2007/03/23

São ovos, senhor!

Fala-se muito, até demais, em partidos liberais. Se há, se não há. Se podem ser. Se foram ou vão ser. Mas a discussão que mais importa fazer, sobretudo para os que estão dispostos a desviar o olhar da blogosfera que tanto nos ilude, é sobre a existência, ou a eventualidade dessa existência, de votos liberais. Sem eles, não há partido nenhum e a conversa cai por terra.

Adolfo Mesquita Nunes, n'A Arte da Fuga.
Caro Adolfo,

Acho que o receio em relação à existência ou não de "votos liberais" é eventualmente um dos menores problemas em relação à criação de um partido liberal. Basta pensar que o principal alvo e beneficiário de um partido orientado por um programa liberal seria o contribuinte, o que actualmente "paga a crise" da generalidade dos desvarios no nosso estado. Não há que negar, quanto a mim.

Um discurso e um programa político bem orquestrado e construído teria naturalmente um ouvinte atento nas muitas vítimas do estado actual de verdadeira asfixia fiscal. É verdade que, devido à curiosa implementação em curso da "progressividade" e "redistribuição" fiscal, esse grupo não é brutalmente grande, pelo menos quando comparado com os que beneficiam dessa "redistribuição". Mas não deixa de ser significativo, e principalmente fortemente correlacionado com a produção de rendimento e riqueza no nosso país.

Além disso, não compartilho das reticências expressas pelo Miguel d'O Insurgente. Acho que no actual panorama do país, não é assim tão complicado produzir um programa de medidas bem definidas que consiga conciliar os diversos liberalismos que refere serem necessários federar. Principalmente se os partidários desses liberalismos se preocuparem mais em ter uma agenda liberal consistente do que porventura em arranjar sustentação política para a implementação das suas agendas liberais pessoais.

Permitam-me até que avance com algumas medidas (um ponto de partida?) que considero mobilizadoras e que julgo que acolheriam a generalidade dos liberais da nossa praça:
  • Implementação de um esquema de financiamento do ensino baseado no cheque-ensino.
  • Transferência da gestão das infrastruturas e recursos humanos do estado do estado central para os municípios.
  • Redução dos impostos e implementação de um esquema de flat rate.
  • Fim de todas as participações do estado em empresas, e fim de todos os esquemas de subsídio directo e indirecto à economia.
  • Devolução dos valores descontados para a segurança social aos seus titulares, e substituição do esquema actual de pensões por um sistema de pensão mínima única.
  • Privatização de todas as empresas de transportes e de infrastruturas associadas do estado (com excepção dos monopólios naturais).
  • Fim do apoios fiscais e juridicos do estado ao casamento e da formatação do contrato de casamento.
  • Fim das obrigações e limitações sucessórias.
  • Fim de qualquer apoio do estado à prática do aborto.
  • Legalização do suicídio assistido
  • Liberalização do consumo e legalização da venda de drogas.
  • Adenda: Liberalização do arrendamento.

16 comentários:

Anónimo disse...

Ena paaaaa está bem sim senhor, só tenho uma dúvida: onde é que ia buscar dinheiro para a
"Devolução dos valores descontados para a segurança social aos seus titulares" ?..

JLP disse...

Cara Alexandra,

Essencialmente à Caixa Geral de Aposentações. O restante que fosse necessário teria que ser financiado com dívida pública.

Além disso, acrescentaria:

- Todos os indivíduos que já tenham auferido reformas em montante global superior ao valor da sua carreira contributiva, teriam a sua reforma substituída pela reforma mínima.

- Naturalmente as devoluções deveriam ser descontadas dos montantes necessários previsíveis para assegurar a reforma mínima durante o período desde a reforma até à esperança média de vida. Desse modo, quem obtivesse essa devolução descontada não precisaria de proceder a mais descontos. Em opção, e em função da duração da carreira contributiva que resta, a devolução poderia ser completa mas os descontos continuariam a existir.

AMN disse...

Já replicado!
Um abraço,
a.

Anónimo disse...

"teria que ser financiado com dívida pública"

Não me parece muito liberal, nem admissível, pôr o Estado a endividar-se ainda mais.

O JLP esqueceu-se de medidas na área da saúde, que é uma das que mais custa ao orçamento de Estado. Mais importante do que o cheque-educação é a conta-poupança saúde.

Luís Lavoura

Anónimo disse...

Nestas medidas todas, eu penso que boa parte delas teriam imensa opinião pública contra elas.

Por exemplo, a flat rate: ela implicaria aumentar os impostos para imensa gente. Como a carga fiscal total não pode descer substancialmente de um dia para o outro, se o JLP quer impôr uma flat rate, terá que aumentar muito substancialmente os impostos a muita gente pobre. O que seria uma receita para grande agitação social.

JLP disse...

"Não me parece muito liberal, nem admissível, pôr o Estado a endividar-se ainda mais."

O estado português (ainda) não está particularmente endividado. Além de que, contas feitas em relação à estratégia que refiro, será ainda de perceber se essa necessidade de endividamento será assim tão grande.

JLP disse...

"Como a carga fiscal total não pode descer substancialmente de um dia para o outro,"

Aí é que se calhar discordamos...

"se o JLP quer impôr uma flat rate, terá que aumentar muito substancialmente os impostos a muita gente pobre."

Sem dúvida. Para quem não paga nada e essencialmente parasita o sistema, a factura teria que chegar. Afinal, tem que caber a todos.

Anónimo disse...

Caro anónimo, quando se refer às flat taxes, terá de imaginar que há um valor mínimo (de sobrevivência) que nunca é taxado. Admitamos mil euros. Nunca se cobra imposto sobre esse valor, como tal a flat tax não deixa de ser progressiva.
Exemplos:
Quem ganha menos de mil euroso (ou o valor estabelecido) não paga impostos.
Quem ganha 3000 euros, só paga imposto sobre 2000 (3000-1000), e assim sucessivamente.
É uma medida socialmente justa e muito facilitadora da vida dos utentes. Geralmente é acompanhada do fim das deduções fiscais.
Por essas e por outras enfrenta o lóbi dos contabilistas.
Cumprimentos e parabéns pelo excelente post.

JLP disse...

"O JLP esqueceu-se de medidas na área da saúde, que é uma das que mais custa ao orçamento de Estado."

É verdade.

A lista não pretendia ser exaustiva, mas sim um ponto de partida para a discussão.

rkd disse...

É com interesse e apreensão que leio estas medidas, pois preocupa-me que ainda não pertençam ao país que temos. É preciso cidadãos voluntariosos, capazes e competentes para que o Estado deixe de os poder levar ao colo.

Até lá, o liberalismo é cada um fazer pela vida. O político lá arranjou o seu cursinho. O desempregado lá conseguiu mais uns meses de subsídio. O professor lá se pré-reformou para deixar de apanhar porrada.

Faço votos que isto mude.

Anónimo disse...

"o principal alvo e beneficiário de um partido orientado por um programa liberal seria o contribuinte"

É precisamente neste ponto que o meu entusiasmo com o liberalismo pára - claramente prefiro que o principal alvo e beneficiário seja o cidadão (não o contribuinte).

Até me podem vir dizer que é a mesma coisa. Que o efeito é o mesmo. Não é! Se, consciente ou inconscientemente, os liberais falam sempre em contribuinte, ignorando a figura da cidadania, e pretendem construir (ou destruir) um sistema a pensar unicamente no contribuinte, dificilmente esse sistema poderá ter efeitos positivos para o conjunto dos cidadãos. Quando o tiver, será puro "dano colateral".

A defesa do contribuinte está longe de constituir, por si só, um programa político.

Já a defesa da liberdade não pode senão passar pela defesa do cidadão, em todos os seus papéis (incluindo o de contribuinte). Se o enfoque é apenas no contribuinte, então o liberalismo não está condenado a continuar a ser um conjunto de "meninos ricos" e privilegiados a defenderem o seu bolso, não no interesse de todos, como alegam, mas no seu puro interesse egoísta.

E isso, não são pessoas com ideologia, são apenas pessoas com interesses.

JLP disse...

Caro snowball,

Eu compreendo o seu ponto de vista. Mas tem que se começar por algum lado.

Eu concordo que o contribuinte não é por si só um objectivo. O objectivo é diminuir o peso do estado no individuo e aumentar a sua liberdade e auto-determinação. Mas, quanto a mim, o repensar da atitude do estado em relação ao seu financiamento e às suas tarefas é uma prioridade inevitável (pelo tamanho da ofensa) para conseguir lá chegar, e provavelmente aquela que se encontra mais abandonada pelo discurso político. Já para não falar no efeito benéfico com que concerteza concordará de passar a haver uma larga margem de dinheiro que passa a circular no seu devido lugar, na sociedade e no mercado de acordo com a vontade livre de cada um, e não no atual circuito bolsos do contribuinte -> cofres do estado -> prioridades e destinatários que este determina. E isto afecta todos, sendo a perspectiva de que somente afecta os contribuintes para mim redutora.

Além disso, peço que me faça alguma justiça. Das medidas (preliminares e em primeira análise) que avancei, há várias que têm como destinatários todos os cidadãos, e não somente os contribuintes. O cheque insino aumenta a liberdade de escolha de todos em relação às suas opções escolares. A autonomia fiscal e transferência de competências para os municípios possibilita que todos tenham uma intervenção mais directa nas escolhas (e na fiscalização) da coisa pública. O fim da tipificação do contrato de casamento devolve às pessoas a liberdade de escolherem como querem viver o seu conceito de família. O fim das limitações sucessória e a legalização do suicídio assistido aumentam a liberdade de cada um poder fazer consigo e com a sua propriedade o que achar mais correcto, assim como no que toca à liberalização das drogas.

Há sem dúvida outras causas que defendo deverem constar de um programa de um partido liberal e que não constaram da lista preliminar que apresentei: a causa da privacidade, que se encontra a saque, e a causa da abertra do estado ao escrutínio público, nomeadamente em termos da acessibilidade dos seus documentos, da desclassificação da sua informação ao fim de algum tempo bem definido, entre outras. É preciso é esboçar esse consenso.

"A defesa do contribuinte está longe de constituir, por si só, um programa político."

Certo. Mas não inviabiliza que também possa fazer parte deste.

"(...) não no interesse de todos, como alegam, mas no seu puro interesse egoísta."

Não negue à partida o papel do egoísmo como elemento estruturante do estado! ;-)

Afinal, o estado ideal em termos de dimensão e de competências não será aquele que consegue encaixar no egoísmo de todos?

rduarte disse...

Caro JLP, parabéns pela iniciativa. Ando há pouco tempo nestas lides e o principal obstáculo com que me deparei – e deparo – são as poucas ideias concretas para o liberalismo (para um leigo claro).

Em relação à formação de um partido e partindo das ideias que esboçou, não consigo perceber uma situação (como lhe disse sou um leigo na matéria…mas com vontade):

Imagine que era formado um partido liberal. Dois ou três deputados na AR (sejamos realistas). Quantas destas ideias seria possível discutir? É que as mudanças seriam tão radicais que acho difícil sequer discuti-las. Imagine uma sessão na AR sobre a sustentabilidade da AR. Os deputados do Partido Liberal diriam o quê? “Na nossa opinião era acabar com este sistema todo e implementar um sistema de flat rate”. Não acha que, aos olhos do povo, iria parecer sempre mais radical do que as ideias do BE?

Resumindo: sem haver ideias de transição de uma situação para a outra acho muito difícil (radical?) um programa como esse. Porque um partido preciso de votos.

JLP disse...

Caro rduarte,

"Imagine que era formado um partido liberal. Dois ou três deputados na AR (sejamos realistas). Quantas destas ideias seria possível discutir?"

Várias. Está a partir do princípio que ainda se discute grande política na nossa AR. Independentemente de nela se poder intervir em concordância com o que se defende, a discussão e apresentação dos temas terá sim que ser feita à opinião pública, quer através de divulgação de tomadas de posição, pela comunicação social, ou dinamizando um eventual site do partido e produzindo documentação rigorosa e focada, à semelhança de um think tank, algo que não existe em Portugal.

Os partidos, mesmo (e principalmente) os maioritários, há muito que desistiram de fundamentar as suas políticas e mesmo de as discutir internamente de modo a produzir opiniões substanciadas. Seria mais uma maneira de marcar a diferença.

"Imagine uma sessão na AR sobre a sustentabilidade da AR. Os deputados do Partido Liberal diriam o quê? “Na nossa opinião era acabar com este sistema todo e implementar um sistema de flat rate”. Não acha que, aos olhos do povo, iria parecer sempre mais radical do que as ideias do BE?"

Bem, o BE tem eleitorado, não tem? ;-)

Antes de mais, a minha perspectiva é de que um partido liberal que mantenha a coerência seria provavelmente sempre um partido de média dimensão, que participaria em coligações de governo através de acordos claros em termos de objectivos políticos. Do género "nós coligamovos convosco, mas têm que concordar fazer isto, isto e isto".

Posto isto (não percebi o que queria dizer com "sustentabilidade da AR"), naturalmente que o que se poderia dizer seria que se discordava com o sistema vigente, enunciar os seus defeitos mais significativos e sintomáticos, propôr a alternativa e remeter os detalhes para comunicados de imprensa.

"Resumindo: sem haver ideias de transição de uma situação para a outra acho muito difícil (radical?) um programa como esse."

Este é a versão "soft"... ;-)

Acho que não se tem que temer a ideia (responsável) de radicalismo. Afinal, se o que se pretende é mudar radicalmente as coisas, porquê ficar com discursos dúbios que só iriam fazer a base de apoio do partido sentir-se enganada mais tarde ou mais cedo?

O que se tem é que fazer as pessoas verem da necessidade desse "radicalismo". Não moldar o discurso ao que se pensa que é o eleitorado e entrar com falinhas mansas. Isso, basicamente, é mais do mesmo do que já se tem, e do qual as pessoas já estão fartas.

rduarte disse...

Caro JLP, muito obrigado pelo esclarecimento.

“sustentabilidade da AR” foi um erro. Queria dizer sustentabilidade da SS (modelo de Segurança Social).


“o género "nós coligamovos convosco, mas têm que concordar fazer isto, isto e isto".”

Percebo mas não fico convencido…não quero chatear, mas veja: o Partido Liberal em coligação de governo. O governo (partido maioritário da coligação) pretende aprovar um orçamento de Estado. Qual era o ponto da sua lista que acharia razoável “pedir” em troca? É tudo tão radicalmente diferente do habitual que parece difíceis as situações de compromisso, normalmente intermédias.

Para um leigo o mais difícil de aceitar nestes argumentos é o não existir uma solução intermédia. Como é que chegamos a um meio-termo entre o que um socialista acha que deve ser um Estado Social e o que um liberal acha? Parece-me mais fácil ver um socialista a dizer “ok o dinheiro não dá para tudo vamos cortar então uns subsídios” do que ouvir um liberal dizer “ ok damos então subsídios apenas a este ou aquele”.

Atenção, não quero com isto dizer que os liberais são radicais…mas muitas vezes parece que as soluções são apenas tipo “preto e branco”, esquecendo-se que, para governar, é preciso agradar a um grupo grande de “cinzentos”.

JLP disse...

"O governo (partido maioritário da coligação) pretende aprovar um orçamento de Estado. Qual era o ponto da sua lista que acharia razoável “pedir” em troca? É tudo tão radicalmente diferente do habitual que parece difíceis as situações de compromisso, normalmente intermédias."

Bem, o governo não é só o partido maioritário da coligação. É toda a coligação. Tudo é uma questão de prioridades e de ir passo-a-passo.

Ter-se-ia que ver quais os pontos que até seriam consensuais (ou indiferentes) ao o partido maioritário, e estabelecer prioridades. Por exemplo, julgo que uma questão prioritária seria a questão da flat rate.

Além disso, também teriam que ser definidos os limites da tolerância das partes em relação às medidas a tomar. Se, mesmo que por iniciativa da parte maioritária, houvesse a tentação de impôr medidas, no caso fazer um OE completamente intolerável do ponto de vista liberal, restaria sempre a ameaça da dissolução da coligação.

"Como é que chegamos a um meio-termo entre o que um socialista acha que deve ser um Estado Social e o que um liberal acha?"

Chega-se, por exemplo, diminuindo o número de valências desse estado social. Diminuindo as suas competências e passando-as para a sociedade civil. E reduzindo, paralelamente, a respectiva carga fiscal.

"Atenção, não quero com isto dizer que os liberais são radicais…mas muitas vezes parece que as soluções são apenas tipo “preto e branco”, esquecendo-se que, para governar, é preciso agradar a um grupo grande de “cinzentos”."

A questão é que os problemas que vão surgindo pedem cada vez mais soluções a preto-e-branco, e não soluções cinzentas, que é mais ou menos aquio a que temos vindo a ser submetidos.

Naturalmente que a vontade que as soluções passem a ser desse tipo vai ter que emergir do eleitorado, mas não acho que tenha que ficar do lado do liberalismo qualquer ónus de consenso ou de "cinzentização". Tem-se sim que apresentar uma alternativa e esperar que, por motivos de confiança ou motivos puramente pragmáticos, as pessoas adiram.

Como já disse, não acredito que isso aconteça para uma maioria dessa "massa cinzenta". Mas acredito que tal possa acontecer para uma fracção muito significativa desta.