impedir a entrada de heroína), ou por serem hipócritas e criminosos (porque são cúmplices no tráfico de heroína). A legitimidade de pedir o que quer que seja nestes termos, é nula.
- Não existe com a nova lei nenhuma alteração essencial à função dos guardas prisionais, nem ao nível de risco profissional, nem aos seus salários e regalias. Ou seja, não existe nenhuma razão legítima para voluntariamente deixarem de cumprir com as suas funções. A greve, mesmo vista à luz da nossa tradição grevista, é uma medida injustificada e ilegítima.
- A única coisa que fica bem visível desta situação para além do oportunismo quanto a mim inaceitável dos guardas, é a hipocrisia do governo que desrespeita as leis que ele próprio cria. Este tipo de iniciativa, tal como as salas de chuto, são a cara de uma política hipócrita que criminaliza o consumo por um lado, e perdoa e assiste as consequências deste por outro.
8 comentários:
Imagina-te com mais meia dúzia de guardas a tomar conta de centenas de ressacados e depois diz qualquer coisa.
Fala com um guarda qualquer e pergunta-lhe se, mantendo as condições actuais (igual número de guardas e outras), é possível extrair toda a heroína das cadeias.
Caro anónimo:
A pergunta que devia estar a fazer é que como é que num ambiente fechado como uma prisão, em que os guardas supostamente revistam e "processam" todas as visitas e onde os detidos estão confinados a celas (que são revistáveis) durante grande parte do dia consegue haver "ressacados", ainda mais em drogas injectáveis.
Os guardas poderão ser poucos, mas para a existência de "centenas" de ressacados não se pode deixar de constatar que para isso deve contribuir muito do seu laxismo ou (pior) da sua conivência.
Eu acho a questão pertinente, mas não se pode deixar de considerar as condições envolventes.
"Os guardas poderão ser poucos, mas para a existência de "centenas" de ressacados não se pode deixar de constatar que para isso deve contribuir muito do seu laxismo ou (pior) da sua conivência."
Tem toda a razão, mas não basta escrever isso. Sabe quantos guardas existe em média para cada preso nos grandes estabelecimentos prisionais do país? É um bom exercício, estive agora a procurar rapidamente mas não encontrei nada.
Se os guardas são corruptos, como insinuou, devem ser castigados. Mas não podemos ser ingénuos, toda a gente sabe que existe droga nas prisões e ninguém (falo de quem tem poder) faz nada, porque sabem que isso sairia muito caro. A culpa é dos guardas? Claro que em grande parte é, mas outra parte, que é preciso não esquecer, tem outros culpados.
Para que fique claro: não sou guarda prisional; tenho é um familiar, guarda prisional, que me vai relatando o ambiene que se passa dentro da cadeia.
("anónimo" das 4.02)
Caro BRMF,
Não tenho nada contra aquilo que diz. Aliás, para ser justo, não posso deixar de apontar que tanto eu como o Francisco deixamos bem clara uma crítica ao papel (ou à demissão de o exercer) do estado em tudo isto. A minha primeira crítica foi aliás nesse sentido.
Mas também nao podemos deixar de constatar que o papel dos guardas prisionais é instrumental e determinante em tudo isto. Se o que se passa é laxismo, é naturalmente culpa da entidade patrononal que tem a competência de assegurar esse serviço em condições, e que tem a obrigação de o provar e de os demitir. Se é por corrupção, a culpa é também do estado que não consegue concretizar o seu papel de garante do estado de direito mas é também, pelo que se tem observado em grande parte, uma culpa solidária de todos os guardas, que pactuam com a situação.
Há denúncias desses comportamentos nos colegas? O referido sindicato já alguma vez veio a público assumir esse problema de corrupção no seio dos guardas prisionais e pedir a intervenção das autoridades competentes? Alguma vez foi feito algo de concreto para limpar essa imagem colectiva dos seus associados?
Não. Foi preciso uma medida perfeitamente avulsa no que toca à resolução do problema para se erguer o "espirito de greve". Parece que antes estava tudo bem.
"Claro que em grande parte é, mas outra parte, que é preciso não esquecer, tem outros culpados.
"
Claro que tem, o governo. E não é apneas outro culpado, é o principal culpado.
Mas o facto da lei estar errada, não dá aos guardas legitimidade para não a cumprir.
Caros JLP e FMP,
Para terminar a nossa discussão, e visto estarmos genericamente de acordo, aqui ficam algumas considerações finais:
1) Nos meus comentários anteriores, apesar de poder dar a entender o contrário, não pretendi fazer a defesa dos guardas prisionais. Aliás, tal como a generalidade da função pública, creio que têm regalias a mais quando comparados com o sector privado;
2) Nem concordo muito quando dizem que a culpa, em último caso, é sempre do Estado; o Estado somos todos nós, inclusive os guardas;
3) O que pretendi discutir foi a questão concreta da heroína nas cadeias e não o comportamento dos guardas; o que ponho em causa é, no quadro actual, a exequibilidade da retirada completa da heroína das cadeias;
4) Concordo convosco quando dizem que o Estado deve fazer cumprir as leis, mas, infelizmente, sabemos que existem umas leis mais aplicáveis que outras; Para exemplificar, apesar do exagero da comparação: Quando têm uma passadeira para peões a 50m, passam sempre por lá? Pelo menos, eu não passo; todos sabemos, à partida, que ninguém cumpre.
Cumprimentos.
Caro BRMF,
"Para terminar a nossa discussão, e visto estarmos genericamente de acordo"
É sempre positivo verificar que as caixas de comentários também podem gerar (ou esclarecer) consensos!
2) Essa perspectiva de que o "estado somos todos nós" é profundamente anti-liberal e uma falácia recorrente (que principalmente o próprio tenta impingir).
O estado não somos todos nós. O estado foi criado sim, por delegação de poderes de todos nós para intervir em determinadas áreas. Como tal, este goza de poderes que, tendo sido delegados, não podem ser exercídos pela generalidade das pessoas, não se podendo comparar a responsabilidade de um e outros em resolver os problemas e cumprir a missão que lhe foi imposta.
Essa perspectiva é uma das melhores maneiras de assegurar, à boa maneira portuguesa, que a culpa das falhas morre solteira. Somos "todos" responsáveis e portanto ninguém. Mas não o deve acontecer. Deve ser plenamente atribuída a quem foram conferidos os meios e que não conseguiu implementar as suas competências.
A culpa que é de "todos" é quando muito de não ter sabido definir os termos e regras com que esse estado deveria exercer as suas funções.
3) Certo. Mas para analisar a exequibilidade da sua saída, têm que ser analisados os mecanismos e acercadas as responsabilidades pela sua entrada...
4) Um dos problemas é exactamente esse: o do estado se entreter a legislar sobre coisas que estão muito longe do âmbito do que deveria ter poder de legislar. Quem se entretém a iniquamente legislar sobre todo e qualquer domínio que afecta as pessoas no dia-a-dia (quer com alegados motivos "regulatórios" ou penais) tem depois naturalmente que pagar essa factura quando se trata de a fiscalizar e fazer cumprir.
O que tarda é o estado concentrar-se mais em cumprir com a sua função de assegurar a segurança e aplicar a justiça naquilo que verdadeiramente interessa e deixar-se de verborreia legislativa que acaba por ser incumprível, pela sua extensão, tornando-se muitas vezes somente numa ferramenta de coacção arbitrária do estado sobre os cidadãos.
A lei, para fazer sentido tem que o fazer para uma grande parte da população. Uma lei como a que refere, sobre o atravessamento das vias fora das passadeiras (no caso o artigo do código da estrada), nunca deveria pura e simplesmente ter existido, já que não se manifesta numa preocupação consensual dos cidadãos, não protege nenhum bem jurídico e não passa de um devaneio de regulação comportamental por decreto do legislador.
De resto cumprimentos e volte sempre!
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