2007/05/30

Fiscalidade, uma proposta

(Anteriormente publicado n'O Insurgente.)

Tem vindo a grassar pela blogosfera um interessante discussão sobre fiscalidade (passando por aqui, aqui, aqui e aqui). Da minha parte, gostaria de introduzir à discussão uma nova proposta que procura, de uma forma liberal, ser uma alternativa às várias que têm surgido.

Quanto a mim, de um ponto de vista liberal, os impostos não devem ser um mecanismo de "redistribuição de riqueza" ou de "justiça social". Os impostos devem ser essencialmente um custo de cidadania motivado pela necessidade de custear as despesas em que o estado incorre no seguimento do exercício do seu mandato de manutenção da Ordem. Ou seja, o pagamento de impostos ao estado não deve emergir de uma lógica igualitária e de nivelação da riqueza de uma determinada sociedade, mas sim de objectivos pragmáticos de pagamento de despesas incorridas. Mais do que isso, não devem servir para alimentar estratégias progressistas ou de obtenção de determinados objectivos sociais, mas sim de permitir o cumprimento eficaz das funções que estão delegadas no estado.

A realidade fiscal presente é a da taxação dos rendimentos, adicionada de diversos impostos indirectos que taxam mais ou menos indiscriminadamente alguns comportamentos ou necessidades da sociedade. Taxa-se o rendimento individual e o rendimento das pessoas colectivas, o que acaba por resultar numa dupla tributação dos proprietários das segundas. Taxam-se indirectamente comportamentos e produtos, sem uma clara afectação dos seus rendimentos aos custos decorrentes para o estado do seu usufruto. Tem-se assim um sistema em que existe um praticamente total desacomplamento entre receita e despesa, e em que não são minimamente claros os mecanismos de gestão e mesmo os pressupostos de proporcionalidade e redistribuição que alegadamente lhe presidem.

Concretamente, a minha proposta é que que o actual panorama fiscal deveria ser substituído por uma taxa fixa sobre a propriedade individual (com um patamar de isenção), complementada por impostos indirectos e taxas que resultassem da aplicação do princípio do utilizador-pagador ou ressarcissem externalidade associadas ao usufruto dessa mesma propriedade (entendida como a generalidade dos bens de um indivíduo).

A lógica da proposta que proponho é que um sistema que pretenda associar imposto a custo de cidadania, terá que correlacionar o valor que é colectado com a "pegada" em termos sociais que cada indivíduo tem, e da solicitação espectável que cada um faz dos serviços públicos. Ora, para mim, uma boa avaliação dessa "pegada" é exactamente a propriedade que cada um possui. Um indivíduo com muita propriedade solicita naturalmente a cobiça de muitos que irão colocar um peso adicional nas forças de segurança e no sistema de justiça que lhe assegura o usufruto dessa mesma propriedade e a sua segurança pessoal. A segurança jurídica do garante dessa propriedade será naturalmente mais complexa quanto maior e mais dispersa esta fôr.

O sistema fiscal será assim, adicionalmente, uma modelização do próprio risco individual que é minimizado pela existência de uma sociedade organizada e de um Estado de Direito.

Posteriormente, os impostos indirectos ou taxas aplicadas de acordo com o princípio do utilizador-pagador emergem da consequência natural de que um serviço que é de utilização voluntária e facultativa e que está à disposição de e/ou beneficia um grupo reduzido ou tipificado de pessoas deverá ser custeado exactamente por aqueles que dele beneficiam. Pensemos por exemplo em vias de comunicação, infrastruturas como aeroportos ou ferrovias que, não sendo (infelizmente...) privadas são candidatas naturais a este género de financiamento. Em termos de externalidade, estas deverão ser compreendidas como externalidades que recaem (sendo toleradas) no domínio público (ou em outros privados, de forma coerciva) pelo usufruto da propriedade privada. Pense-se por exemplo nas emissões de gases e particulas ou no consumo de água de cursos de água (num cenário de rios privados) numa propriedade, adquiridos a montante sem a sua reposição para os que estão a jusante.

Para concluir a apresentação, somente a característica que falta, e que falta a todos os regimes fiscais que se proponham: a autonomia fiscal dos municípios. Um sistema em que a angariação dos fundos esteja o mais próxima possível do local onde eles sejam consumidos só pode resultar em melhor eficiência e escrutínio da autoridade fiscal, e em aproximar as pessoas do funcionamento do estado, o que só resultará em maior motivação para reconhecer o valor da sua contribuição.

Posto isto, os defeitos e as críticas. Um defeito é naturalmente a necessidade da inventariação e de registo da propriedade, leia-se, de todos os bens de relevo. É verdade que esse registo já existe em grande parte, já que é do interesse dos próprios proprietários que este seja muitas vezes feito. Pense-se no registo e respectiva publicitação de terrenos e outros imóveis, ou de carros e barcos. Mas claro que existirá sempre um estímulo para mentir em relação ao seu valor.

Que solução defendo? Que só seja garantida segurança jurídica dos bens que estiverem registados, pelo valor em que estão registados. O estado só intervém em questões patrimoniais quando este património estiver registado e pelo valor em que o está, acabando por funcionar como um sistema de seguro da propriedade privada para quem a ele deseje aderir. Imagine-se por exemplo que alguém que pratique um crime de dano a um bem que não está registado, verá a sua responsabilização criminal assegurada, mas o proprietário não terá direito ao ressarcimento do referido dano.

Outro defeito é que as transferências internacionais de capitais poderão funcionar como mecanismo de "freeriding", podendo obrigar a duas coisas que não são muito simpáticas de um ponto de vista liberal, nomeadamente a taxação dessas transferências e ao fim do sigilo bancários.

Fica a proposta e a abertura à discussão.

5 comentários:

Anónimo disse...

Saúdo a proposta de taxação na base do utilizador-pagador. É uma proposta que, como ecologista, acho muito positiva.

Quanto ao imposto sobre a propriedade, um óbice é que, na nossa sociedade atual, há muita propriedade que não gera rendimento, pelo contrário, até pode ser uma fonte de despesa para o proprietário. É o caso de muitas propriedades rurais na zona do minifúndio (Norte e Centro do país), que estão hoje abandonadas porque tratar delas não é rentável em termos económicos. Essas propriedade pagam hoje em dia alguns cêntimos insignificantes de IMI, pelo que ninguém se queixa. Se o imposto sobre elas subisse substancialmente, isso afetaria o princípio, caro a muito boa gente, de que o imposto não pode ser superior ao rendimento.

Luís Lavoura

Anónimo disse...

Também não concordo com o imposto ser todo municipal. Isso é uma utopia. Na sociedade atual, globalizada, os impactos são também globais. Lisboa recebe água de Castelo de Bode. Eu no meu carro circulo por todo o país, e pelo estrangeiro. O lixo de Lisboa é incinerado no concelho de Loures, mas o fumo da incineradora espalha-se por sobre Lisboa outra vez. E assim por diante.

Os municípios eram uma coisa muito bonita e que fazia muito sentido no Portugal do século 19, monárquico e rural. Hoje em dia já não vivemos nesse mundo.

Luís Lavoura

JLP disse...

"Se o imposto sobre elas subisse substancialmente, isso afetaria o princípio, caro a muito boa gente, de que o imposto não pode ser superior ao rendimento."

Sim, mas não é caro para mim... ;-)

A vontade de um proprietário manter a propriedade de uma propriedade devoluta é sua. Se isso resulta num prejuizo para si, é somente uma consequência da sua vontade individual. O que ele não pode é distanciar-se do custo que a garantia dessa propriedade tem para a sociedade.

Imagine o que acontece com a propriedade das florestas. Na maioria dos casos das matas que estnao ao abandono, o rendimento destas é diminuto. Contudo, todos os anos o estado tem que dispender dinheiro para a prevenção florestal e combate aos fogos, muitas vezes para além do próprio interior dessas propriedades. Das duas uma, ou se considera que esses proprietários, mesmo sem culpa, têm que assumir a responsabilidade civil de um fogo que origina na sua propriedade, ou tem que se estabelecer que esse proprietário tem que pagar os custos inerentes à salvaguarda do que é seu (mesmo que não lhe dê rendimento), é à minimização do risco e da responsabilidade civil que ganha pelo serviço do estado.

"Também não concordo com o imposto ser todo municipal."

Eu não disse que tinha que ser todo. Só disse que os municípios deviam ter liberdade fiscal.

Naturalmente, também defendo que a propriedade das infrastruturas e a responsabilidade pela prestação dos serviços migre para os municípios. Mas não digo que TUDO tem que ser municipal nem que SÓ deveria haver impostos municipais.

Anónimo disse...

A vontade de um proprietário manter a propriedade em suas mãos muitas vezes não existe. O que acontece com frequência é que, simplesmente, a propriedade não é rentável, logo, ninguém a quer comprar.

O caso das florestas é um bom caso de estudo. A gestão das florestas só pode ser rentável se fôr feita numa perspetiva de muito longo prazo (50 anos no mínimo) e em grande escala (centenas de hectares no mínimo). Se você quer colocar grandes impostos sobre a posse de minifúndios florestais, o que acontece é que ninguém vai sequer querer ter esses minifúndios. Pois se já hoje muitas vezes ninguém quer comprar essas propriedades, que pagam imposto quase nulo!

Eu acho que a perspetiva do JLP - que cada proprietário deve pagar um imposto de acordo com aquilo que custa ao Estado manter a segurança da propriedade - faz todo o sentido. Infelizmente, no entanto, no mundo real e concreto essa perspetiva é inaplicável, em muitas propriedades. Há em Portugal muitas propriedades que ninguém quer, porque são absolutamente não-rentáveis, com a atual estrutura fundiária e a curto prazo.

Luís Lavoura

JLP disse...

"O que acontece com frequência é que, simplesmente, a propriedade não é rentável, logo, ninguém a quer comprar."

Ninguém a quer comprar, pelo preço pedido, e façe à ausência de despesas "sociais" que lhe sejam imputadas. Transformando-se esta num ónus, acredito que rapidamente os preços pedidos se tornem mais realistas.

Há naturalmente uma questão a acrescentar, que perverte todo o processo, que é a intervenção abusiva do estado em termos de planeamento do território. Naturalmente que uma propriedade que vê limitados os seus usos, perde logo aí grande parte do valor.

Já agora, de acordo com a minha proposta há outra alternativa: pode pura e simplesmente deixar de declarar a propriedade, e prescindir das funções do estado em relação a esta. Mas depois não se pode queixar se lá tiver um incêndio ou fôr civilmente responsabilizado perante terceiros, ou chamar a polícia se for ocupado ou se alguém lhe andar a serrar e roubar as árvores.