2006/07/27

Re: A aritmética da guerra

No artigo anterior, o Karloos refere (e bem) uma das competências que é aceite pelo liberalismo e pela generalidade das filosofias políticas como uma competência natural do estado, e que é a preservação da segurança dos seus cidadãos.

Se no estado vizinho houver duas pessoas a conspirar contra a vida de um dos seus cidadãos, é obrigação de um estado cumpridor impedi-los de o fazer seja pela aniquilação, pela prisão ou qualquer outro método de imobilizar a ameaça.
O que o Karloos não refere é que a legitimidade desse estado, das suas políticas e das suas competências se deve restringir ao limite da sua soberania, nomeadamente ao limite das suas fronteiras. Aplicando-se a sua perspectiva, qualquer estado teria toda a legitimidade para irromper pelas fronteiras de um qualquer outro para resgatar não olhando a meios qualquer cidadão seu que, praticando num outro país algo que lá seja crime mas que não o seja no país de orígem, seja por consequência privado da liberdade (ou até morto se lá vigorar a pena de morte). Mais: na perspectiva über-salomónica de justiça expressa pelo Karloos, atropelar-se-iam até instituições jurídicas que vigoram em diversos estados de direito em que (como no nosso) a preparação e a conspiração em volta da prática de um crime não são sancionáveis legalmente, ou ainda mais, o direito que assiste a qualquer pessoa a um julgamento justo pelos seus pares. Ou seja, algo é "crime" a lidar com os meios que apetecerem se for feito noutro país, mas não é se for no "nosso".

A avaliar-se a situação pelo prisma da obrigação do estado em zelar pela segurança dos cidadãos, poder-se-à sim concluir em primeiro lugar algo de interessante: o primeiro culpado a apontar responsabilidades é esse mesmo estado de Israel que, ciente do risco que toma, não estabeleceu no limite da sua jurisdição os mecanismos que impedissem o sucesso dessas ofensivas estrangeiras. Fossem muros de prevenção na fronteira do Líbano, mecanismos de intercepção dos rockets ou mais rigoro controlo fronteiriço (ou até no limite encerramento da fronteira) que impedissem a entrada de potencias terroristas. Foi a demissão do estado de Israel das suas funções e dos mecanismos ao seu alcance que permitiu que isso acontecesse.

O que o Karloos está a referir e a defender não é um direito dos cidadãos de Israel à segurança garantido pelo estado. O que está a defender é um direitos desses cidadãos à vingança, mandatado no exercício de funções do estado. Um direito a retaliar na casa do vizinho à sua propria medida em nome de argumentos de hipotética segurança. O que é algo completamente diferente. Se os soldadinhos de Israel se deixaram raptar e ir para um país estrangeiro, foi em primeiro lugar culpa do exército israelita que tinha a obrigação e o dever solidário de os defender e do controlo da fronteira que permitiu a passagem dos soldados sequestrados.

Falhadas essas medidas, ao estado de Israel resta-lhe duas vias que considero legítimas: a de pela diplomacia tentar recuparar os seus soldados e fazer com que os seus captores sejam julgados, ou em alternativa declarar guerra ao Líbano, cumprindo com as regras desta estabelecidas nas convenções internacionais que Israel subscreveu.

Agora o que não é tolerável é a adopção destes mecanismos de punição colectiva, fora da sua soberania, por quem pode, ou legitimar vinganças colectivas por mandato. Porque a fazer-se isso, perde-se a razão e legitima-se tudo.

4 comentários:

Carlos Guimarães Pinto disse...

Desde o primeiro dia da sua existência que Israel tem sido vítima de ataques de países vizinhos. O motivo pelo qual Israel tinha soldados no Líbano e na Palestina é para se defender. Penso que todos concordamos que Israel não quer territórios libaneses. Neste sentido é completamente legítima qualquer acção que vise a defesa do seu território mesmo que seja de espionagem.
Esta é uma guerra que Israel não quer. Os líderes israelitas nunca defenderam a aniquilação de qualquer estado vizinho mas o contrário já acontece.
A noção de que a defesa se deve limitar às suas fronteiras é errada. Hoje um míssil pode ser lançado a vário quilómetros de distância. Quererá isto dizer que Israel só deverá interceptar um míssil quando este cruze a sua fronteira? Não se poderá defender destruindo as zonas de lançamento, os radares e quem financia esses lançamentos? Temos que não nos esquecer duma coisa: esta é uma guerra que Israel não quer. Se os países terroristas vizinhos respeitassem o direito à existência de Israel acabariam-se as mortes.
Considero que seja discutível a legitimidade da criação do estado de Israel, mas, considerando legítima essa criação, o Estado tem todo o direito a defender-se dentro ou fora das suas fronteiras.

AA disse...

O que o Karloos está a referir e a defender não é um direito dos cidadãos de Israel à segurança garantido pelo estado. O que está a defender é um direitos desses cidadãos à vingança

Mas as pessoas têm direito a compensação, chamemos-lhe vingança ou não... vamos a algum brainstorming...

Em termos de justiça supra-legal, se alguém é raptado, e não quer ser raptado, é lícito providenciar o seu resgate por quaisquer meios que não agridam direitos de outrem, sendo que qualquer violência utilizada contra os raptores é justificada se for pelo menos equivalente à resistência que os raptores estejam dispostos a utilizar.

Ou seja, Israel ou os israelitas ou quem queira salvar os private Davids não tem razão em bombardear indiscriminadamente o Líbano para salvar alguém. Que inocentes sofram não é justificável.

Não que os rockets do Hezbollah sejam resistência. São uma agressão indiscriminada, uma agressão, independente dos raptos. Têm razão os israelitas bombardeados, os directamente afectados, para clamar justiça, assim como aqueles que poderiam ser afectados. Eu concordo que os crimes sejam considerados "públicos" quando os alvos sejam indiscriminados - terrorismo. Se essa malta chuveira rockets, alguém tem de lhes limpar o sebo.

Agora, tenho grande dificuldade em justificar acções de Estados à luz de qualquer legitimidade. Mas perante o princípio que a Justiça deve servir a vítima, que tem que haver consequências pela execução da Justiça, e que o agressor está identificado, deve o Estado Libanês dizer se apoia o Hezbollah, e/ou se entende que as acções de Israel são um acto de guerra; ou desarmar o Hezbollah conforme previsto nos acórdãos internacionais; ou declará-lo fora da sua jurisdição, e nesse caso abre caminho à intervenção de outras agências de Justiça. Este último é o caso implícito, por omissão.

Os inocentes vêem-se sem protecção estatal. Em estado de anarquia. Eu diria que têm todo o direito de proteger a sua vida, a sua liberdade, a sua propriedade, de resistirem à invasão se entenderem. Mas ou assumem essa condição ou delegam... no Hezbollah. O que se passa é uma guerra, e numa guerra os intervenientes têm de escolher a sua posição. Se o Poder é de facto o Hezbollah e dele discordam, têm o dever moral de afastarem-se ou tentarem derrubar o Poder...

JLP disse...

"Desde o primeiro dia da sua existência que Israel tem sido vítima de ataques de países vizinhos."

Se calhar em grande parte pela discutibilidade da legitimidade da criação desse mesmo estado que tu próprio enuncias, mas que não é o assunto em discussão, nem emiti uma opinião a favor ou contra.

"Penso que todos concordamos que Israel não quer territórios libaneses. "

Será? É que o mesmo argumento de criação de "zonas tampão" de segurança é utilizado há quase 40 anos por Israel para ocupar (e colonizar) território da Jordania, Egipto e Síria. Face a este "curriculum" não há nada que me faça excluir o mesmo comportamento eventual de Israel para com o sul do Líbano.

"Hoje um míssil pode ser lançado a vário quilómetros de distância. Quererá isto dizer que Israel só deverá interceptar um míssil quando este cruze a sua fronteira?"

Sim.

"Não se poderá defender destruindo as zonas de lançamento, os radares e quem financia esses lançamentos?"

Não os poderá distruir.

Já agora, estando Israel a ocupar território Sírio, e como tal a afrontar direitos de cidadãos que estão sobre a alçada da sua soberania, pelo teu raciocínio não seria perfeitamente legítimo à Siria atacar interesses americanos, já que estes também financiam os meios de ocupação israelitas?

Naturalmente que a intercepção de um míssel que viole o território de Israel (ou o eventual sucesso do ataque) devem constituir para mim razões legítimas de declaração de guerra por parte de Israel a quem violou a sua soberania territorial. E é minha tese que, acontecendo isto, e não demontrando o estado agressor (caso não seja ele a liderar o ataque mas sim um qualquer grupo de cidadãos) vontade de capturar e punir os autores por critérios que Israel considerasse justos, e estabelecidos à priori, Israel ou todos os seus aliados possam retaliar sem qualquer restrições de proporcionalidade.

Mas não é este enquadramento de direito internacional que existe no presente.

JLP disse...

"Em termos de justiça supra-legal, se alguém é raptado, e não quer ser raptado, é lícito providenciar o seu resgate por quaisquer meios que não agridam direitos de outrem, sendo que qualquer violência utilizada contra os raptores é justificada se for pelo menos equivalente à resistência que os raptores estejam dispostos a utilizar."

Isso é conversa que dava pano para mangas... :-)

Vem tudo das questões clássicas das teorias penais, no que toca à "pena" como mecanismo legitimo de punição ou vingança, de protecção da sociedade do criminoso ou da sua reabilitação. Passando também pela definição dos limites da "legítima defesa" e da acção policial.

Uma questão interessante é se será legítimo a um determinado país aplicar aos estrangeiros teorias penais diferentes das que aplica aos nacionais, e também qual seria o sistema penal defensável em termos de direito internacional.

Já agora, sobre o assunto (mas off-topic) um artigo interessante.

"[...] e que o agressor está identificado, deve o Estado Libanês dizer se apoia o Hezbollah, e/ou se entende que as acções de Israel são um acto de guerra; ou desarmar o Hezbollah conforme previsto nos acórdãos internacionais; ou declará-lo fora da sua jurisdição, e nesse caso abre caminho à intervenção de outras agências de Justiça. Este último é o caso implícito, por omissão."

Concordo. Desde que o mecanismo legitimador seja uma agressão efectiva, e não qualquer raciocínio de "prevenção" ou de "controlo da ameaça".

Já agora, seria interessante reflectir: se as ofensivas do Hezbollah consubstanciam casus belli, porque é que pura e simplesmente não fez a ameaça de guerra ao Líbano e não a declarou vendo que nada era feito? Será que não é muito confortável para Israel, com as suas costas quentes, este estatuto de "guerra sem ser guerra" em que pode (e faz) o que lhe dá na cabeça?

"Se o Poder é de facto o Hezbollah e dele discordam, têm o dever moral de afastarem-se ou tentarem derrubar o Poder..."

É exactamente esse raciocínio que eu assumo quando defendo a sobrania absoluta dos estados. A de que são eles, os principais interessados, que têm que resolver os seus problemas. Sem ingerências e sem interferências estrangeiras. Esse mecanismo de criação de "bons" e "maus" e de superioridades morais já se viu onde vão parar. O que não inviabiliza (aliás contribui para) a minha tese de que é legítima qualquer resposta, sem restrições de proporcionalidade, a violações da soberania.