O prometido é devido
Em tempos natalícios, Filipe Melo Sousa sugeria que partilhasse com ele algumas considerações, no seguimento dos artigos aqui escritos sobre a questão do Estado de Direito e o problema da Justíça e da cobrança das dívidas. Ficada a promessa de posteriormente responder, aqui vai:
Lamentando sempre outros privados que sofrem com esta amnistia judicial, quer imposta quer "negociada": as empresas que sofrem da amnistia são empresas do estado, ou que trabalham em consórcio monopolista com o estado, ou em concessão estatal. É de certa forma o estado que se está a privar de uma parte da receita. Sobretudo em termos de multas que vão reverter para as câmaras. É o estado que está em grande parte a declarar a sua falência.Eu sei que a tentação de cortar o "saque" ao estado é grande. Nenhum liberal, nem sequer qualquer pessoa que pague impostos em Portugal e veja quanto lhe some do bolso ao fim de cada mês tendo destino o estado pode deixar de achar o contrário.
Mas, pessoalmente, a perspectiva de que é pela redução da segurança jurídica destes negócios, mais ou menos travestida de amnistia, que se chega a esse objectivo, parece-me algo ingénua. O estado demonstra ininterruptamente que, quando se trata de cobrar o "dele", é impiedoso, e não se coibe de atropelar as mais básicas liberdades e regras de um Estado de Direito para o fazer. Além disso, as empresas atingidas não são somente empresas que pertençam ao estado ou sustentadas por monopólios ou concessões. Não nos esqueçamos dos bancos e entidades financeiras que são comprovadamente um dos principais afectados pelo processo, e que, apesar de serem fortemente regulados, dificilmente incluiria nesse rol.
Voltando à atitude do estado, dou como exemplo o caso das contra-ordenações. Durante algum tempo, o estado assumiu a dificuldade em cobrar as coimas associadas a muitos tipos de contra-ordenações (pensemos concretamente nas associadas às infracções de trânsito), exactamente porque entupiam os tribunais, e sendo que, por prescreverem ao fim de um ano, muitos desses processos acabavam nesse destino.
Hoje, a primeira instância das contra-ordenações de trânsito é uma entidade administrativa (e não judicial), a Direcção Geral de Viação, o prazo de prescrição foi especificamente aumentado para dois anos, e as infracções interceptadas em flagrante delito obrigam ao pagamento à cabeça da coima, numa verdadeira presunção de culpa em que a polícia de trânsito passa a ser polícia, primeira instância e executor. A contrapartida é a apreensão da propriedade do condutor, nomeadamente a sua viatura. Paga-se primeiro, quer se esteja culpado ou inocente (tal como poderá ser determinado por uma instância de recurso), e protesta-se depois. Num tribunal, contra a palavra da polícia (que faz fé pública), e com os custos (e riscos) inerentes em termos de taxas de justiça e despesas com advogado, ou de se ser ainda punido por algum juiz mais mal-disposto utilizando a larga margem legal existente na determinação do valor da coima. Afinal, é vulgar nas contra-ordenações ligadas ao trânsito o valor máximo ser várias vezes o valor mínimo, para a mesma infracção.
Daqui, poderiamos passar para a administração fiscal e concluir-se em grande parte uma tendência semelhante, e galopantemente crescente.
Quanto a mim, qualquer perspectiva de que o estado, na situação de se ver a perder receita, vai ficar de braços cruzados e não vai agir em causa própria usando o seu poder coercivo para resolver o problema (ou para ir buscar o dinheiro a outro lado), parece-me ser irrealista.
Quanto à problematica do padrão ouro, e da concorrência monetária, apesar de não ser Economista, é um assunto naturalmente interessante mas que, como refere o Migas, requer alguma meditação e ponderação antes de responder. Fica para as cenas do próximo capítulo!
3 comentários:
JLP vê (com bastante razão) muitos defeitos no Estado, mas deveria ver também, para ser equilibrado, os defeitos dos privados.
Admitidamente, ter que pagar de imediato uma multa de trânsito, levanta muitas questões de princípio em matéria de legalidade. Mas, o que é que se passava anteriormente? Como JLP muito bem sabe, a imensa maioria das multas não era paga. Ou seja, a imensa maioria dos prevaricadores não era sancionada.
Se vivêssemos num mundo de anjinhos, como a esquerda frequentemente pensa acontecer, de facto, estes poderes abusivos do Estado seriam muito criticáveis.
Mas não vivemos num mundo de anjinhos, como a direita não se farta de dizer. As pessoas são, em princípio, egoistas. Tratam de defender os seus interesses, frequentemente passando por cima dos interesses dos vizinhos. Como as pessoas têm uma enorme tendência para se portarem mal, o Estado tem, lamentavelmente, que usar de meios menos próprios ao lidar com elas.
E o caso do trânsito em Portugal é paradigmático.
Luís Lavoura
Quanto à redução da segurança jurídica, disse-me há dias uma conhecida que já viveu em Espanha que hoje em dia, em Espanha, ninguém aceita um cheque. Ou antes: as pessoas só aceitam um pagamento em cheque se conhecem pessoalmente e confiam plenamente na pessoa que lhes está a pagar dessa forma. Ou seja, as pessoas não atribuem aos cheques qualquer segurança, a não ser a segurança eventualmente advinda de uma confiança pessoal.
Lamento que Portugal, neste item como noutros, ainda esteja tão, tão, tão atrasado relativamente a Espanha.
Luís Lavoura
"Admitidamente, ter que pagar de imediato uma multa de trânsito, levanta muitas questões de princípio em matéria de legalidade. Mas, o que é que se passava anteriormente? Como JLP muito bem sabe, a imensa maioria das multas não era paga. Ou seja, a imensa maioria dos prevaricadores não era sancionada."
Se não eram pagas, e se a mensagem de que esse era um comportamento com perspectivas de sucesso significativas passava, tal devia-se ao facto de que o estado não conseguia cumprir para com as funções que lhe eram atribuidas. Tão simples como isso. O estado tem ao seu alcance todos os meios coercivos necessários para, mantendo todas as liberdades e garantias, fazer com sucesso essa cobrança. O que não pode ser solução é reconhecer que há um problema essencialmente operacional, e passar não a resolver esses problemas administrativos e funcionais, mas a violar esses direitos e garantias para a máquina que existe conseguir passar a "resolver o problema".
"Como as pessoas têm uma enorme tendência para se portarem mal, o Estado tem, lamentavelmente, que usar de meios menos próprios ao lidar com elas."
O caro Luis Lavoura reflectiu mininamente antes de escrever isto?
Em relação ao pagamento por cheque conto para breve (já tinha a ideia de o fazer há algum tempo) escrever revelando a minha perspectiva. Nessa altura, voltarei ao assunto.
Enviar um comentário