Sobre o recente aniversário da Constituição
Tenho mais um ano de vida do que a nossa presente Constituição.
Durante a minha vida e a minha maturação, vim lentamente a descobrir os pormenores da história que a tinham justificado, e a maneira como ela se ia comportando no dia-a-dia. Aprendi que nascera de um consenso pós-revolucionário (e como tal coxo à partida) de um espectro político balizado entre os extremismos da esquerda marxista e o CDS "rigorosamente ao centro" do Prof. Freitas do Amaral. Num tempo em que o PS pretendia descolar a sua imagem do PCP afirmando-se pela Democracia e por renegar projectos totalitários, mas pouco mais. Dizem muitos que foi uma "grande Constituição", "revolucionaria no seu tempo e no Mundo". A cautela de muitos outros afirmou-a mais como a "Constituição possível".
Entendo uma Constituição como o reflexo escrito da identidade de um determinado povo, naquilo que os une, e não no que os separa. Repositório do consenso e não da diferença, nem modo de ditar as consciências por decreto.
Teve-se a tentação de transformar a nossa Constituição, essencialmente, no programa e declaração de princípios de um partido político, como se todo o Portugal fosse a mesma assembleia de militantes de um partido orientado para o socialismo. A tentação de se encher todos os seus artigos com presunções de direitos, liberdades e garantias "invioláveis", e de tudo o mais que pudesse ganhar com o estatuto de constar no texto do opus sacrossanto. Desde o estatuto de autoridades para o Audiovisual, até ao método de eleição de representantes e divisão administrativa do estado.
O que é que se tem hoje? Um documento jovem de trinta anos, mas velho, muito velho de conteúdo. Um documento progressista de trinta anos que cheira a bafio ao pé de uma Constituição americana de duzentos e muitos. Um documento que só se faz notar quando precisa de ser revisto, para se "martelar" e ajustar à voracidade dos tempos. A humilhação de um texto afirmado como fundamental, mas que é cada vez mais letra morta e um bibelot do nosso passado revolucionário.
Quem é que a nossa Constituição protegeu no tempo da sua vigência? Que equilíbrio entre o poder e os cidadãos é que ajudou a promover? Que habitação é que garantiu, que ensino (gratuito ou tendencialmente) assim bem com saúde, ajudou a promover? Que protecção de que direitos efectivos é que é reconhecida nela quando interrogado o comum dos cidadãos?
O espectro político português também já não é, sem dúvida, o mesmo. Os partidos são os mesmos (ou quase), mas os posicionamentos mudaram. Apesar de continuar coxo, a distribuição e as ideias desses partidos já não são as mesmas. O que diriam os militantes do PS na altura da constituinte se pudessem ver as medidas que os seus descendentes políticos defendem?
Fazer doutrina ideológica numa Constituição, é para mim, errado. A Utopia de alguns não pode tornar-se pela via administrativa a Utopia de todos.
É tempo de se dar o golpe de misericórdia. Se decapitar não bastar, aquele que for preciso. Perde-se a cada dia a oportunidade de construir com calma, em Democracia e sem atropelar ninguém. uma nova Constituição. Sem socialismo mas também sem conservadorismo, neoliberalismo (o que quer que isso seja) marxismo ou outra forma de ideologia imposta. Um documento em que as pessoas se revejam e que sintam que existe para as ajudar e garantir as suas liberdades e direitos, e não como empecilho ou como retórica distante. Cada dia que passa é um dia a menos para a ruptura, descredibilização e abusos finais que se terão, como é lei da vida, que vencer com meios eventualmente menos pacíficos e consensuais.
Temos uma Constituição de Revolução. Cada dia vamos perdendo a oportunidade de ter uma Constituição de Paz.
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