2007/10/23

A Loucura da Liberdade

E acho que é deveras maluco pretender o contrário, em geral, ou seja, defender que tudo deve ser permitido de uma forma completamente à vontade."

Luís Lavoura, nesta caixa de comentários
O Luís Lavoura escreve algo que infelizmente se ouve recorrentemente sempre que se questionam leis que limitam a acção de indivíduos. Primeiro que tudo penso ser sintomático pensar-se não em função do que deve ser proibido mas no que deve ser permitido. Porque não mudar o paradigma e perguntar:

"Porque é que qualquer acção tomada por um indivíduo responsável por si próprio, sem impacto sobre terceiros deve ser proibida?"

A esta pergunta recebo dois tipos de resposta.

Uma resposta paternalista, que se baseia no pressuposto que o estado toma melhores decisões do que os indivíduos em assuntos que apenas lhe dizem respeito a ele. Este pressuposto ganha força utilitária com a colectivização de alguns aspectos do dia a dia. Se o Estado tem o dever de garantir a saúde de cada um, o Estado tem o direito de moldar os comportamentos para que todos e cada um sejam saudáveis.

Uma resposta moralista. A lei de uma sociedade alargada e anónima substitui a antiga condenação social que resultava na pequena comunidade. As sanções sociais espontâneas não são suficientes para desincentivar comportamentos considerados pela maioria como indesejáveis. A alternativa moralista do séc. XX é a lei universal e punitiva.

Parece-me que a linha que ganha hoje é a paternalista. Os costumes maioritários só são defendidos se suportados por uma lógica paternalista. A utilização de drogas é um exemplo. São proibidas na medida que são fonte de problemas de saúde e de "exclusão social". É nestes casos em que argumentos moralistas se unem a argumentos paternalistas que a limitação à liberdade individual torna-se muito forte e encontra adeptos em colectivistas auto intitulados de direita e de esquerda. Por outro lado é nestes assuntos que podemos mostrar mais a coerência libertária, quando existe uma clivagem clara e em simultâneo com as várias versões predominantes de colectivismo.

20 comentários:

João Pereira da Silva disse...

Ricardo G. Francisco, poderá dar um exemplo de "acção tomada por um indivíduo responsável por si próprio, sem impacto sobre terceiros"? Mesmo o suícidio pode ter impacto sobre terceiros...

Ricardo G. Francisco disse...

No limite, tudo pode ter impacto em terceiros. Aqui entra o reconhecimento ou não de liberdades positivas.

O direito a ser-se feliz. O direito a não ter os sentidos incomodados com sensações desagradáveis e por aí adiante.


Se quiser corrija-me para

"acção tomada por um indivíduo responsável por si próprio, sem impacto sobre os direitos negativos de terceiros"?

Ricardo G. Francisco disse...

Continuando.

O suicídio não tem impacto em nenhuma liberdade negativa alheia.

O consumo de heroína tambem não.

A prostituição tambem não.

....

Hoje discute-se a proibição de ingestão de alimentos que aumentem as probabilidades de obesidade...

Anónimo disse...

Um bom exemplo do paternalismo que condena pode ser encontrado no seu post "Seguraça social (2) - Máquina trituradora". Por um lado é defensor de uma safety net que ajude um desempregado involuntário (que eu também apoio). Mas não concebe nessa safety net qualquer espaço para o exercício de responsabilidade individual do desempregado: não é suficiente disponibilizar-lhe um conjunto limitado de recursos financeiros durante um espaço de tempo limitado para que possa, por si só, decidir quando e quais as oportunidades que deve aceitar (sabendo de antemão que esses benefícios vão acabar num determinado momento); é necessário criar mecanismos que evitem que se torne um viciado em TV, e avaliar por ele que tipo de ofertas deve ou não aceitar, ignorando a sua situação em concreto (se tem obrigações familiares especiais, se se pode deslocar, ...). Não será este também um exemplo de paternalismo?

Anónimo disse...

Talvez fosse melhor discutir exemplos concretos, Ricardo Francisco, em vez de me acusar em abstrato.

Sobre as drogas, sou favorável à sua legalização, mas também entendo que o seu consumo não pode ocorrer em locais arbitrários, para evitar conflitos desagradáveis. Por exemplo, não estou interessado em encontrar um tipo a injetar-se com heroína na rua à porta do meu prédio um dia em que vá a entrar com os meus filhos. Também não estou nada interessado em ter um tipo a fumar tabaco ou cânhamo ao meu lado no trabalho. Esse tipo de confrontação pode dar origem a conflitos ou violências desagradáveis entre o tipo que se droga e o tipo que não deseja assistir à cena, ou que se sente incomodado. (Já alguma vez participei em conflitos desses com pessoas que se puseram a fumar ao meu lado.) Como tal, acho que os locais onde as pessoas se drogam devem ser regulamentados.

Nada tem de esquisito, se o Ricardo Francisco vir bem. Ter relações sexuais também é permitido mas, como o Ricardo Francisco sabe, e aceita (penso eu) sem objeções, não é permitido copular no meio da rua nem nas casas-de-banho públicas.

Luís Lavoura

Joao Galamba disse...

Ricardo,

Deixa lá a intoxicação. É possível ser-ser liberal sem cair em fetishes. A divinização aurática de uma palavra -sobretudo quando a queres definir de forma tão precisa- tolhe-te o raciocinio. Podes er contra o Estado e tudo o mais, mas deixa-te de delírios

Ricardo G. Francisco disse...

João,

Primeiro que tudo, bem vindo por aqui.

Olha que não sou contra o Estado. Sou contra um Estado com poderes sem restrição...

Pode ser que esteja em fase de negação, mas para já, acredito que não estou delirante. Acreditar que é possível um Estado com poderes limitados ou pelo menos cada vez mais limitados é uma possibilidade...

Ricardo G. Francisco disse...

Luís,

Cá está...porque é o direito de "não se sentir incomodado" com cenas desagradáveis na via pública deve ser mais importante do que o direito a dispor do seu próprio corpo?

"Nada tem de esquisito, se o Ricardo Francisco vir bem. Ter relações sexuais também é permitido mas, como o Ricardo Francisco sabe, e aceita (penso eu) sem objeções, não é permitido copular no meio da rua nem nas casas-de-banho públicas."

...pensa mal...

Ricardo G. Francisco disse...

CAro António Carlos,

Tem razão na base do seu comentário. Uma safety net não é compatível com uma abordagem pura libertária.

A safety net que defendo não está lá para proteger quem perde o emprego. Deve estar lá para quem por alguma razão externa não tem meios de subsitencia. E deve ser mesmo mínima...associada ao direito à vida e não ao direito à boa vida.

Ricardo G. Francisco disse...

Caro António Carlos,

Não acho que se deva interferir na vida das pessoas. Se alguem quiser passar a vida a ver televisão deve ser uma decisão própria. A utilização de impostos, fruto do trabalho alheio para financiar a opção de não trabalho é que está errada. Um exemplo de boas intenções que dão mau resultado. Unintended consquences como escreveu o Migas...

Anónimo disse...

Porque, como o Ricardo Francisco sabe, todos temos que viver em sociedade, e, embora a tolerância seja uma virtude, não convem abusar dessa virtude, que nem todos podem ter em alto grau.

Assim, convem evitar conflitos inúteis entre pessoas não muito tolerantes e outras que querem sair um bocado do comum. Esses conflitos geralmente são desagradáveis para ambas as partes, e para terceiros, podem levar a ressentimentos de longo prazo, e às vezes até dão sangue.

Por essas razões, convem separar as pessoas e os comportamentos, para evitar que algumas pessoas fiquem ofendidas e reajam.

Tá a perceber, Ricardo? Simples razões práticas.

Da mesma forma que há praias de nudistas. É claro que fazer nudismo não tem mal nenhum, mas há muita gente que não gosta de estar no meio de nudistas. Por isso, fazem-se separações: diz-se que nas praias em geral não é permitido fazer nudismo, mas em certas praias especiais, é. Simplesmente para evitar conflitos, que seriam desagradáveis tanto para os nudistas como para os não-nudistas.

Já percebeu, ou é preciso fazer um desenho?

Luís Lavoura

Anónimo disse...

Caro Ricardo,

o seu paternalismo está espelhado na frase seguinte:
"E deve ser mesmo mínima...associada ao direito à vida e não ao direito à boa vida."
Paternalmente pretende educar os desempregados sem meios de subsistência (exceptuando quem vive do rendimento de capitais, para mim os meios de subsistência advêm de um emprego) a utilizar o seu subsídio de desemprego. Classifica a recusa de uma oferta de emprego como um sinal de "boa vida", avaliando essa recusa em abstracto sem ter em consideração a informação que só cada desempregado possui em concreto e que deve ser avaliada por si à luz da sua responsabilidade pessoal. Já estive na situação concreta de recusar uma proposta de emprego porque outra que eu considerava melhor estava ainda em fase de decisão. Arrisquei mas felizmente correu como planeava. Claro que para um observador externo, sem possuir toda a informação, a razão da minha recusa podia ter sido o querer "a boa vida". Insistir na criação de mecanismos que procurem, em abstracto, evitar que os desempregados caiam na "boa vida" é um bom exemplo de paternalismo.

Ricardo G. Francisco disse...

"Paternalmente pretende educar os desempregados sem meios de subsistência (exceptuando quem vive do rendimento de capitais, para mim os meios de subsistência advêm de um emprego) a utilizar o seu subsídio de desemprego."

Não entendo o seu raciocíneo. Eu identifico que a intervençaõ como paternalista. Ao sugerir que não se faça esta intervenção sou paternalista? Entenda...não digo que se deva ou não ver televisão, que se trabalhe ou não.Que sejam decisões individuais, livres e responsáveis...e não decisões influenciadas pelo Estado.



"Classifica a recusa de uma oferta de emprego como um sinal de "boa vida"

Classifiquei como um sinal de que a pessoa em questão fez as contas e que em uma prespectiva financeira de curto prazo faz sentido. Conheço bem a situação que claramente não foi a sua.

Anónimo disse...

"Não entendo o seu raciocíneo."
A questão prévia que é necessário esclarecer é se defende ou não uma safety net que um desempregado involuntário possa utilizar durante um período limitado de tempo. Eu defendo e, pelo seu post e comentários que fez, deduzi que também defendia (obviamente que assumir a existência de uma safety net é assumir a intervenção estatal, e eu assumo). É a partir deste pressuposto que a questão do paternalismo se coloca. Deve essa safety net ser "desenhada" de forma a não induzir determinados comportamentos (versão paternalista) ou deve simplesmente deixar à responsabilidade individual do desempregado decidir como utilizar essa safety net (versão liberal)?
A versão paternalista pressupõe a criação de mecanismos que evitem que o julgamento individual quanto ao uso do subsídio (nomeadamente aceitação ou não de propostas de emprego) do desempregado o façam cair na "boa vida".
Qual é então a sua opinião?

Anónimo disse...

"Classifiquei como um sinal de que a pessoa em questão fez as contas e que em uma prespectiva financeira de curto prazo faz sentido."
A sua ideia, que me parece implícita nesta frase, é que o desempregado faria melhor em ter uma perspectiva de longo prazo. Mas não é paternalista da sua parte pretender afirmar que a melhor solução para a pessoa em causa não é a que ele toma mas a que julga que ele deve tomar? A pessoa em causa não é adulta? Não deve tomar as suas decisões assumindo a sua responsabilidade individual por elas? Porquê então tentar "paternalisticamente" decidir por ela ou influenciar a sua decisão? Porque é que se considera em melhor posição para decidir o que é afinal melhor para ela?

Anónimo disse...

Mais uma achega para tentar clarificar a minha posição.
Disse no seu posta a dada altura:
"Parece-me que a linha que ganha hoje é a paternalista. Os costumes maioritários só são defendidos se suportados por uma lógica paternalista. A utilização de drogas é um exemplo. São proibidas na medida que são fonte de problemas de saúde e de "exclusão social"."
Segundo esta linha de raciocínio, um defensor da existência de uma safety net para desempregados involuntários (sem outras fontes de rendimentos) seria afinal contra a sua "implementação" porque poderia conduzir a problemas de adopção de "boa vida". Onde é que fica a responsabilidade individual do desempregado nesta equação?

JLP disse...

Caro António Carlos,

Deve essa safety net ser "desenhada" de forma a não induzir determinados comportamentos (versão paternalista) ou deve simplesmente deixar à responsabilidade individual do desempregado decidir como utilizar essa safety net (versão liberal)?

A questão, quanto a mim e no que qualifico como uma perspectiva liberal, é que a defesa da existência de uma safety-net não se faz em termos liberais para lá do que deve ser, quanto a mim, o assegurar dos mínimos de sobrevivência e de capacidade de exercício de Liberdade, independentemente de o indivíduo estar desempregado, empregado a ganhar pouco, ou pura e simplesmente se esteja a marimbar para o trabalho.

Quanto a mim a ideia de "subsidio de desemprego" não se enquadra pura e simplesmente na noção liberal de safety-net.

Para mim safety-net é assegurar as necessidades diárias de alimentação que permitam a esse indivíduo sobreviver, eventualmente dar-lhe algo de vestir se precisar e um abrigo temporário caso não tenha tecto, assim como tratar de problemas de saúde que façam perigar a sua vida. Ponto final.

A ideia de subsídio de desemprego, algo para o qual aliás todos os trabalhadores descontam parte do seu salário, deve ser assegurado pela sua iniciativa pessoal, caso queira minimizar esse risco (o de ser despedido) e pretenda nessa situação algum conforto para além das necessidades básicas que possam ser satisfeitas pela safety-net nos moldes que referi. Ou por seguros dedicados, que naturalmente surgiriam se o estado abolisse o subsídio de emprego, ou através de mecanismos mutualistas. Aliás, os sindicatos (os tais que tanto gostam de protestar e infelizmente pouco de útil fazer) seriam candidatos naturais a fornecer esse género de serviços aos seus associados.

Também acha esta visão "paternalista"?

Anónimo disse...

Caro jlp,

não acho a sua visão nada paternalista. Acho a coerente com a defesa da não existência de um subsídio de desemprego enquanto safety net.
A questão do paternalismo aplica-se apenas aos que defendem uma safety net que inclui um subsídio de desemprego (que apesar de não ser uma posição liberal "pura" é ainda assim defendida por alguns liberais, e que dificilmente deixará de xistir no médio prazo) e defendem simultaneamente a sua "implementação" de forma a substituir a responsabilidade individual do desempregado em utilizar essa safety net por uma decisão paternalista (tentando evitar as unintended consequences). É só.

Ricardo G. Francisco disse...

CAro António Carlos,

""E deve ser mesmo mínima...associada ao direito à vida e não ao direito à boa vida."
Paternalmente pretende educar os desempregados sem meios de subsistência (exceptuando quem vive do rendimento de capitais, para mim os meios de subsistência advêm de um emprego) a utilizar o seu subsídio de desemprego."

Creio que a confusão tinha a ver com a sua interpretação de safety net como uma rede desenhada para desempregados. Vejo a safety net como uma rede em que podem "caír" desempregados. De qualquer forma estou bastante alinhado neste ponto com o JLP pelo que pode ler o comentário dele que é bastante elucidativo.

Ricardo G. Francisco disse...

"Assim, convem evitar conflitos inúteis entre pessoas não muito tolerantes e outras que querem sair um bocado do comum. Esses conflitos geralmente são desagradáveis para ambas as partes, e para terceiros, podem levar a ressentimentos de longo prazo, e às vezes até dão sangue.
"

Luís,

Não concordo que seja o papel do estado evitar conflictos devido a formas diferentes de agir na via pública. Faz um salto quando fala em sangue. Se der sangue existem outras violações a direitos que esses sim devem ser salvaguardados pelo estado.

Deu o exemplo de praias de nudistas. Eis um exemplo perfeito de um caso em que o Estado não tem nada que se meter.