2006/08/20

Falácias de quem não percebe o liberalismo III - entre a competência e os escrúpulos

Sobre este artigo:

Toda a encenação colocada em torno da crítica apresentada no artigo se pode resumir em grande parte na polémica "clássica" da responsabilidade social das empresas. Naturalmente que a minha posição só se poderá resumir pela afirmação clássica de Milton Friedman de que a responsabilidade social das empresas é a de aumentar os seus lucros.

É um exercício comum da esquerda o tentar encenar as empresas como "entidades abstratas", entidades desprovidas de vida e no fundo algo muito semelhante a identificar as empresas com os edifícios que as constituem. Mas as empresas não são isso. As empresas são bastante mais. São pessoas que arriscam, que saem da comodidade da sua tranquilidade e sujeitam o seu capital ao jogo do mercado, com vista a que, de acordo com o seu projecto, possam vir a amplificar esse investimento. Neste processo, estabelecem trocas de dinheiro por trabalho, ajudando a desenvolver os projectos pessoais dos seus trabalhadores, e em última instância providenciam à sociedade um produto ou um serviço que esta procura e a que atribui valor. Veja-se até que nalguns casos são "simpáticos" (como se tivessem tido alguma hipótese em contrário) ao ponto de até pagarem impostos pelo facto de tentarem. Há algo mais socialmente responsável do que isto?

O problema da esquerda é que não procura empresários e homens, mas tem a utopia de achar santos e abnegados filantropos. E se não os encontrar, tem a tentação de os transformar nisso, pelos "seus" moldes, quer os destinatários o queiram ou não.

Procura gestores que sejam leais não a quem lhes paga o seu salário, mas à "comunidade", que não os encumbiu de qualquer missão e para a qual não tem (ou deve ter) qualquer outra responsabilidade que não seja a de cumprir a lei. Um gestor que chegue aos seus patrões e lhes diga que "é um gajo porreiro", e que decidiu no sentido de baixar o cheque que se lhes anunciava no fim do exercício em prol da "comunidade".

Concretamente, o João Vasco apresenta-nos um cenário:

A editora Filipim Lda tem os direitos de um romance. A edição de cada livro custa 5 moedas, e o livro é vendido a 6 moedas. Há 750 compradores.
Assim sendo, a empresa tem um lucro de 750 moedas (a amarelo), e presta aos vários leitores um serviço que pode ser estimado em 2250 moedas (a verde), pois muitos leitores estariam dispostos a pagar mais do que 6 moedas pelo livro.

Neste momento, o gestor decide tomar uma decisão: subir o preço do livro para 10 moedas. Perderá imediatamente 250 clientes, mas os lucros duplicarão.
A empresa passa a ter um lucro de 1500 moedas, embora agora apenas preste aos consumidores um serviço que vale 1000 moedas.

Este ponto deve ser observado com atenção: a decisão do gestor que revelará competência profissional é a mesma que prejudicará a comunidade como um todo, e que é, por isso, eticamente condenável.
O João Vasco está, na sua ânsia de proclamar "prejuízos da comunidade como um todo", quanto a mim, obviamente a esquecer-se de algumas coisas: a primeira é de que os empresários também fazem parte dessa sociedade, e adivinha-se que esses novos lucros sirvam para quem os recebe ter a oportunidade de consumir mais bens e serviços dessa mesma sociedade, e como tal fazê-la desenvolver; o mesmo também acontece com os funcionários da empresa, que só beneficiarão com a sua prosperidade. Além disso, em termos de mercado, não houve perdas, tão somente um realinhamento da oferta e da procura. Continuam a haver pessoas que atribuem um valor ao livro maior ou igual a 10 moedas e que como tal aceitam trocar o seu capital pelo bem que é transacionado. Além disso, num mercado livre à semelhança do que é defendido pelos liberais, qualquer pessoa tem a oportunidade de, se achar que consegue providenciar o mesmo bem por menor preço, o fazer. É essa a beleza da concorrência.

Posteriormente, pela leitura dos comentários ao referido artigo, conclui-se que o João Vasco pretendia também adicionar uma nuance ao problema: tratando-se de um bem cultural, o livro está sujeito às regras do direito de autor, o que conduziriam a que nesse caso em particular, em relação a essa obra, se estabeleçe um monopólio que elimina a possibilidade de alguém entrar em concorrência e desse modo travar a escalada do preço do bem.

Apesar de achar estranha a minudência do exemplo, aparentemente (e quanto a mim) mais preocupado em ajudar a confundir coisas do que em apresentar uma crítica clara (afinal o problema do João Vasco é só com as empresas que vendem bens culturais?), existe logo à partida uma clarificação que tem que ser feita: por mais males que a esquerda queira imputar ao "neo-liberalismo", naturalmente que a criação do direito de autor, como é conhecido no presente, não é de todo uma criação liberal. Nem existe uma assim tão clara associacão entre o liberalismo e os muitos que querem ver o direito de autor convertido em direito de propriedade.

Importa portanto separar as águas: do ponto de vista da empresa, que como é referido "detém os direitos da obra", naturalmente houve um processo anterior à situação referida em que foram negociados esses direitos entre a empresa e o autor. Terá sido estabelecido um preço, que conto esteja refletido no custo de "5 moedas" atribuído ao livro. Ou seja, do ponto de vista do mercado, o reflexo do direito de autor no que compete ao poder ao alcance da empresa é tão somente no custo de produção.

As críticas esgrimidas pelo João Vasco deveriam ser esgrimidas em relação a outros alvos, nomeadamente ao autor, que esse sim decide licenciar a sua obra em regime de exclusivo (nada o impedia, para além da sua vontade, de licenciar a obra a outras empresas), e ao estado, que legislou no sentido de garantir direitos inalienáveis e em proteger direitos exclusivos do autor durante longos períodos de tempo.

Ou seja, em vez de o João Vasco estar preocupado com as limitações que vão sendo impostas imperativamente pelo estado ao autor relativamente à sua obra, e em vez de se estar a queixar da maneira como o estado permite a prorrogação sucessiva dos mecanismos de protecção do direito de autor no tempo, está preocupado com o facto de a empresa, depois de ter negociado com o autor e de estar a cumprir com todas as obrigações, escândalo, pretenda ter lucro.

15 comentários:

João Vasco disse...

«O João Vasco está, na sua ânsia de proclamar "prejuízos da comunidade como um todo", quanto a mim, obviamente a esquecer-se de algumas coisas: a primeira é de que os empresários também fazem parte dessa sociedade, e adivinha-se que esses novos lucros sirvam para quem os recebe ter a oportunidade de consumir mais bens e serviços dessa mesma sociedade, e como tal fazê-la desenvolver; o mesmo também acontece com os funcionários da empresa, que só beneficiarão com a sua prosperidade»

É falso que me tenha esquecido disso.

Se somar aos lucros da empresa o bem que prestam aos consumidores em ambas as situações, notará que o TOTAL é mais baixo na segunda.

Foi sempre a este total que me referi, tendo precisamente o cuidado de considerar a empresa como parte da sociedade.

João Vasco disse...

«Apesar de achar estranha a minudência do exemplo, aparentemente (e quanto a mim) mais preocupado em ajudar a confundir coisas do que em apresentar uma crítica clara (afinal o problema do João Vasco é só com as empresas que vendem bens culturais?),»

Eu quis dar um exemplo relativamente concreto (mas ainda assim bastante geral), e foi essa a escolha que fiz.

Para demonstrar a falsidade de um teorema basta mostrar um contra-exemplo. Eu escolhi este como podia ter escolhido outros.


«Nem existe uma assim tão clara associacão entre o liberalismo e os muitos que querem ver o direito de autor convertido em direito de propriedade.»

Mas o liberalismo está contra?
Se sim, reconheço que o exemplo não tem validade.

Se não, o meu exemplo mostra que, existindo direito de autor, seja porque razão for, o gestor competente é aquele que toma a decisão menos ética neste caso concreto.

«Ou seja, do ponto de vista do mercado, o reflexo do direito de autor no que compete ao poder ao alcance da empresa é tão somente no custo de produção.»

E no monopólio de que esta passa a dispor, se assim estiver estipulado no contrato.
Quando escrevo "a empresa detém os direitos de autor" refiro-me ao tipo de contratos que conferem exclusividade à empresa para explorar os frutos da obra em questão.

«As críticas esgrimidas pelo João Vasco deveriam ser esgrimidas em relação a outros alvos, nomeadamente ao autor, que esse sim decide licenciar a sua obra em regime de exclusivo (nada o impedia, para além da sua vontade, de licenciar a obra a outras empresas),»

Repare que o autor não está necessariamente livre de críticas, neste exemplo.

Simplesmente o meu ponto é que o gestor competente certamente não estará.


«e ao estado, que legislou no sentido de garantir direitos inalienáveis e em proteger direitos exclusivos do autor durante longos períodos de tempo.»

Eu acho bem que assim seja, desde que os tempos (e todas as medidas de protecção) sejam equilibrados.
Se o liberalismo clássico for contra essa situação, entenderei que todo o meu artigo deixa de fazer sentido, mas não creio que seja esse o caso.

«Ou seja, em vez de o João Vasco estar preocupado com as limitações que vão sendo impostas imperativamente pelo estado ao autor relativamente à sua obra, e em vez de se estar a queixar da maneira como o estado permite a prorrogação sucessiva dos mecanismos de protecção do direito de autor no tempo, está preocupado com o facto de a empresa, depois de ter negociado com o autor e de estar a cumprir com todas as obrigações, escândalo, pretenda ter lucro.»

A preocupação não é essa.
Apenas constato que o gestor mais competente é aquele que toma a decisão que mais prejudica toda a comunidade (MESMO estando consciente que a empresa faz parte dela).

JLP disse...

"Se somar aos lucros da empresa o bem que prestam aos consumidores em ambas as situações, notará que o TOTAL é mais baixo na segunda.

Foi sempre a este total que me referi, tendo precisamente o cuidado de considerar a empresa como parte da sociedade."

O equívoco que estabelece é que define o "benefício social" ou "o bem que prestam aos consumidores" em função do preço e do volume de vendas do bem. Ou seja, segundo o João Vasco, a generalidade dos bens culturais têm diminuido de valor ao longo dos séculos, já que são agora mais acessíveis e disseminados do que alguma vez foram. Shakespeare avalia-se pelo somatório do preço de capa de todas as edições disponíveis da sua obra. Os clássicos, agora disponíveis gratuitamente (pelo menos no que toca ao serviço prestado por empresas culturais) valem próximo de zero para a sociedade.

JLP disse...

"Eu quis dar um exemplo relativamente concreto (mas ainda assim bastante geral), e foi essa a escolha que fiz."

Só achei estranho que para defender a sua tese tenha escolhido um mercado em concreto que opera sujeito a regras tão especiais, diferentes da generalidade dos outros. Apesar de passar a mensagem, fica a dúvida em relação à transitibilidade dos raciocínios para o resto dos domínios ou mesmo em relação ao interesse genérico das suas conclusões.

"Mas o liberalismo está contra?"

Não ache que exista (mas estou aberto a notícias do contrário!) uma teoria definitiva do liberalismo em relação ao direito de autor, assim como também não existe na própria esquerda, onde vê defender desde a sua pura e simples abolição até ao garantir de rígidos direitos (alguns até imperativos) aos autores num cenário bem mais rígido do que o actual.

Pessoalmente acho que se justifica a existência do direito de autor, e que tal pode ser justificado por argumentos liberais. Mas sou contra o seu actual enquadramento. Pessoalmente defendo um espírito semelhante ao expresso na Constituição original americana, nomeadamente em termos de objectivos e de prazos de vigência (muito inferiores ao presente). Defendo também uma mais livre possíbilidade de alienação dos seus direitos pelos autores.

"E no monopólio de que esta passa a dispor, se assim estiver estipulado no contrato. "

O problema é que no caso do direito de autor, o que garante e sustenta o monopólio não é o que fica firmado no contrato, mas sim o próprio enforcement pelo estado do respectivo ordenamento jurídico do direito de autor

Se esse direito de autor não vigorasse durante tanto tempo, julgo que seria dado um passo importante para que não interessasse aos próprios autor o comprometerem-se com contratos de exclusividade.

De resto, não tenho nada contra contratos de exclusividade ou sem termo, desde que a sua denúncia seja livre e que as eventuais sanções penais que constem deste pela sua denúncia sejam limitadas aos valores acordados no próprio contrato. Desse modo, o monopólio só se estabeleceria se niguém quisesse cobrir a oferta.

"Eu acho bem que assim seja, desde que os tempos (e todas as medidas de protecção) sejam equilibrados."

Não concordo que esses direitos sejam inalienáveis. O estado devia limitar-se a definir imperativamente o período de vigência, os termos do "fair use", os direitos e deveres de quem adquirir obras sujeitas a direito de autor e as condições de renúncia voluntária a este.

João Vasco disse...

Isso é não entender o gráfico. Se a empresa vende um bem a 6 (que custa 5), mas as pessoas estariam dispostas a pagar 15, então a empresa, por cada unidade, tem um lucro de 1 enquanto presta um serviço de 9.

O lucro está a amarelo, e o "serviço" está a verde. O total é a soma de ambas as áreas.

Hoje as pessoas pagam pouco pelos clássicos, mas como estariam dispostas a pagar bastante (se não tivessem alternativa), então as editoras prestam um serviço valioso.

Nem é pretensão do meu exemplo dizer o contrário.

João Vasco disse...

Responderei às outras mensagens em breve. Agora não posso. Até já :)

João Vasco disse...

A penúltima mensagem dirigia-se à primeira do JLP, que tinha sido a única que ele tinha lido até então. Passo agora a responder às outras.

João Vasco disse...

"Apesar de passar a mensagem, fica a dúvida em relação à transitibilidade dos raciocínios para o resto dos domínios "

Eu pretendo demonstrar algo de muito concreto com um exemplo concreto.
Não tem de haver qualquer "transitibilidade" neste caso concreto.

Para demonstrar a falsidade de um teorema basta mostrar um contra-exemplo, não preciso de demonstrar qualquer generalidade desse con tra-exemplo.


Em tudo quanto é escrito acerca dos direitos de autor, não tenho muito a dizer.
A partir do momento em que o liberalismo não está contra a sua existencia, eu posso usa-los para demonstrar este exemplo.

De resto, ate concordo consigo que alguns prazos deveriam ser reduzidos e tudo. Mas isso são outras questões alheias ao que está em discussão.

João Vasco disse...

(afinal a ausencia pode ser curta, os acentos circunflexos é que nem ve-los. Limitações do computador em que me encontro..)

JLP disse...

"Hoje as pessoas pagam pouco pelos clássicos, mas como estariam dispostas a pagar bastante (se não tivessem alternativa), então as editoras prestam um serviço valioso."

O que eu queria dizer é que, de acordo com essa perspectiva de "serviço" que tem enunciado, os serviços on-line que disponibilizam obras em domínio publico gratuitamente não prestam qualquer serviço, já que o custo para o consumidor do bem é zero (mais o que paga ao ISP pelo "transporte" desta, mas esté é um serviço do ISP, não de quem fornece o conteúdo).

JLP disse...

"Para demonstrar a falsidade de um teorema basta mostrar um contra-exemplo, não preciso de demonstrar qualquer generalidade desse con tra-exemplo."

Concordo. Mas no caso presente acho que ainda persiste essa prova.

Mas a critica concreta é que se procura refutar o teorema (apesar de com validade) num situação que é pouco clara e que poderá não ter muito interesse ou relevo para o domínio da aplicação desse mesmo teorema.

JLP disse...

"A partir do momento em que o liberalismo não está contra a sua existencia, eu posso usa-los para demonstrar este exemplo."

Eu não disse que está contra ou a favor. Só disse que, no meu conhecimento, não há uma teoria unificada do liberalismo em relação a esse assunto.

João Vasco disse...

«O que eu queria dizer é que, de acordo com essa perspectiva de "serviço" que tem enunciado, os serviços on-line que disponibilizam obras em domínio publico gratuitamente não prestam qualquer serviço, já que o custo para o consumidor do bem é zero (mais o que paga ao ISP pelo "transporte" desta, mas esté é um serviço do ISP, não de quem fornece o conteúdo).»

Hã??

Se o consumidor estivesse disposto, caso não houvesse alternativa, a pagar X pelo bem, então a empresa que fornece esse bem gratuitamente ao consumidor presta um serviço que vale X.

É a área a verde do gráfico que desenhei. É claro que, quanto menos a empresa cobrar, maior é essa área.

Por isso aquilo que se passa é até um pouco oposto aquilo que escreveu.

João Vasco disse...

«Eu não disse que está contra ou a favor. Só disse que, no meu conhecimento, não há uma teoria unificada do liberalismo em relação a esse assunto.»

Se me mostrar que o liberalismo está contra, refuta o exemplo que dei.

Se não mostrar isso, o argumento dos direitos de autor não pega.

JLP disse...

Tem razão. Cometi um erro na análise dos gráficos, e vou reformular a argumentação assim que poder (o meu último comentário). De qualquer modo a generalidade da argumentação não é afectada.