2008/04/03

Jurisprudência "progressista"

Uma abordagem liberal do divórcio em matéria de casamento civil, tal como configurado no Código Civil e abstraindo agora das reticências que a própria instituição suscita, tem de passar ao lado de chavões do género "os contratos devem ser cumpridos" ou meias verdades como "não há casamento sem deveres conjugais". Vejamos cada uma destas ideias:

  1. Em relação à primeira, cabe dizer que a regra de que os contratos devem ser escrupulosamente cumpridos vale para os contratos de execução instantânea (uma compra e venda, por exemplo), mas não vale, nem nunca valeu, como regra, para os contratos duradouros.

    Estes são, em princípio, livremente denunciáveis e isto em atenção a duas razões fundamentais. Uma prende-se com o facto de, em regra, quando se fazem contratos duradouros, as partes não quererem vincular-se eternamente a uma prestação, cujo cumprimento, com o decorrer do tempo, se pode tornar indesejável. A outra diz respeito à confiança que se afigura essencial num contrato duradouro e que pode muito bem ser irremediavelmente afectada, mesmo quando não haja tipicamente uma violação do contrato por parte do outro contraente.

    Há, claro está, inúmeras excepções: por boas ou más razões sociais, o contrato de trabalho é denunciável pelo trabalhador, mas não pelo empregador, o mesmo sucedendo com o arrendamento, livremente denunciável pelo inquilino, mas não pelo senhorio. Tirando estas excepções mais conhecidas, a regra (no mandato, na agência, no "franchising", etc...) é a da denúncia ser livre.
    Os fundamentalistas do contratualismo em matéria de casamento ficarão, pois, espantados se lhes dissermos que o princípio geral do direito aplicado ao casamento civil pressuporia a possibilidade de um cônjuge divorciar-se sem para tal ter que invocar "justa causa". Claro que o casamento está longe de reduzir-se a um contrato, mas isso é precisamente o que o contratualista disputa...

    Isto dito, note-se que, sendo o casamento civil um contrato inteiramente independente do casamento católico (ou outro), não se vê por que razão a regra terá de ser o da perpetuidade do casamento. Sê-lo ou não depende antes de mais das concepções gerais vigentes na sociedade. O que, aliás, sucede com qualquer tipo contratual, cujo conteúdo, antes de ser legislado, já é moldado pelos cidadãos nas relações que estabelecem entre si. E para ser justo com o legislador, parece que a opinião vigente é a de que realmente já não fará muito sentido prender alguém a uma relação que só lhe traz miséria e infelicidade.
  2. Já no que diz respeito à ideia de que o divórcio sem ilicitude acaba com a própria noção de "deveres conjugais" também não assiste razão a quem vê na ideia de divórcio sem culpa uma confusão / identificação do casamento com a união de facto.
    A verdade é que as duas situações continuarão a ser perfeitamente distinguíveis, não só na noção que lhes cabe, como também nos efeitos que produzem. O cônjuge terá de prestar alimentos ao outro em caso de divórcio, o que não sucede com o unido de facto; terá também de ser fiel durante a vigência do casamento, não sendo esse o caso do unido de facto que não é devedor de quaisquer obrigações conjugais, nem sequer a da exclusividade. O cônjuge terá direito à herança como herdeiro legitimário, ao contrário do que acontece com o unido de facto. Etc, etc...

    A nova lei, se alguma vez entrar em vigor, não altera o facto de o cônjuge continuar adstrito a um certo leque de deveres e de manter um conjunto de direitos, pressupondo, portanto, o exercício do direito de se divorciar a extinção de uns e de outros. Acresce que, nem sequer se pode dizer que a nova lei transforma o casamento num contrato, que, como outros contratos duradouros, seja livremente denunciável. Há uma restrição evidente que passa por ser necessário provar a ruptura da vida em comum ou as tais razões objectivas de que tanto se fala, situação que, como é evidente, pressupôe que o divórcio não dependa apenas da vontade do cônjuge que intentar a acção.
  3. Quanto às razões objectivas, pelo que leio nos jornais e nos blogues, o projecto pouco ou nada inova em relação à jurisprudência que nos últimos 10 ou 15 anos tem sido aplicada. Veja-se a esse propósito o último texto de Teixeira da Mota no Público para vários exemplos de decisões do Supremo que concedem o divórcio em casos típicos de ruptura da vida em comum, nos quais não se vislumbra quaisquer violações graves dos deveres conjugais. Os exemplos tirados da jurisprudência atestam aquilo que toda a gente conhece: casamentos em que a vida em comum se torna um tormento, o que leva os cônjuges a ter vidas separadas, sendo pouco mais que estranhos entre si. Nos últimos anos foi até possível desenvolver doutrina sobre o assunto, falando-se a esse propósito do divórcio como último remédio para uma união que se demonstra irrecuperável.

    Sob risco de chocar alguém, é possível dizer-se que, nesta matéria, os tribunais portugueses são tão "progressistas" como o Bloco de Esquerda, com a vantagem e o proveito de o serem há mais de 10 anos, pelo menos. Revelam nisso o bom senso de perceber que um casamento destroçado pela força das circunstâncias não deve ser mantido a custo da felicidade e, por que não dizê-lo, da sanidade das pessoas.

    Ora, como o STJ não é suspeito de ser um antro de saudosistas do Maio de 68 ou de jacobinos, sendo bem, pelo contrário, criticado pelo seu conservadorismo e desfasamento em relação à "modernidade" (seja o que isso for) apraz-se registar esta jurisprudência como mais um exemplo da superioridade do liberalismo: a sociedade, através dos tribunais, tratou, em bom tempo, de adequar a lei às suas concepções de justiça, sem precisar do legislador para nada.

    Convêm, pois, que o legislador se limite a consagrar a jurisprudência neste domínio e não mais do que isso...
José Barros

1 comentário:

Anónimo disse...

O elogia final à jurisprudência é perfeitamente descabido: a jurisprudência com que sistmaticamente se atribui os filhos à guarda da mãe é um desastre.

Luís Lavoura