2007/04/26

Liberdade de expressão

No seguimento deste recente artigo do CAA, e de toda a novela (e subsequente vitimização, algo a que bem nos habituou) de Pedro Arroja na sua saída do Blasfémias, acompanhado dos desenvolvimentos recentes do cartaz do PNR e das iniciativas europeias de criminalização a nível europeu dos crimes de ódio, de incitamento e de negação dos genocídios, da questão da decisão que penalizou o Público vs. Sporting referindo doutrina que previligia o "bom nome" à divulgação da verdade (bem como outras conversas que agora não vêm ao caso), o tema da liberdade de expressão voltou a estar em cima da mesa, impondo-se (ou pelo menos motivando-me a) uma reflexão sobre o tema.

Na minha perspectiva, o Liberalismo afirma como fundação do Estado de Direito a perspectiva da Liberdade negativa, conjugada com o direito de propriedade, entendido como o direito que cada um tem ao que é seu (incluindo o seu corpo e a sua integridade física). A primeira concebe-se como ilimitada, na medida em que não viole o segundo, constituindo o direito de propriedade a delimitação da esfera de influência exclusiva de cada um. Todo o Estado de Direito, e em concreto a Justiça, deve comprender-se como um processo de arbítrio quando há violação de um ou outro conceito, partindo de um princípio de igualdade de todos os indivíduos perante a lei.

Conjugado, quanto a mim, com este princípio, existe outro: pelo facto de o estado estar empossado (por delegação explícita ou por tradição, não vem ao caso) de poder coercivo, não existe por parte deste e das suas instituições o direito ao usufruto do mesmo conceito de Liberdade e de propriedade que assiste a cada um, ou à titularização da Liberdade na mesma acepção. O mandado do estado pressupõe, portanto, a imposição de limites à sua liberdade, e a definição de barreiras ao que lhe é permitido. Uma das barreiras óbvia, quanto a mim, é que não deve ter o direito de estabelecer políticas discriminatórias ou desiguais em relação ao tratamento dos indivíduos.

Sendo assim, no caso da liberdade expressão (como vector diferenciado da Liberdade), não faz sentido que se estabeleçam limites que não sejam, como no resto do usufruto da Liberdade, o seu pendor negativo. Aliás, dir-se-á que o interesse na definição do conceito de liberdade de expressão é exactamente no seu teor ilimitado, e não na possibilidade de se vislumbrar limites avulsos do que é ou não permitido. O interesse do conceito é exactamente o de defender os discursos menos concensuais e extremos, já que os outros se depreende que não esbarrem contra a normal tolerância. Se a liberdade de expressão não valer exactamente pelo que de liberdade a qualifica, não valerá muito a pena concebê-la.

Partindo deste princípio, a liberdade de expressão só deverá ser alvo de sanção quando se tornar positiva, ou seja, quando for de encontro ao direito de propriedade do outro ou quando limitar o usufruto da sua liberdade negativa, e só deverá ser nessas circunstâncias que o estado deverá estar mandatado para intervir.

Como tal, e de acordo com o exposto, discordo com a proibição e/ou penalização de qualquer forma de discurso, seja incitamento ao "ódio", à discriminação ou ao negacionismo histórico.

Uma coisa é dizer-se que "todos os muçulmanos (para não cair em clichés) deviam ser mortos, e que se o fizerem vão para o céu com perdão divino". Pelo facto de alguém o afirmar, não se mata nenhum muçulmano nem se ofereçem benefícios a terceiros para que o façam. Também não se tira a ninguém a liberdade de professar a religião muçulmana. Somente quem tome a decisão (por ter ouvido, pela sua irreflexão ou incultura anterior) autónoma e que lhe compete como pessoa que tem a última palavra a dizer e mate um muçulmano é que deverá sofrer as consequências legais.

Outra muito diferente é alguém oferecer uma recompensa para quem faça determinado crime, ou que abuse de situações particulares de poder e de influência (que acabam por ser mecanismos de coerção, como por exemplo pais abusarem do seu poder sobre os filhos) para forçar alguém a agir de um determinado modo.

Uma coisa é o papel de mandante de um crime. Outra, completamente diferente é o conceito de "incitamento" ou de "apelo" à prática de um determinado crime.

Assim como a penalização do apelo à discriminação, numa perspectiva liberal (assim como da própria discriminação) não faz qualquer sentido, já que toda a gente deve ter toda a liberdade de acção e de escolha no domínio da sua propriedade. Se alguém não quiser contratar chineses, não quiser vender produtos a brancos ou negar a entrada de um preto ou de fumadores (ou não fumadores) no seu estabelecimento, se uma religião se recusar a casar homossexuais ou se alguém expulsar alguém de sua casa por ter dito algo de que não gostava, estará no seu direito e não deve ser penalizado. Diferente, como referi, deverão ser as regras que governam a relação do estado com os cidadãos, em que não deverão existir regras discriminatórias.

No seguimento do que disse, a tentação de conceber a liberdade de expressão de um modo positivado é quanto a mim um erro. Um erro porque se submete inevitavelmente aos compromissos não necessariamente justos da democracia, além de convergir para deixar como "autorizado" e legal exactamente o exercício de liberdade de expressão que não precisa de defesa, por incipiência. Além de permitir e conferir a entidades externas, nomeadamente ao estado, o poder de interceder entre emissor e receptor de um discurso que até seja tolerado pelas duas partes.

Para concluir, a questão de Pedro Arroja como caso prático: a perspectiva de clamar, como (suposto) liberal, uma ofensa à sua liberdade de expressão em todo o processo que culminou na sua saída do blog Blasfémias (quaisquer que tenham sido os seus contornos) é, no mínimo, uma birra, um testemunho de incoerência e um resvalar para um discurso que se ouve com frequência de outras paragens.

Pedro Arroja não têm um "direito" à liberdade de expressão. Não tem o direito a forçar a sua opinião e a sua presença à instituição privada para que foi convidado. O Pedro Arroja continua a ter, e não foi minimamente beliscada, a sua liberdade de expressão: a liberdade de dizer o que quiser (infelizmente actualmente limitado pela lei), de abrir um blog para o dizer, de montar um jornal, de imprimir panfletos e distribuí-los na vizinhança com o que lhe passar na cabeça. Essa liberdade ninguém lhe tirou ou limitou. E isso é que é liberdade de expressão. Não é qualquer direito a alguma forma de "quota" inamovível ou de tempo de antena, à custa dos recurso geridos privadamente por terceiros e da sua vontade.

Um verdadeiro liberal, defensor do mercado livre (inclusivé de ideias), teria no momento a seguir à sua saída do Blasfémias, aberto um outro blog (é gratuito até), onde pudesse continuar a dizer o que bem intendesse, e fixando as regras que melhor lhe aprouvessem. Mas não, escudou-se na habitual estratégia de vitimização, e foi persistir no choradinho e na lavagem de roupa suja na casa que lhe deu exposição e protagonismo (justo e válido enquanto resultou de um equilíbrio de vontades das partes), numa não muito original versão do discurso dos "direitos adquiridos".

17 comentários:

Anónimo disse...

"instituição privada para que foi convidado"

Não há no Blasfémias nada que diga que Pedro Arroja foi convidado. Na lista de bloggers Pedro Aroja apaecia no mesmo pé que os restantes. Ele não era um convidado, ele era tanto como os restantes blasfemos.

Luís Lavoura

AMN disse...

Excelente!

Anónimo disse...

Todo o belo arrazoado de JLP não tem aplicação ao caso de Pedro Arroja (PA) e do Blasfémias (B), se se admitir que PA era tão dono do B como todos os restantes bloggers do B. Ou seja, PA não estava a usar a casa de outros: estava a usar a sua própria casa. Portanto, o que houve foi que diversos proprietários do B afastaram, de alguma forma, o outro proprietário. O que não é bonito.

Devo dizer que eu não concordava com a generalidade dos posts de PA. Nem os restantes bloggers do B concordavam, nem eram supostos concordar. Mas não é isso que está em causa. O B não tem, que se saiba, nem uma linha editorial que todos os seus bloggerssejam obrigados a seguir, nem bloggers de primeira e bloggers convidados.

Luís Lavoura

AMN disse...

Luis,

É do conhecimento público o que se passou entre os blasfemos? Se PA foi convidado a sair, se optou ele por sair, se foi determinada a sua saída?

Ou algo me escapa?

Um abraço

JLP disse...

"Todo o belo arrazoado de JLP não tem aplicação ao caso de Pedro Arroja (PA) e do Blasfémias (B), se se admitir que PA era tão dono do B como todos os restantes bloggers do B."

Pois, se se admitir. Ora tudo o que aconteceu parece indicar o contrário:

- Nunca vi Pedro Arroja reclamar desse estatuto, nem depois da sua saída. A sua "reclamação" limitou-se à questão da sua liberdade de expressão ter sido supostamente coarctada.

- Saiu (abandonou a sua suposta propriedade) pelo seu próprio pé. Se admitia que era comproprietário, podia ter continuado lá a escrever, mesmo tendo que suportar a hostilidade da generalidade dos outros comproprietários.

- Se não saiu pelo seu próprio pé, tem que aceitar que existiam pessoas responsáveis pelo blog com poder coercivo sobre ele. Ora, de um ponto de vista liberal, se PA aceitou isso, então não era proprietário de pleno direito do espaço. O constatar que alguém tem poder sobre ele no âmbito daquele espaço é assumir, de forma espontânea, a propriedade do outro sobre este espaço.

Anónimo disse...

Luis Lavoura, vendo as coisas desse ponto de vista da propriedade, eu diria que a conduta dos sócios do Arroja não só não foi bonita, como que é motivo para ele chamar as autoridades e interpor uma acção no tribunal…
Isto está a ficar surrealista. Mas eu tinha a certeza desde o início que o Pedro Arroja seria o primeiro mártir da causa da liberdade de expressão na blogosfera. Parabéns Pedro Arroja, tiro-lhe o chapéu.

caramelo

SMP disse...

caramelo, está a brincar não está? Uma acção em tribunal com que fundamento? Diga lá, para eu me inspirar...

Anónimo disse...

Ora, SMP, pense lá um pouco. Como dizia o Luis Lavoura, o Pedro Arroja foi expulso de uma casa de que era co-proprietário, certo? Compraram a sua quota parte? Não. Portanto, expoliaram-no! Eu tenho a certeza que qualquer advogado ganha a acção de reinvidicação de propriedade para o Pedro Arroja.

(SMP, estou a brincar. Isto já é suficientemente surrealista como está)

caramelo

SMP disse...

UUUf.

Anónimo disse...

Talvez ele tenha sido convidado á experiència :). Não notei nenhuma notícia sobre a compra de uma parte do Blasfémias por PA.


lucklucky

Anónimo disse...

Tamém digo, se permite:

Grande sombra a tua,
mestre, evidentemente,
que o dá patente esta euforia
excessiva, como a denunciar quantos
copos se emborcaram desde ontem, sem carácter.

rabit

CN disse...

Muito bem.

Só não vejo paara quê a sempre habitual profissão de fé" no "Estado de Direito".

Ou seja, porque não discutir simplesmente "Direito".

JLP disse...

"Só não vejo paara quê a sempre habitual profissão de fé" no "Estado de Direito".

Ou seja, porque não discutir simplesmente "Direito"."

Não é uma questão de "profissão de fé". É só uma intenção de clarificação das coisas.

A questão é que pelas nossas paragens, o conceito de "Direito" está demasiado conotado com a "Lei". Como tal, uso o conceito de "Estado de Direito" para fazer essa distinção, pressupondo que este impõe requisitos para além da mera existência física da lei, nomeadamente relativamente á organização do estado que a aplica e faz o seu "enforcement", como a existência de separação de poderes, de mecanismos de "checks&balances", de igualdade perante a lei, da presunção de inocência, e genericamente da existência de um ordenamento constitucional são.

Vasco Figueira disse...

Muito bom texto.

Retiro (não do caso prático, mas da reflexão que o precedeu) duas ideias a destacar e eventualmente desenvolver, para além da óbvia e primordial de "não-positivização" do direito à liberdade de expressão:

1) O incitamento ao ódio, racismo, violência, etc, por si só não é suficiente para que possa haver lugar à proibição. Pelo texto depreendo que o Luís requer algum grau de "materialização do incitamento" para que se possa considerar a hipótese de proibição. São os termos certos?

2) O Estado não pode, no que às liberdades toca, ser tomado como indivíduo. Não pode, ele próprio, beneficiar da protecção de direitos que é sua missão zelar por, quando em conflito com um cidadão. Com certeza, é muito bem notado. Isso seria atribuir-lhe desígnios próprios e deixar de considerá-lo um instrumento dos cidadãos, para tomá-lo - justamente - uma entidade autónoma, potencialmente beligerante contra aqueles que o criaram em primeiro lugar, os indivíduos. Isso seria percorrer o trilho (já algo batido) da servidão.

JLP disse...

"1) O incitamento ao ódio, racismo, violência, etc, por si só não é suficiente para que possa haver lugar à proibição. Pelo texto depreendo que o Luís requer algum grau de "materialização do incitamento" para que se possa considerar a hipótese de proibição. São os termos certos?"

Sim. O incitamento tem que se materializar em cumplicidade com o crime, ou adquirindo o "incitador" o estatuto claro de mandante. A cumplicidade, através de contribuir materialmente (por meios ou acções materiais concretas) para o crime, ou como mandante contribuindo tangivelmente para a motivação do crime (oferecendo uma recompensa material) ou usando de meios cooercivos (chantagem, intimidação física) para convencer alguém a praticar o referido crime.

Anónimo disse...

Um verdadeiro liberal, defensor do mercado livre (inclusivé de ideias), teria no momento a seguir à sua saída do Blasfémias, aberto um outro blog (é gratuito até), onde pudesse continuar a dizer o que bem intendesse, e fixando as regras que melhor lhe aprouvessem. Mas não, escudou-se na habitual estratégia de vitimização, e foi persistir no choradinho e na lavagem de roupa suja na casa que lhe deu exposição e protagonismo (justo e válido enquanto resultou de um equilíbrio de vontades das partes), numa não muito original versão do discurso dos "direitos adquiridos". - JLP

Excelente texto, em particular os últimos dois parágrafos.

A vitimização é uma atitude muito pouco liberal. Constitui sempre uma transferência injustificada da responsabilidade para outrem e, consequentemente, uma negação da própria responsabilidade. Também neste ponto Pedro Arroja falhou como exemplo liberal. Prevaleceu na despedida - como o JLP diz - o choradinho tipicamente português. O que só inferioriza o protagonista do episódio.

Anónimo disse...

APELO AO PEDRO ARROJA

"É só papos LR, se você fosse judeu não teria escrito nada disto." - creTINA, uma entre muitas/os...

Essa é, de facto, uma concepção típicamente sionista, a do egocentrismo comunitarista. O judeu, na perspectiva sionista, é sempre a favor do judeu, tenha ele ou não razão, seja ele o perseguido e massacrado ou o carrasco e ocupante. O direito e a moral estão ausentes deste pronunciamento. Apoia-se o judeu porque ele é judeu. Só por isso. E rouba-se a terra do outro só porque se tem a força para o fazer, o que não dá resposta satisfatória a esta questão: e se a força mudar ?

Ora isso é profundamente racista e incompatível com a ideossincrasia europeia. Na nossa cultura política pós-45, todos os povos do mundo são iguais e os conflitos resolvem-se tomando por referência normas ético-jurídicas universalizáveis (que possam ser reconhecidas como justas por todos), segundo a lição de Kant. O europeu da UE (culto e não cretino, ça va de soi) é assim pró-judeu, não sistematicamente, mas apenas quando o judeu é vitima de discriminação e genocídio, e anti-sionista quando o sionismo oprime, massacra e ocupa. Só assim há coerência e justiça. Não vivemos num mundo de aliados e inimigos imutáveis, ao sabor de alianças baseadas, não no direito, mas num prescrito estado de necessidade pré-45. É isso que o poder sionista e o seu lacaio buhista esquecem, perfilhando o unilateralismo e a irrelevância do direito internacional, e com isso fazendo perigar a paz do mundo, já que o unilateralismo legitima o unilateralismo oposto e nem sempre o que parece mais forte o vem a demonstrar, como se viu no Iraque e no Líbano e ainda se verá melhor no futuro.

Foi isso, por outras palavras, o que P. Arroja disse, e é pena que não o possa continuar a dizer, por acção de ignorantes e cretinos, bloggers ou comentadores, que manifestamemte não mereceram a sorte, nem mediram o privilégio, de o terem tido aqui.

Parece que alguns ainda não compreenderam que, a não ser que algo de radical aconteça entretanto, o Blasfemias ficou ferido de morte, indo inelutavelmente definhar. Os homens não são iguais, e são raros os que são originais e pensam com autenticidade. Que geram valor acrescentado, não se limitando a repetir lugares comuns, cinzentices e patetices politicamente correctas. E só com esses é que vale a pena trocar ideias. O resto é perda de tempo. Porque a mediocridade atrai mediocridade e a excelência atrai excelência. O bando dos 4 escolheu boçalmente a primeira e não é com patéticas e "liberais" censuras e bloqueios de IP's (grotesca censura e cobardia de eunucos intelectuais) que vai impedir que isso se vá tornar cada vez mais claro.

Pedro Arroja fará o que decidir, mas eu se estivesse no seu lugar criava um blogue ("Arrojado", era uma boa ideia), ou juntava-me a um existente, de nível intelectual conveniente, e arrombava literalmente com o Blasfémias, eventualmente aspirando deste os elementos válidos.

Isso poderia ser feito em dois meses, como fez o saudoso Espectro, deixando literalmente o CAA com as calças na mão, depois da canalhice que fez à Constança e aos que com ela se solidarizaram. Ora, sem desfazer desta e sobretudo do VPV, eu acho que o Pedro Arroja tem ainda mais força "blogosférica".

Pedro Arroja, faça-nos esse favor. Faça jogar a concorrência e mostre a estes badamecos do miserável Bando dos 4 como é que se bloga a sério... O estudo de mercado está feito. Os riscos são nulos. E eles merecem uma boa lição.