2006/08/22

Ainda a esquerda republicana

Ainda sobre este artigo:

" (....) é uma forte razão para defender o serviço nacional de saúde.
Imaginemos que se estima que a esperança média de vida, mantendo o SNS, é
superior em um ano àquela que se verificaria se o sistema de saúde fosse
inteiramente privado. Em média isso seria o equivalente a dizer que em cada 100
pessoas a vida de 3 tinha sido salva pelo facto do SNS ser público.Portanto, não
se coloca apenas a questão de saber se os impostos são "um roubo", mas também a
de saber se não são "um roubo que salva vidas". "

  • Dizer que o SNS pode ser um roubo, mas é um "roubo que salva vidas", é uma maneira muito típica (e muito eficaz) de justificar a intervenção pública mas também muito desonesta e redutora. A frase compara dois valores, um negativo (o roubo) e outro positivo (salvar uma vida), levando o leitor, obviamente a optar pelo maior dos dois, ou seja salvar a vida, e o SNS. Ora a escolha entre "roubo ou vida" é evidentemente desnecessária. A opção liberal oferece inúmeras vias para que se salvem vidas sem roubos, ou seja o roubo é um valor negativo inútil que está presente apenas na solução socialista. Talvez por isso apareça sempre camuflado como uma inevitabilidade.
  • O segundo erro deste tipo de raciocínio é considerar que as 3 vidas têm valor para todos e pior ainda que têm o mesmo valor para todos, o que obviamente não é possível de medir à escala "social". Segundo o Vasco, o "roubo" que constitui a cobrança de imposto é um mal menor quando comparado com as vidas que permitiu salvar. Ora parece-me pacífico que se essas vidas tivessem de facto um valor maior para o "roubado" (ou para um conjunto de "roubados"), este seria o primeiro a contribuir de forma voluntária, e não haveria necessidade de efectuar o assalto. A verdade é que a generalidade dos seres humanos reagiria de forma diferente consoante a vida e o montante do roubo em causa. Num mundo SNS, a contribuição que um indíviduo faz para salvar a mãe, é exactamente a mesma que faz para salvar o assassino da mãe, duas situações às quais correspondem dois valores completamente diferentes, mas que numa construção abstracta, continuam a ser "vidas", e gozam, perante a "sociedade" de igual importância. Repare-se que a frase até poderia ser: "perdeu-se uma vida, mas graças ao SNS salvaram-se 3". Claramente que em abstracto o valor de 3 vidas é maior que o valor de uma, no entanto se a vida perdida for próxima de nós tal já não acontece.
  • Finalmente, a afirmação esconde os custos para a sociedade causados pelo facto do "roubado" ter sido privado de gastar o seu (merecido) dinheiro. Mesmo que o gaste a comprar 10 iates, a riqueza passará para os vendedores e construtores de iates até ao madeireiro dos cascos que o usará para melhorar o seguro de saúde dos filhos, o que se calhar em vez de 3 contribui para salvar 4 ou 5 vidas. Nunca poderemos afirmar que a "sociedade" ganhou alguma coisa pois não é possível medir o ganho que resulta da hipótese alternativa. Apenas podemos dizer que sendo a vida o valor mais importante da existência humana, qualquer aplicação alternativa que o "roubado" dê ao dinheiro contribuirá inevitavelmente para gerar e manter mais (e melhor) vida. E que sendo o homem (na sua generalidade) um animal racional saberá melhor o que fazer ao dinheiro, do que um "ladrão" que ainda por cima tem "carta branca" para proceder aos roubos que bem entender.

13 comentários:

João Vasco disse...

«A opção liberal oferece inúmeras vias para que se salvem vidas sem roubos»

A parte citada do artigo faz a seguinte suposição: «Imaginemos que se estima que a esperança média de vida, mantendo o SNS, é
superior em um ano àquela que se verificaria se o sistema de saúde fosse inteiramente privado»

Um liberal pode rejeitar essa possibilidade (e então a discussão teria de analisar os dados e tecer comparações entre diferentes países com SNS ou sistema de saúde privado para tentar inferir uma resposta).

Mas se estiver a trabalhar no domínio em que aceita essa suposição, então aí o argumento dado perde toda a validade, pois o que se verifica é que o SNS público salvará MAIS 3 vidas (neste caso) que o sistema de saúde privado que surgiria na sociedade liberal.

João Vasco disse...

«Ora parece-me pacífico que se essas vidas tivessem de facto um valor maior para o "roubado" (ou para um conjunto de "roubados"), este seria o primeiro a contribuir de forma voluntária, e não haveria necessidade de efectuar o assalto.»

Para mim é pacífico que podem ter menos importância para o roubado.

Mas esse tipo de racocínio também legitima o homicídio: um assassino profissional pode valorizar mais o dinheiro que recebe do que a vida das suas vítimas.
Então porque é que a sua acção é condenável?
Porque no geral, ponderando os ganhos do assassino e as perdas de todos os envolvidos, considera-se que o assassino, ao matar, está a prejudicar a sociedade.
Ou seja, que a sociedade em que se pode matar impunemente é pior do que aquela em que os homicídios são punidos.

No fundo parece claro que o que importa na análise dos ganhos e perdas não é o indivíduo que faz a escolha. A escolha que o favorece pode ser a menos ética.

João Vasco disse...

«Finalmente, a afirmação esconde os custos para a sociedade causados pelo facto do "roubado" ter sido privado de gastar o seu (merecido) dinheiro. Mesmo que o gaste a comprar 10 iates, a riqueza passará para os vendedores e construtores de iates até ao madeireiro dos cascos que o usará para melhorar o seguro de saúde dos filhos, o que se calhar em vez de 3 contribui para salvar 4 ou 5 vidas»

Este argumento resulta no mesmo que o primeiro, e a sua refutação é idêntica.

João Vasco disse...

« E que sendo o homem (na sua generalidade) um animal racional saberá melhor o que fazer ao dinheiro, do que um "ladrão" que ainda por cima tem "carta branca" para proceder aos roubos que bem entender. »

ah!ah!ah!
Então o ladrão deixou de ser um animal racional?

Obviamente ninguém dá carta branca a ninguém: o que está escrito no início do texto é que o roubo, geralmente, é errado.

A carta branca é dada neste caso específico, em que roubar é a atitude certa. E quem, nestas circustâncias, preferisse deixar os 7 morrerem a roubar teria tido uma atitude monstruosa, em termos éticos.

FMP disse...

"Mas se estiver a trabalhar no domínio em que aceita essa suposição"

Não vejo razão para o fazer...

"um assassino profissional pode valorizar mais o dinheiro que recebe do que a vida das suas vítimas.
Então porque é que a sua acção é condenável?"

Porque foi responsável pela morte de um terceiro. A diferença é clara. O contribuinte não tem culpa que hajam pessoas à beira da morte, e não tem obrigação de as assistir financeiramente.

"A escolha que o favorece pode ser a menos ética. "

A escolha que o favorece é sempre a mais ética, desde que com isso não prejudique ilegitimamente ninguém.

Não assistir não é o mesmo que matar. Caso contrário, o simples acto de ir ao cinema seria monstruoso, só porque os 7 euros do bilhete podem salvar uma criança em África.

"Então o ladrão deixou de ser um animal racional?"
Vasco, o ladrão é o estado, que nem sequer animal é, quanto mais racional....

João Vasco disse...

«"Mas se estiver a trabalhar no domínio em que aceita essa suposição"

Não vejo razão para o fazer...»

Então nesse caso, as suas refutações perdem sentido, visto que o que está escrito é relativo a ESSA suposição.

Pode dizer que a suposição é falsa, e se conseguir prová-lo, eu deixaria de ser favorável ao SNS.

Não pode é dizer que se fosse verdadeira, o SNS não era preferível ao sistema privado por ser menos eficiente - porque isso contraria a suposição.

João Vasco disse...

«"Mas se estiver a trabalhar no domínio em que aceita essa suposição"

Não vejo razão para o fazer...»

Então nesse caso, as suas refutações perdem sentido, visto que o que está escrito é relativo a ESSA suposição.

Pode dizer que a suposição é falsa, e se conseguir prová-lo, eu deixaria de ser favorável ao SNS.

Não pode é dizer que se fosse verdadeira, o SNS não era preferível ao sistema privado por ser menos eficiente - porque isso contraria a suposição.

João Vasco disse...

«Porque foi responsável pela morte de um terceiro. A diferença é clara. O contribuinte não tem culpa que hajam pessoas à beira da morte, e não tem obrigação de as assistir financeiramente.»

Sim, mas ao estabelecermos que não se pode causar a morte de terceiros temos de ter alguma razão para o fazer.

Se considerarmos que cada um pode avaliar os ganhos e perdas pessoais sem consideração pelos ganhos e perdas globais, não existe qualquer razão para impedir o homicídio.

João Vasco disse...

«A escolha que o favorece é sempre a mais ética, desde que com isso não prejudique ilegitimamente ninguém. »

Ah é?

Então o Bill Gates, se entendeu que doar os recursos que doou para a sua fundação o desfavorecia, e mesmo assim fez o sacrifício e deu, teve a atitude menos ética, visto que a atitude mais ética era aquela que o favorecia.

João Vasco disse...

«Não assistir não é o mesmo que matar. Caso contrário, o simples acto de ir ao cinema seria monstruoso, só porque os 7 euros do bilhete podem salvar uma criança em África. »

São coisas diferentes, pois têm consequências diferentes.

Mas não assistir é grave.
Tanto é que em Portugal até é ilegal - pode realmente ir-se preso por não assistir directamente alguém que precisa. E acho que faz sentido.

João Vasco disse...

«Vasco, o ladrão é o estado, que nem sequer animal é, quanto mais racional....»

O estado, tal como as empresas, é uma entidade composta por animais. Apenas acho que o argumento de "é um animal" não pega.

Se assim fosse, então não poderia obstar contra a atitude do "ladrão" do exemplo, visto que este era um "animal racional" que individualmente alica a ética utilitarista.

FMP disse...

Caríssimo,

Em relação ao primeiro ponto, aquilo que tu dizes, de forma clara, no primeiro texto e nos demais é que os impostos podem ser aceitáveis desde que possamos provar que eles salvaram uma vida. O que eu te digo é que isso é errado, primeiro porque também podias salvar essa vida sem impostos e em segundo porque nunca saberás quantas vidas poderia salvar o montante que foi cobrado ao contribuinte se tivesse sido gasto de forma voluntária.

FMP disse...

"Se considerarmos que cada um pode avaliar os ganhos e perdas pessoais sem consideração pelos ganhos e perdas globais, não existe qualquer razão para impedir o homicídio."

O homicídio é impedido e punido pela agressão que constitui ao indivíduo e não pela "avaliação das perdas globais".

"Mas não assistir é grave.
Tanto é que em Portugal até é ilegal"

Eu escrevi "assistir financeiramente".

Se não consegues perceber a diferença entre um homicida e um homem que se acha no direito de escolher a aplicação a dar ao fruto do seu trabalho, acho que não vale a pena discutir mais este ponto.

"Então o Bill Gates, se entendeu que doar os recursos que doou para a sua fundação o desfavorecia, e mesmo assim fez o sacrifício"

O Bill Gates agiu de forma voluntária, logo não podes afirmar que fez sacrifício. Sacrifício é trocar uma coisa valiosa por outra menos valiosa. Ao fazer essa doação ele apenas revela que prefere essa aplicação a outra qualquer. Embora favoreça terceiros, também o favorece a ele, nem que seja interiormente. É justamente este tipo de valores que a esquerda socialista não consegue perceber....


"São coisas diferentes, pois têm consequências diferentes."

São coisas iguais, se preferires salvar uma criança em vez de veres um filme, faz uma transferência para a AMI e deixa de ir ao cinema. Cada ida tua pressupõe sempre esse juízo de valor, por muito que te custe.

"O estado, tal como as empresas, é uma entidade composta por animais"

esta merece um prémio.....