2006/12/20

Estado de Direito III

Ou má sorte em se ser empresário em Portugal:

O novo regulamento de custas judiciais isenta os trabalhadores que recorram aos tribunais para resolver matérias de direito laboral. De acordo com o Ministério da Justiça, o novo regulamento vai permitir que a taxa de justiça baixe em cerca de 20 por cento para o cidadão em geral.

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O novo diploma, que deverá ir a Conselho de Ministros até final do ano, penaliza, observou Conde Rodrigues, "os grandes litigantes" — empresas de telecomunicações, banca, seguros —, que inundam os tribunais com milhares de acções contra os seus clientes.

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O secretário de Estado da Justiça realçou que o novo regulamento isenta de taxa de justiça, em matéria de direito do trabalho, os trabalhadores que sejam representados em tribunal pelos respectivos sindicatos ou pelo Ministério Público, passando a ser gratuito para o trabalhador desde que o respectivo rendimento líquido anual à data da proposição da acção ou à data do despedimento não seja superior a oito mil euros.

Público Última Hora.
Já não bastava termos uma das leis do emprego mais restritivas da Europa. Já não bastava termos uma lei laboral que é de entendimento geral que, além de ser inquinada por um forte cunho ideológico, claramente favorece os empregados em questões do foro laboral em relação aos seus patrões. Agora, ainda vão poder contestar em tribunal gratuitamente as suas causas.

Amanhã, qualquer processo de despedimento com justa causa, mesmo um acordo mútuo para despedimento e de fixação de indemnizações vai passar pelo tribunal, ou a ameaça de tal vai passar a estar impunemente sobre a mesa como arma negocial. Enfim, a mera vontade de uma empregado mais encarniçado em querer chatear o patrão arrastando-o pelos tribunais é premiada com uma isenção de taxa de justiça.

Quanto às empresas, cujos accionistas e donos portugueses são os únicos que pagam duplamente as suas responsabilidades sociais, são por este facto recompensados, para disporem da Justiça (obrigação fundamental e monopólio do estado na grande maioria das circunstância), com verem (não consta da notícia mas pelo que ouvi noutra fonte) as taxas de justiça associadas ao justo direito de recorrerem aos tribunais para recuperarem dividas inerentes ao exercício da sua actividade (ou em geral, somente pelo facto de serem "grandes empresas") agravadas em 60%.

Pior que isso, são duas questões de princípio que se colocam. A primeira, é a de que se caminha deste modo para uma Justiça que o estado estabelece como um monopólio seu, mas a que não permite que todos acedam nas mesmas circunstâncias. Teremos pois a Justiça dos trabalhadores, a Justiça dos "cidadãos particulares" e a Justiça das "grandes empresas". Pior do que pensar na maneira como vão ser estabelecidos estes critérios discriminadores, é pensar nas repercursões que tudo isto vai ter nas relações sociais, e na imagem de Estado de Direito que Portugal queira apresentar aos investidores estrangeiros. Se ser-se indivíduo neste estado na estrada para o totalitarismo vai sendo cada vez mais difícil, reconheço que ser-se empresário e cumprir escrupulosamente com as suas obrigações se apresenta cada vez mais como próximo da impossibilidade.

A segunda, é o facto de se subverter progressivamente o conceito de taxa, que é essencialmente uma cobrança orientada para o pagamento de um serviço. Naturalmente que um princípio que deverá orientar a fixação dessa taxa deverá ser o custo desse próprio serviço. Ora o mecanismo progressivo e de "redistribuição social" é (para mal dos nossos pecados) a cobrança diferenciada de impostos, não as taxas e emolumentos cobrados pelo estado. Com a disseminação desta prática, o que se estabelece cada vez mais é um novo patamar tributário na relação do estado com os cidadãos. Quer-se que seja assim na Justiça com as taxas de justiça, na Saúde com as taxas "moderadoras", e na Educação com a fixação das propinas.

Naturalmente que toda esta vontade, associada a uma máquina fiscal omnipresenta na maioria das relações entre o estado e os indivíduos e instituições ineficaz e injusta, e cuja eficácia se parece querer aumentar não reformulando a filosofia do sistema mas invadindo a privacidade e violando os direitos de todos na medida em que seja útil à máquina fiscal, é uma receita para a tragédia com que parece que, infelizmente, vamos ter que conviver.

4 comentários:

Anónimo disse...

"a mera vontade de uma empregado mais encarniçado em querer chatear o patrão arrastando-o pelos tribunais é premiada com uma isenção de taxa de justiça"

O jlp está a interpretar mal. O que o secretário de Estado disse foi que a isenção de taxa se aplicaria APENAS quando a ação judicial fosse interposta por um sindicato ou pelo ministério público.

Ou seja, o "empregado mais encarniçado", se quiser litigar por sua conta e risco, terá que pagar. Só os sindicatos e o ministério público ficarão isentos.

Luís Lavoura

JLP disse...

Luís Lavoura,

É tudo uma questão operacional: quem o quiser fazer bastará associar-se ao sindicato e recorrer ao apoio juridico que estes geralmente prestam aos seus associados. A partir daí, tudo será limitado pela imaginação em arranjar questiúnculas de foro laboral.

Anónimo disse...

"dividas inerentes ao exercício da sua actividade"

Em boa parte dos casos esta descrição é inexata. As dívidas são inerentes apenas à forma particular como as empresas resolvem dedicar-se à sua atividade. Se as empresas modificarem a sua forma de exercício de atividade - como certamente farão, em resultado deste novo código de custas judiciais - poderão evitar grande parte das dívidas e, portanto, grande parte da litigância.

Por exemplo, os stands de automóveis vendem carros a crédito porque decidem fazê-lo. Se quisessem, poderiam perfeitamente apenas vender carros a pronto-pagamento. Se o fizessem, teriam certamente menos clientes, mas não teriam virtualmente nenhumas dívidas.

Luís Lavoura

JLP disse...

O caso referido dos stands automóveis é sintomático do que acontecerá com a generalidade dos créditos ao consumo: para o stand é completamente indiferente se o carro é vendido a pronto ou a crédito, uma vez que o crédito é fornecido por instituições terceiras, e não pela empresa que detém o stand. Ou seja, em última instância a questão irá recair nestas, com os problemas já abordados nos artigos anteriores desta série.