2006/06/02

Liberalismo e condicionamento moral

Interessantes os artigos do Migas (1,2) sobre a problemática da naturaza humana, desaguando também na contraposição do Liberalismo ao Objectivismo de Ayn Rand, aí também com uma interessante contribuição do insurgente Helder Ferreira.

Trata-se da observação da realidade tal como ela é: a maior parte dos homens não é dominadora e predatória dentro da sua espécie (doves). Há alguns que são, mas são uma minoria (hawks). E justamente por serem uma minoria, as comunidades humanas têm historicamente tido uma propensão para uma prudente benevolência na abordagem à interacção social. Esta benevolência é regularmente posta em causa pelos hawks que tentam dominar os doves, mas estas situações de conflito não invalidam a base benévola da natureza humana.

Migas
Tenho uma perspectiva completamente distinta. Para mim, quando falamos de seres humanos, bem como de todos os outros animais, falamos só de falcões. Sou muito mais tendente a aceitar um cenário de estado natural hobbesiano, em que todos os homens dão largas ao seu instinto predatório incontido, do que num idílio de "benevolência social". Se, como refere o Migas, vai prevalecendo uma interacção social benevolente (de que tenho muitas dúvidas), será porque a própria diversidade genética dos humanos não fomenta assimetrias que possam conduzir a um regime estável de domínio das estratégias predatórias puras e duras sobre os mais contidos. Quando se tem uma população de predadores com poucas diferenças entre si, é natural que mais cedo ou mais tarde se tenham que atingir consensos mais ou menos contratualistas de modo a que, como refere Buchanan, possa haver algum desarmamento que conduza a um regime permanente mais previsível com um mínimo de benefício para todos.

Mesmo no passado e presente, o que julgo acontecer muitas vezes não são tentativas dos falcões de tentarem dominar. O que acontece é que ou esses contratos sociais se tornam desajustados, por alterações significativas das suas preposições iniciais pela mudança significativa do statu quo em termos de abundância ou escassez de recursos, ou por falta de enforceability. Essa alteração do cenário, principalmente no que toca à utilidade e do risco associada à violação do contracto social, motiva que progressivamente se regrida em direcção ao estado natural, com a adopção de estratégias predatórias anteriormente abandonadas, não por um grupo em particular de "falcões", mas porque essa é a identidade de todos os membros desse colectivo.
"Neste sentido, a posição objectivista parece-me mais esclarecida que a Liberal, porque enquanto o Objectivismo é um sistema filosófico completo, o Liberalismo é mais uma ideia político-económica em que o subjectivismo descreve a acção humana independentemente da percepção da realidade, o que esta de acordo com a visão objectivista, desde que essa percepção seja adquirida pela razão e não por qualquer relativismo, capricho, preconceito ou idealização.

[...]

A diferença (simplificando e generalizando) está em que o objectivista não se exime de fazer um julgamento moral da acção consequente, sem que (como os liberais) imponha a adopção do caminho correcto. Ouseja, o Liberalismo propõe um caminho e analisa a acção nas suas consequências e o Objectivismo propõe o mesmo caminho, analisa e faz um juizo moral.

Helder Ferreira
Eu sinto-me sem dúvida muito mais satisfeito com uma concepção que se limite ao âmbito político-económico! É essa exactamente para mim uma das grandes mais-valias do Liberalismo, a de construir um sistema de regras e de princípios a priori que não faça juízos de valor em relação a como terão que ser vividos e que não se oriente para um determinado paradigma. Quando fazemos isso, quando definimos metas moralmente mais válidas e critério morais em relação a onde é que esse Liberalismo deve ir parar estamos, quanto a mim, a comprometer os próprios pressupostos de defesa da liberdade a que nos comprometemos à partida.

Além disso eu, que relativista me confesso, tenho a dificuldade em aceitar toda a construção Objectivista baseada num conceito apriorista e metafísico da Razão. A minha perspectiva é que a Razão não existe como ente autónomo, mas é sim um comportamento ou tendência que emerge (mas para que não se caminha absolutamente) na condução de estratégias e caminhos individuais de maximização da utilidade e do hedonismo pessoal. Estará porventura mais ligado ao positivismo e à verificabilidade das preposições baseada em critérios demonstráveis dominarem os juízos de fé e de crença. Aliás, quanto a mim, o Objectivismo assume-se quase como uma Religião da Razão, limitando praticamente o Liberalismo a uma crença doutrinal de que é o melhor catecismo para lá chegar.

De resto, reitero a minha aversão a construções morais construidas em torno dos objectivos do Liberalismo. O meu Liberalismo é o que acha que é tão valido um caminho como o defendido pela tese Objectivista, como um outro de alguém que faça dele uso para construir uma caminhada hedonista e irracional. Nisso poder-me-ão acusar de utilitarismo, mas prefiro assumir esta escolha para defesa do Liberalismo do que uma que se baseie em o elevar a religião e profissão de fé.
Por fim reforço que de forma alguma o socialismo é optimista em relação à natureza humana. Os socialistas nunca falam dos homens, falam do Homem, uma criatura que não existe mas que eles querem criar a força, estilo even if it kills you.

Migas
Discordo. O Socialismo genericamente é optimista porque acredita que esse cenário é atingível, um cenário de homens iguais vivendo em harmonia e satisfeitos com o que têm. A mera assumpção de que isso é possível torna-a provavelmente na ideologia mais optimista em relação ao ser humano é à sua natureza. Curiosamente, também o Objectivismo é extremamente optimista em relação a isso, ao supôr um caminho moralmente mais elevado conduzente à revelação e ao atingir de Verdades apriorísticas.

Já quanto ao Liberalismo, intendido nos moldes acima, acho que é por excelência uma doutrina pessimista. A de que há que garantir mínimos no que é inviolável em cada indivíduo e máximos na possibilidade de cada um interferir com o próximo para que se possa atingir um mínimo de estabilidade e de ordem entre seres naturalmente competitivos.

8 comentários:

André Azevedo Alves disse...

Um post muito interessante.

Helder Ferreira disse...

Excelente. Duas ou três notas e prometo abordar o assunto num post futuro.
A acusação da transformação do Ojectivismo em religião é recorrente, mas a moral por si mesma não transforma uma ideia numa religião;
A ética e a metafisica Objectivista dão a dimensão humana que faltaria ao Liberalismo enquanto sistema politico-economico;
O Objectivismo não é "racionalista". O que defende é que a razão é a unica maneira de percepcionar a realidade. A acção consequente é subjectiva (liberal)e não necessariamente racional.
abraço e obrigado

Migas disse...

Boa "acha para a fogueira" :-) Prometo ripostar em breve.

Entretanto, e relativamente ao optimismo socialista: achar que os homens podem ser diferentes do que são não é optimismo em relação à sua natureza e ao que são agora. É quanto muito, wishful thinking de que eles podem se tornar naquilo que os socialistas preferiam que eles fossem, mas manifestamente não são...

Bom, de qq modo há muitos pontos diferentes aqui para tratar. Até breve e abraços.

JLP disse...

Obrigado a todos pela atenção.

Helder,

"A acusação da transformação do Ojectivismo em religião é recorrente, mas a moral por si mesma não transforma uma ideia numa religião;"

Concordo. Mas acho que o Objectivismo acumula características para além da moral condizentes com o conceito de religião, como por exemplo o conceito de crença ou de fé manifestado no facto de defender que somente o caminho da Razão sustentado no modelo que apresenta é o único para a Felicidade, ou no facto de conceber associadamente um modelo de cosmogonia associado a uma perspectiva dualista da natureza, perfeita e Verdadeira, à espera de ser descoberta pelo uso dessa Razão.

"A ética e a metafisica Objectivista dão a dimensão humana que faltaria ao Liberalismo enquanto sistema politico-economico;"

Não acho que faça falta. Acho até que pode ser potencialmente perverso, já que, pessoalmente, acho que o conciliar do conceito de Liberdade com a definição de objectivos, métodos e morais tem todo o potencial para o conflito, incoerência e para a perversão final da Liberdade como desígnio, em contrapartida passando esta ser vista como um mero meio para um (outro) fim.

"A acção consequente é subjectiva (liberal)e não necessariamente racional."

Poderá ser efectivamente subjectiva e irracional, mas manter-se-á então nesse momento defensável para um Objectivista, uma vez que optando por esse caminho estamos sujeitos ao juízo de valor que preconiza que nos afastamos do "Caminho"?

Migas,

"[...] achar que os homens podem ser diferentes do que são não é optimismo em relação à sua natureza e ao que são agora. É quanto muito, wishful thinking [...]"

Concordo. Mas não será o optimismo, por definição, wishful thinking? ;)

Não será até esse o principal problema do Socialismo? ;)

Abraço a todos e obrigado pela interessante discussão. Aguardo com ansiedade os prometidos desenvolvimentos!

Be gentle! ;)

Carlos Guimarães Pinto disse...

Muito bom.

Migas disse...

Caro JLP,

A primeira parte da resposta já está. Ainda falta a segunda mas o tempo infelizmente ainda não deu para tudo...

Abraço,
Migas

Helder Ferreira disse...

Já lá está o iníco da resposta. as questões postas não são simples e o tempo não abunda.

abraço
helder

JLP disse...

Conheço a sensação... ;-)

Prometo acompanhar a resposta (o que já fiz), e na medida do possível dar o meu contributo e a minha réplica.

Abraço,

JLP