Quem os metesse num frasco...
Hoje, durante todo o dia, no Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, decorre uma conferência subordinada ao tema "Bases de Dados de Perfis de ADN com fins forenses". Os nossos caríssimos governantes, já se vê, lá estarão a apoiar ferozmente a sua distopia, que em tempos julguei não passasse de um sonho de uma noite de Verão mas que, ao que tudo indica, é mesmo para avançar.
Na mesma altura em que a Comissão Nacional de Protecção de Dados, organismo de pernas cortadas à nascença, heroicamente levanta a sua voz tímida para colocar reservas à menina dos olhos de José Sócrates - o muito falado "Cartão do Cidadão"… - o Big Brother dispõe-se já a voos mais altos.
Não sabem ainda (e dizem isto como se fosse uma questão de pormenor) se a base de dados englobará apenas os arguidos (e se sim, os arguidos por que crimes) ou se terá uma base mais alargada. Por mais alargada entende-se, na tendência omnívora da distopia estatizante: todos os cidadãos.
Primeiro a acção, depois a ideia. O desejo deste Governo de conseguir para Portugal o papel de pioneiro em áreas delicadas da cidadania e da governação corre o risco de atrair antes o ridículo dos demais países. Ou, pior ainda, de não atrair, e aí quem corre o risco somos nós: numa União Europeia com vida própria, cultivada em gabinetes opacos e que já provou ter muito pouco respeito pela privacidade e liberdade, a iniciativa do nosso Governo pode dar à obscura cabeça comunitária ideias muito pouco saudáveis.
Pessoalmente, não reconheço ao Estado português nem a um supra-Estado europeu de contornos indefinidos o direito de deter a minha essência num frasco. Se a ideia vingar, como estou quase certa de que vingará, espero recusar-me a fornecer-lhes tais dados pelo menos até ser condenada a isso por um Tribunal e, quiçá, mesmo além daí.
2 comentários:
Afora essas objeções puramente palavrosas ("a minha essência num frasco"), que objeções objetivas tem a SMP a que o Estado detenha perfis do seu ADN? Que teme a SMP que o Estado possa fazer com esses perfis?
Luís Lavoura
A teoria do “quem não deve, não teme” não colhe para quem perfilha o meu ponto de vista que é, evidentemente, o de um Estado com poderes mínimos sobre os seus cidadãos. Muito menos a teoria do “se não há consequências malignas à vista, porquê negares-te”? Esse raciocínio parte de uma falácia, que assenta numa visão distorcida da realidade: uma onde o Estado tem direito a todas as informações que pretender sobre mim e sou eu que tenho o ónus de lhe provar que alguma delas pode redundar em meu desfavor. Nesse plano, todas as objecções e obstáculos que se ancorem na legitimidade de um cidadão que quer ser deixado em paz são rotuladas de palavrosas, e dispensadas por evocação a interesses superiores.
Feita esta ressalva de princípio, que sei bem cai em saco roto para quem não partilhe da mesma perspectiva ideológica - mas que nevertheless é, do meu ponto de vista, um argumento por si só - mantêm-se ainda muitas objecções do ponto de vista “prático”.
Temo que o Estado ponha e disponha dos meus benefícios e obrigações sociais, porque acedeu ao meu perfil genético e conhece as predisposições da minha saúde. Temo que retome um direito penal do agente com base em supostas probabilidades genéticas para cada um de nós cometer este ou aquele crime. Temo que a eugenia regresse. Temo que, num futuro que nenhum de nós sabe se muito distante, o meu perfil genético seja utilizado para me replicar compulsoriamente por algum duvidoso interesse público. Temo tudo isto e, mesmo que não partilhando a minha repugnância de princípio, o LL também o devia temer, até porque a História provou que os meus receios não são infundados.
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