2007/06/09

Já estou a ficar levemente entediado :)

A mesma razão moral que justifica que a pena pelo homicídio sustentado por motivações de ódio deva ser agravada, deverá conduzir naturalmente a que a pena pelo homicídio de alguém que professe e incentive ao ódio, praticado por alguém do grupo visado por esse ódio, deva ser atenuada. - JLP
Não, caro João. A qualificação do crime em virtude da agravante "ódio" não tem a ver com a qualidade da vítima, mas antes com a censurabilidade maior do acto praticado pelo agente. São indiferentes as qualidades da vítima (se era preta ou branca, boazinha ou mazinha), porque elas, neste caso (e ao contrário do que sucede noutros casos de homicídio qualificado), não jogam qualquer papel na qualificação do crime.

O que joga um papel decisivo é o facto de o crime ter sido cometido por causa de ódio racial, religioso ou político e esse ódio transparecer no acto, retirando-se da natureza do ataque que ele teve esse motivo e que não teria ocorrido não fosse ele. É tudo uma questão de prova, mas não vejo nenhum problema na questão da prova do motivo, porque ela faz-se da exacta mesma maneira que toda a outra prova. Só quem desconhece o direito é que pensa que não é habitualíssimo factores internos do agente relevarem para a resolução das mais diversas questões.

Assim, se o João, branco, mata o Pedro, que é negro, porque este anda metido com a sua mulher, então estaremos perante um crime passional e não perante um crime de ódio. Se o homicida insulta a vítima, chamando-lhe "cabrão do preto", mas o crime é cometido porque o criminoso se queria vingar de um mau negócio que a vítima lhe tinha aconselhado, não há crime de ódio.

Parece-me um pouco absurdo pretender que se trata de uma prova dificílima e subjectivíssima. Não é assim quando se procura provar a culpa de alguém, também não será assim quando se pretende provar o motivo. Quem defende que o motivo não possa ser considerado pela dificuldade de prova do mesmo, também teria de defender o mesmo para a culpa. Estou a ver engenheiros e economistas a revolucionarem o direito penal nos próximos anos.:)

Este consultório está sempre aberto. E aconselha o visionamento do Law and Order, já para não falar na leitura da obra completa do Professor Figueiredo Dias.:)

16 comentários:

Anónimo disse...

José Barros,

Depois do meu comentário, estive a conversar sobre o assunto. Sem lhe querer prolongar o tédio, confirmei algumas suposições - em particular sobre o aspecto que me deixou mais confundido face ao que conhecia, o da suposta consensualidade sobre o assunto:

- tal como o Arizona, há vários outros estados que recusaram legislar sobre a matéria;
- está pendente no congresso legislação sobre hate crimes que, se passar, o que é improvável, receberá o veto do Presidente
- a polémica sobre o assunto é forte, e transversal tanto a colunistas, como a advogados (o meu interlocutor), professores de direito, aos próprios juízes do Supremo e a uma parte muito significativa dos representantes federais - que defende a revogação de quaisquer leis sobre crimes de ódio;
- uma das críticas é, precisamente, a da dificuldade da prova - não tanto por ser díficil, mas por implicar aquilo que ele classificou como "blatantly unnecessary, excessive and intrusive methods" (isto veio acompanhado por um "but that's not the main issue").

Não sei mais porque o icq caiu. Mas pelo menos na questão da não existência de polémica ou do consenso (mesmo que relativo), não me parece que o José Barros e o Pedro Albergaria tenham alguma razão. E não são apenas engenheiros e economistas a discordarem. Talvez a consensualidade fosse apenas entre os penalistas portugueses, não?

JoaoMiranda disse...

««A qualificação do crime em virtude da agravante "ódio" não tem a ver com a qualidade da vítima, mas antes com a censurabilidade maior do acto praticado pelo agente.»»

A questão da "censurabilidade" tem subjacente uma teoria do direito específica. Que não é a única. Não me parece que a discussão possa avançar se não se aceitar que existem várias teorias do direito e que a dominante nas unviversidade portuguesas é particularmente anti-liberal.

Anónimo disse...

A questão da "censurabilidade" tem subjacente uma teoria do direito específica. Que não é a única. Não me parece que a discussão possa avançar se não se aceitar que existem várias teorias do direito e que a dominante nas unviversidade portuguesas é particularmente anti-liberal. - JM

O JM tem particulares conhecimentos do direito penal que se ensina nas universidades portuguesas?:)

Anónimo disse...

Não sei mais porque o icq caiu. Mas pelo menos na questão da não existência de polémica ou do consenso (mesmo que relativo), não me parece que o José Barros e o Pedro Albergaria tenham alguma razão. E não são apenas engenheiros e economistas a discordarem. Talvez a consensualidade fosse apenas entre os penalistas portugueses, não? - HO

A boca dos engenheiros e economistas é dirigida aos membros deste blogue e é aquilo a que se chama uma "private joke". E é retaliação perfeitamente admissível, tendo em conta o que tenho lido nos últimos dias.:)

Quanto ao consenso: não lhe saberei dizer nada quanto aos EUA, uma vez que tomei como boa a afirmação do Pedro Albergaria que sabe bastante mais do direito penal americano que qualquer um de nós.
Ele referia-se ao consenso apenas no que diz respeito aos crimes de ódio enquanto factor qualificador do crime.
Já não aos crimes de ódio como o crime de discriminação racial que, esses sim, são muito controversos. Tanto ele como eu criticámos os crimes de ódio neste segundo sentido, admitindo, no entanto, o ódio como elemento qualificador do crime de homicídio, tal como previsto no art.132º do CP.

- uma das críticas é, precisamente, a da dificuldade da prova - não tanto por ser díficil, mas por implicar aquilo que ele classificou como "blatantly unnecessary, excessive and intrusive methods" (isto veio acompanhado por um "but that's not the main issue"). - HO

Não por ser difícil. E mesmo que fosse, aplicar-se-ia sempre o "in dubio pro reo".

Quanto aos métodos, trata-se de uma questão completamente diferente. Há normas muito restritivas em Portugal quanto aos meios de prova, pelo que não será de recear nada nesse sentido.

Cirilo Marinho disse...

Guys, knock it off.

Anónimo disse...

"Ele referia-se ao consenso apenas no que diz respeito aos crimes de ódio enquanto factor qualificador do crime"

Foi só e apenas a esses que eu em referi; são exactamente esses que são controversos.

Anónimo disse...

Foi só e apenas a esses que eu em referi; são exactamente esses que são controversos. - HO

Ok, mea culpa se a minha anterior afirmação estiver errada. Daí não retiro nada quanto à necessidade de rever o 132º do CP quanto à matéria; tratando-se discutir o direito português, acho que há boas razões para manter a al.e) do mesmo artigo.

SMP disse...

Este consultório continua a aconselhar antes o visionamento d'«A Lei do Mais Forte». Às quartas, na SIC.

Anónimo disse...

Este consultório continua a aconselhar antes o visionamento d'«A Lei do Mais Forte». Às quartas, na SIC. - SMP

Estive para mencioná-lo. Mas parece-me que o Law and Order é mais pedagógico.

Concedo que a série é boa.:)

SMP disse...

Mas parece-me que o Law and Order é mais pedagógico.

(Evil laugh) Deixa-te começar a advogar e vais ver qual delas é mais pedagógica...

JoaoMiranda disse...

««
O JM tem particulares conhecimentos do direito penal que se ensina nas universidades portuguesas?:)»»

Nem é preciso. É fácil de perceber que aquilo que está por detrás da palavra "censurabilidade" é, como se costuma dizer, todo um programa ...

Anónimo disse...

Nem é preciso. É fácil de perceber que aquilo que está por detrás da palavra "censurabilidade" é, como se costuma dizer, todo um programa ... - JM

Ou seja, o JM não faz ideia do que está a falar, mas já viu o filme todo. Atitude tipicamente portuguesa.

Faz lembrar o gajo de Alfama dos gatos fedorentos a discutir política internacional.:)

Anónimo disse...

Caro ho:

Nesta como noutras matérias sou mero aprendiz de feiticeiro (aliás, não sou penalista; sou um juiz com gosto pelas coisas do direito penal). No entanto, devo dizer que, efectivamente, não terá entendido muito bem o que eu disse. Na verdade, quando refere que a decisão R. A. V. v. St. Paul deu muita polémica e que por isso não é verdade que a segunda modalidade de fazer relevar o ódio como elemento da incriminação, tem toda a razão e não tem razão nenhuma: ali, porque efectivamente a decisão gerou e gera ainda hoje muita polémica; aqui, porque erra o alvo – em R.A.V. v. St. Paul trata-se é de decidir sobre a constitucionalidade de uma incriminação das que se enquadram na primeira (sublinho, primeira) modalidade citada, das chamadas “fighting words” ou “expressões provocadoras” (a que o STF entendeu reconduzir a conduta dos que atearam fogo às cruzes). A tal segunda modalidade, de relevar o ódio como mera agravante de facto danoso, não tem, efectivamente, gerado a mesma polémica (p. ex., Wisconsin v. Mitchell, 1993). Repiso que os EUA têm, nessa matéria, uma posição que é única no direito ocidental: a do repúdio da incriminação da mera incitação ao ódio. De resto, têm efectuado reservas a tratados internacionais sobre a liberdade de expressão, precisamente para preservarem essa peculiaridade.
Quanto à distinção “ódio injustificável” e “raiva compreensível”, não sei bem a que se refere, mas temo que seja desconhecida da lei, da jurisprudência e da doutrina nacional. Mas julgo ter razão quando refere que é muito difícil avaliar, definir e isolar elementos subjectivos. Mas não creio que um direito penal digno desse nome pudesse prescindir deles. O dolo e a negligência são, também, elementos subjectivos; factos do “mundo interno” das pessoas e, no entanto, ninguém de bom senso prescindiria deles para a punição. Como alguém já disse, (um direito penal d)“a culpa foi a maior conquista da civilização”. Concordo consigo, por outro lado, que a investigação desses crimes pode abrir caminho a exageros e até a uma perigosa tentativa de heterodeterminação do pensamento. Ainda recentemente, viu-se na TV que a PJ entrou em casa de uns neo-nazis, ou outros de espécie similar, e levou, vejam só, uma edição do “Triunfo dos Porcos”. Por fim, é ainda pertinente o que refere no seu comentário abaixo, perguntando quantos “crimes de ódio” já foram praticados em Portugal, em razão de que realidade se legisla. Ora, bem esse é, de facto, um problema grave entre nós. Não se conhece bem o fenómeno criminal português, porque não há, desde logo, um Instituto de Criminologia. Depois, a integração europeia começa a constranger-nos também em matérias que, há não muito tempo, se julgavam totalmente subtraídas ao braço da União. Prova disso mesmo, é a incriminação do negacionismo que a presidência alemão pretende levar aos 4 cantos da EU. Vamos ver em que modalidade. Mas se for a espanhola, ai de nós.

JLP disse...

Zé,

"A qualificação do crime em virtude da agravante "ódio" não tem a ver com a qualidade da vítima, mas antes com a censurabilidade maior do acto praticado pelo agente."

Pois, mas o que eu refiro é que o juízo dessa censurabilidade é uma estrada de dois sentidos. O mesmo juízo moral que serve para agravar, baseado no motivo, certas formas de crime, inevitavelmente serve para atenuar a culpa de crimes que sejam cometidos contra essa forma de motivo. No fundo, o que acontece, é que acaba por se legitimar a forma de "ladrão que rouba ladrão". Aliás, podes imaginar o que seria por exemplo a reacção pública e a pressão que seria exercida sobre um tribunal caso um indivíduo que fizesse a apologia pública da pedofilia fosse morto pelo vizinho e pai de uma criança.

Os crimes de ódio acabam por ser, como nesse caso em relação à pedofilia (que também já vai merecendo os seus enquadramentos especializados) um mecanismo de penalização agravada de certas formas de discursos e atitudes, numa lógica de quase plebescito da vox pop em relação ao que é aceite ou não como acreditando-se que passa na cabeça de um indivíduo quando mata outro.

Pedro Albergaria,

"Repiso que os EUA têm, nessa matéria, uma posição que é única no direito ocidental: a do repúdio da incriminação da mera incitação ao ódio. De resto, têm efectuado reservas a tratados internacionais sobre a liberdade de expressão, precisamente para preservarem essa peculiaridade."

E fazem eles, quanto a mim, muito bem. Aliás, a sua afirmação tirou-me as palavras da boca e essa postura corresponde em grande parte ao que aqui se tem vindo a defender, já que uma das principais vítimas da penalização dos crimes de ódio é exactamente a liberdade de expressão.

Imagine-se um indivíduo que faz a defesa pública, no exercício da sua liberdade de expressão (não estou a falar em Portugal, com a sua política licenciosa em relação à "liberdade" de expressão, mas num país onde essa fosse garantida de forma absoluta na sua vertente negativa), de um discurso xenófobo e/ou racista. Concentremo-nos na questão racial. Alguém acredita que, se esse indivíduo viesse no futuro a matar alguém (por exemplo em legítima defesa) que por acaso fosse do grupo ou raça que ele critíca, não iria ser estabelecido um nexo de causabilidade e de censura entre os dois factos? A utilização de informação da conduta e do que alguém diz e pensa como mecanismo de indício e de estabelecimento de prova inquina, quanto a mim, completamente o espírito de isenção e de ausência de preconceitos que deve presidir a um julgamento.

Mesmo na perspectiva inversa, de um indivíduo que seja vítima num homicídio perpetrado por alguém do grupo ou raça sobre a qual verte o seu discurso racista, que até seja um activista da contra-causa (que seja essa, contudo, socialmente bem aceite), presumo como muito difícil que seja feita uma separação livre de preconceitos de um discurso do género "ele recebeu aquilo a que se andava a candidatar" da clara e objectiva análise dos factos, desprovida de juízos de motivações e de barricadas.

O que, além disso, as suas palavras demonstram, no seguimento aliás do que aqui vinha defendendo (em consonância com o Carlos e com a Sandra) é que o entendimento em relação à questão dos crimes de ódio está longe de ser um "monumento jurídico", como se poderia depreender do discurso da "parte" contrária. É antes um palco de disputa de conceitos, de atitudes e de modelos. O que me limitei, da minha parte, foi constatar quanto a mim da maisvalia de uma determinada postura em relação a outra.

Anónimo disse...

«E fazem eles, quanto a mim, muito bem. Aliás, a sua afirmação tirou-me as palavras da boca e essa postura corresponde em grande parte ao que aqui se tem vindo a defender, já que uma das principais vítimas da penalização dos crimes de ódio é exactamente a liberdade de expressão.»
Ora bem, estamos aqui, no essencial, de acordo.E digo "apenas" no essencial, uma vez que há modos e modos de fazer relevar o ódio, mesmo na modalidade de "incitamento" - e nem todas se equivalem. Há formas muito abertas (é o caso que já aqui referi várias vezes da punição do negacionismo em Espanha) e há outra mais comedidas, onde perpassa algum cuidado de preservar o núcleo da liberdade e pluralidade de expressão. Mas repito, mesma estas últimas não merecem a minha simpatia. São, em qualquer caso, um corpo incómodo num direito penal liberal. E (pour cause) concordo ainda consigo que a problemática dos "crimes de ódio" (se qusiermos chamá-los assim) não é de forma alguma um "monumento jurídico". Suscita demasiados problemas para poder beneficiar do consenso alargado que uma incriminação (devia) requerer. E com isto, despaço-me deste temário. Foi um prazer discuti-lo com a elevação que aqui se faz.

JB disse...

Pois, mas o que eu refiro é que o juízo dessa censurabilidade é uma estrada de dois sentidos. O mesmo juízo moral que serve para agravar, baseado no motivo, certas formas de crime, inevitavelmente serve para atenuar a culpa de crimes que sejam cometidos contra essa forma de motivo. No fundo, o que acontece, é que acaba por se legitimar a forma de "ladrão que rouba ladrão". Aliás, podes imaginar o que seria por exemplo a reacção pública e a pressão que seria exercida sobre um tribunal caso um indivíduo que fizesse a apologia pública da pedofilia fosse morto pelo vizinho e pai de uma criança. - JLP

Caro João,

Podes argumentar no sentido do efeito "bola de neve", mas, a fazê-lo, terias de provar que esses efeitos nefastos alguma vez foram observados no direito penal português. Não creio, até porque, como disse, para o homicídio ser qualificado é necessário que do próprio acto (sublinhe-se, do acto) resulte que ele foi motivado pelo ódio. Não interessa que o criminoso tenha uma edição do Mein Kampf no porta-luvas do carro, como penso que ficou suficientemente claro.
Mais uma vez insisto: não é a qualidade da vítima que está em causa. E por isso não é por a vítima ser um benemérito ou ser um malfeitor que o crime é ou deixa de ser de "ódio".

Quanto ao resto, todos concordámos que os crimes de ódio na primeira modalidade, enquanto limitadores da liberdade de expressão ou de associação, não devem existir.

Um abraço,