2007/04/20

Uma Constituição que não vale o papel onde está escrita

O presidente do Tribunal Constitucional, Rui Moura Ramos, defendeu hoje uma reflexão sobre a protecção dos direitos fundamentais no debate do futuro Tratado da União Europeia, que estará em discussão nos próximos meses.

Rui Moura Ramos tomou hoje posse como presidente do Tribunal Constitucional, numa cerimónia em que também foi investido no cargo de vice-presidente o juiz conselheiro Gil Galvão.

No seu discurso de posse, o novo responsável alertou para a necessidade de garantir que o futuro tratado "não conduza, nem sequer reflexamente, a um qualquer decréscimo do grau de protecção de que entre nós têm gozado os direitos fundamentais".

Moura Ramos admite que, se o tratado da União Europeia for concretizado, será "maior a complexidade do sistema" e defendeu que os cidadãos europeus têm que saber se, em cada caso, recorrem às instâncias nacionais ou europeias para fazer valer os seus direitos.Público Última Hora.
Muito curiosa, a declaração de Moura Ramos aquando da sua tomada de posso no dia de hoje como novo presidente do Tribunal Constitucional.

O problema essencial é que a relevância do nosso TC, acompanhada da relevância da nossa Constituição, é nos dias que correm praticamente nula. Aliás, seria de perguntar o que é que estarão lá a fazer os ilustres juízes do Palácio Ratton.

Desde há bastante tempo que o TC tem vindo a perder o relevo como garante dos direitos, liberdades e garantias e da Constituição, e a assumir uma irrelevância em termos de interferência no ordenamento jurídico português. Aliás, como referia à tempos num artigo deste blog, pergunto-me o que terá de relevante feito em tempos recente o TC pela manutenção desses direitos liberdades e garantias. E não é por falta de tentativas de os comprometer.

Fruto das perversões que foram introduzidas na nossa Constituição, para integrar uma suposta Constituição Europeia (ainda antes de esta o ser), bem como pelos sucessivos atropelos da União Europeia dos limites das competências que lhes foram delegadas pelos estados membros, o TC adquiriu o estatuto praticamente de uma mera instância intermédia, ainda mais conotada com uma forte politização da sua formação (vejam-se os pressupostos da nomeação dos seus juízas descritos no artigo do Público) e das suas decisões, a maioria das vezes vistas como um mero compromisso político entre o irreconciliável.

Em abono da verdade, o papel como garante último dos direitos liberdades e garantias já foi há muito relevado para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (que, lembre-se, não é uma instância comunitária, mas sim na esfera do Conselho da Europa), na observância da sua Carta (e não dos princípios enunciados na nossa Constituição). Nos casos que interessam, o TC já é visto como uma mera etapa a percorrer em direcção às decisões que verdadeiramente importam.

As próprias instâncias portuguesas já se vão conformando com a sua impotência face à condescendência e ao juízo subserviente (muitas vezes próprio) que tem vindo a presidir aos que têm o dever e juram defender a nossa Constituição. Senão vejamos o recente episódio do nosso Provedor de Justiça, relativamente a uma petição entregue por um grupo de cidadãos relativa à dupla tributação (proibida pela nossa Constituição) dos combustíveis: subitamente, o nosso Provedor de Justiça converteu-se não em garante da justiça em observação da nossa Constituição, mas tão simplesmente num enforcer de directivas comunitárias. Mais uma vez se assumiu a impotência: nem valia a pena ir ao TC, porque interesses superiores concerteza suplantariam a sua decisão.

Em relação à actuação do TEDH, a União Europeia já vai encetando a sua resposta, no seguimento da rédia livre em que se encontra: mesmo sem Constituição Europeia, e sem uma mandato expresso para o efeito (tão somente sustentada numa decisão de um seu próprio órgão), a União já vai instituindo as suas Agéncias de Direitos Humanos, e já vai ditando direito penal, longe da capacidade fiscalizadora e das vontades das instâncias nacionais. Começou-se pelo ambiente. Depois passou-se para o universo apetecível do direito intelectual. Hoje, tivemos mais um momento paradigmático:
A União Europeia chegou hoje a acordo para tornar o racismo e a negação do Holocausto um delito em todo o espaço europeu, mas os Estados-membros apenas poderão aplicar sanções penais em casos muito específicos.

Após cinco anos de discussões, os ministros da Justiça dos 27, reunidos hoje no Luxemburgo, finalizaram um texto que prevê sanções comuns mínimas para lutar contra o racismo e a xenofobia.

Ao abrigo do acordo alcançado hoje, cada um dos países deverá penalizar, com um a três anos de prisão, a “incitação pública à violência ou ao ódio contra um grupo de pessoas, ou membros desse grupo, definido segundo a raça, cor, religião, ascendência, origem nacional ou étnica”.

As leis nacionais deverão prever sanções semelhantes para a “apologia pública, a negação ou a banalização grosseira dos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra”, tal como são definidos nos estatutos do tribunal Penal Internacional.

Público Última Hora.
Ou seja, temos a União Europeia a decretar, a nivel comunitário, sanções mínimas que limitam a liberdade de expressão nos estados membros, quando essa União não têm competência nem instâncias com poderes no domínio dos direitos liberdades e garantias. Em Portugal o entendimento previsível, a julgar pela actuação do Sr. Provedor de Justiça, é que não valerá a pena que sejam contrariadas, porque também serão impostas por mecanismos "superiores". Em última instância, poderemos ter decisões do TEDH que poderão até ir contra o próprio teor da directiva, pondo Portugal na situação de estar sujeito a compromissos internacionais conflituantes.

É todo este imbróglio que foi gerado e/ou consentido pelas instituições do nosso estado. Com a agravante do ascendente em completa roda livre que a União Europeia, nomeadamente a Comissão, tem sobre nós. Todo um processo que, para além de outros atropelos, mais uma vez nos veio limitar e comprometer a liberdade de expressão.

3 comentários:

Anónimo disse...

"uma forte politização da sua formação"

É um bocado difícil evitar que um Tribunal Constitucional esteja ou seja politizado.

Que método de eleição dos juízes sugeriria ou JLP, que impedisse a politização do TC?

Todos os juízes têm as suas tendências políticas (como qualquer pessoa) e, estando no TC, são deveras livres de as exprimir atavés dos acórdãos que pronunciam. Nestas condições, e uma vez que os juízes do TC não estão sob o escrutínio de nenhuns outros juízes (não podem ser demitidos devido aos seus acórdãos), mais vale que eles sejam escolhidos tendo em conta as suas tendências políticas, do que fechando os olhos ao problema.

Caso contrário, correríamos até o risco de ter no TC juízes que, embora com uma distinta carreira e um exemplar conhecimento das leis, fossem de extrema-direita... e começassem a cortar a torto e a direito nos nossos direitos fundamentais.

Luís Lavoura

JLP disse...

Pessoalmente, acho que o TC não tem sequer razão de existir autonomamente. Acho que podia ser perfeitamente fundido com o STJ, continuando os juízes deste a ser alocados pelo mesmo mecanismo como o são actualmente.

Um TC de nomeação política não faz, quanto a mim, grande sentido no ordenamento jurídico português, tornando-se mais uma câmara de ressonância do "centrão" do que uma instãncia com autonomia e relevância social.

A mudar para algo tipo supremo tribunal americano, teria que ser todo o sistema político (e não só o judicial) a adaptar-se a essa nova realidade.

"Caso contrário, correríamos até o risco de ter no TC juízes que, embora com uma distinta carreira e um exemplar conhecimento das leis, fossem de extrema-direita... e começassem a cortar a torto e a direito nos nossos direitos fundamentais."

É também por essas e por outras que os tribunais superiores são órgãos colegiais... A menos que houvesse um "takeover" de toda a hierarquia judicial pela extrema-direita, não me parece que tal fosse um perigo previsível.

Snowball disse...

Acerca da questão da politização, a 2ª parte deste post parece-me relevante:

http://antiprovinciano.blogspot.com/2007/04/aborto-inconstitucional.html

Note-se que os juízes não são individualmente eleitos, são listas que são eleitas por 2/3 dos deputados, e os seus mandatos tem maior duração que os dos deputados, garantindo alguma estabilidade.

O facto é que a questão da politização não me parece muito relevante. Quem usa 2/3 dos votos para eleger os juízes, também os pode usar para alterar a constituição...