O "Depende"
Defender o direito à vida desde o momento da fecundação como um direito que é sempre soberano sobre a vontade da mulher, é uma posição admirável que merece de todos respeito e consideração. Não é no entanto essa a posição da maioria do "Não" em Portugal, que, por oposição já não me merece o mesmo respeito intelectual nem admiração.
Se o "Não" fosse coerente não podia defender a lei actual que permite o aborto em caso de violação ou mal-formação do feto. Se se admite que argumentos como a involuntariedade do acto sexual, a protecção contra um trauma psicológico da mulher, ou a previsível inaptidão da criança para a vida são razões para se realizar um aborto, isso significa que não somos defensores da vida, mas sim defensores de uma moral que dita quando é que esta é jurídicamente protegida enquanto tal, e quando é que não. E nisso, não contem comigo para decidir se um determinado grau de probabilidade de futura deficiência é mais razão para abortar do que uma mãe de dezasseis anos toxicodependente e em sem condições mínimas para oferecer à criança. No entanto, não vejo ninguém do lado do não a lutar para que se proíba o aborto e ponto final.
Outra coisa que fascina é que o"Não" parece contente com a venda livre da pílula do dia seguinte, e até a usa como argumento como se fosse mais uma possibilidade ao alcance da mulher. Ora quem aceita a pílula do dia seguinte, não pode defender o conceito de vida no momento da fecundação e deve então dizer qual o novo momento que deve ser considerado como o aparecimento jurídico da vida. E por aí fora. Quem defende que a vida começa on acto de fecundação, deve defender uma lei que proíba a existência de clínicas de reprodução assistida, ou punir as que incorram em fecundações mal-sucedidas, o que vai dar ao mesmo. Não vejo nenhum movimento significativo a lutar contra a existência destas.
Mais, se a vida começa no acto de fecundação, então todas as práticas de aborto devem ser punidas como homícidio premeditado. Se se admite que uma morte provocada até ao nascimento (ou até determinado prazo) é aborto, sendo que depois desse momento deixa de ser aborto para passar a ser homicídio - um crime incomparavelmente mais grave - então é porque temos uma valorização jurídica e moral diferente para a vida antes e depois do nascimento. Assim, não há razão pela qual não possamos discutir diferentes valorizações jurídicas (e morais) antes e depois de o bébé ter o coração a bater (6 ou 7 semanas), ou antes e depois de ter os órgãos vitais formados (12 semanas), etc.... Ora este, é precisamente o argumento do "Sim".
O "Não", por incrível que pareça, sente-se bem com este cinzento da lei que pseudo-existe mas onde ninguém é condenado, que defende uma moral mas abre-lhe excepções contraditórias, que serve para proibir o que não consegue defender no campo ideológico nem evitar no mundo real. E por isso o "Não" perde força, porque ao contrário do "Sim", não tem "tomates" para defender a moral que o suporta, de forma íntegra e sem reservas, nem condições para levar essa ordem jurídica até junto de cada um. O "Não" na verdade, não é um "Não", é um "Depende", e nestas coisas de moral, já dizia Ayn Rand, não convém nada ser-se cinzento.
3 comentários:
bem dito...
Este post está muito bom, mas o facto é que esta questão do aborto é mesmo uma questão de "depende". Não se trata de uma questão de princípios, mas sim de uma questão pragmática.
Em princípio, todos estamos de acordo que seria bom poder defender um "direito à vida" absoluto. Os direitos absolutos são juridicamente simples, branco no preto, claros como água.
Infelizmente, no entanto, tal não é possível.
Não é possível porque se levantam outros valores contraditórios, nomeadamente o direito ao planeamento familiar e o direito da mulher ao seu corpo.
E, perante valores contraditórios, há que negociar.
Por isso o aborto não é, em meu entender, um direito. É apenas um compromisso, uma necessidade.
Por isso votarei "sim", embora ache que o compromisso ainda ficará mal traçado, pois que 10 semanas é um prazo excessivamente curto.
Luís Lavoura
Francisco,
"E por isso o "Não" perde força, porque ao contrário do "Sim", não tem "tomates" para defender a moral que o suporta, de forma íntegra e sem reservas, nem condições para levar essa ordem jurídica até junto de cada um."
Não discordando na generalidade com o artigo, acho que estás a cometer uma injustiça. Existem diversas vozes, nomeadamente as associadas à ICAR e de diversas associações apoiadas por esta que fazem a defesa intransigente do direito à vida que referes, e que não concordam sequer com a lei actual, nomeadamente no que toca à violação. Assim como se opõem à reprodução assistida, nomeadamente à fertilização in-vitro.
O que não quer dizer, fique claro, que estou sequer minimamente próximo dessa posição.
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