2006/10/23

O que que é que a nossa Constituição alguma vez fez por nós?

Desde 1989 a Constituição não assegura a gratuitidade do SNS mas sim a «gratuitidade tendencial», «tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos». A noção de «tendencialmente gratuito» é suficientemente indeterminada para consentir uma certa margem de discricionariedade legislativa. Acresce que, mesmo quando a Constituição falava em gratuitidade "tout court", o Tribunal Constitucional considerou que as "taxas moderadoras" (que já taxam serviços que não dependem de escolha do utente, como sucede com os meios auxiliares de diagnóstico receitados pelos médicos...) não eram incompatíveis com a Constituição.

Vital Moreira, na Causa Nossa, com negritos meus.
Tendencial (adj.): que marca uma tendência, uma orientação determinada.

Dicionário on-line da Priberam.
É francamente triste ler uns dos pais da nossa Constituição afirmar que a redacção de um artigo desse mesmo documento, ainda mais um que define os termos de algo tão caro à esquerda como as condições de universalidade e de gratuitidade do SNS, é "suficientemente indeterminada" para consentir grande margem de "discricionariedade legislativa". É triste ouvir de um dos principais responsáveis técnicos e políticos da elaboração do nosso texto fundamente a confirmação daquilo que há muito se tornou relativamente pacífico para os portugueses: que de tão plena de "direitos" e de texto "suficientemente indeterminado", a Constituição Portuguesa se afirma cada vez mais como a letra morta de um testamento ideológico, do que como um documento com a dignidade e a qualidade (e, acima de tudo, a que é votado o respeito) necessárias para constituir o cume do nosso sistema juridico e estabelecer as regras do contrato social que a todos (supostamente) nos vincula.

Farta de amanhãs que cantam de poesias como o direito ao emprego e à habitação, a nossa Constituição transformou-se num documento que sucumbe ao feeling do dia dos juízes do nosso Tribunal Constitucional. É que, a menos que impere na generalidade destes uma (incompreensível) dificuldade de compreensão da língua escrita portuguesa, torna-se difícil de compreender no exemplo concreto apresentado que "tendência", ou "convergência" para a gratuitidade (que, a última vez que eu vi, queria dizer ausência de pagamento, espelhada na obrigação constitucional) existe, quando a situação se iniciou em pagamentos pontuais e se espalha e aumenta ao pagamento de meios auxiliares de diagnóstico e, agora, de internamento hospitalar. É que, com tanta "tendência" desta, um dia destes paga-se tudo. Duas vezes.

Mas mais curioso do que isso: alguém se lembra de algum caso paradigmático em que a CRP tenha zelado pelos direitos e liberdades dos seus cidadãos? Que se tenha imposto à "discricionariedade legislativa"? Alguém se lembra de algo que a nossa Constituição tenha feito por nós?

Sem comentários: