2006/04/19

Capítulo VII

Disclamer: não sou jurista.

Os EUA, pela voz de Condoleeza Rice em recente conferência de imprensa, parecem relativamente à questão do programa nuclear do Irão acometidos de um súbito respeito pelo direito internacional:

Rice said U.N. Security Council should look at chapter 7 of the U.N. Charter which makes a resolution mandatory under international law for all U.N. members. It can lead to sanctions and eventually the use of force if it specifically calls for them or threatens "all necessary measures."
A Chapter 7 resolution passed against Iraq has been seen as giving the United States a legal argument for the bombing and then invasion of that country.
Temo que pela leitura atenta das palavras da representante americana, a intenção seja mais a perspectiva da obrigatoriedade dos estados membros em adoptarem a resolução, e como tal partilharem a factura e o ónus político da movimentação americana, do que o respeito propriamente dito pelo direito internacional.

Senão vejamos.

O referido capitulo VII da Carta das Nações Unidas refere (o anunciado "argumento legal para o bombardeamento e a invasão") que (negritos meus):
Article 39

The Security Council shall determine the existence of any threat to the peace, breach of the peace, or act of aggression and shall make recommendations, or decide what measures shall be taken in accordance with Articles 41 and 42, to maintain or restore international peace and security.

Article 42

Should the Security Council consider that measures provided for in Article 41 would be inadequate or have proved to be inadequate, it may take such action by air, sea, or land forces as may be necessary to maintain or restore international peace and security. Such action may include demonstrations, blockade, and other operations by air, sea, or land forces of Members of the United Nations.

Article 43

1. All Members of the United Nations, in order to contribute to the maintenance of international peace and security, undertake to make available to the Security Council, on its call and in accordance with a special agreement or agreements, armed forces, assistance, and facilities, including rights of passage, necessary for the purpose of maintaining international peace and security.

[...]

Article 48

1. The action required to carry out the decisions of the Security Council for the maintenance of international peace and security shall be taken by all the Members of the United Nations or by some of them, as the Security Council may determine.

[...]

Article 49

The Members of the United Nations shall join in affording mutual assistance in carrying out the measures decided upon by the Security Council.
Contudo, da leitura do Capítulo I:
Article 2

The Organization and its Members, in pursuit of the Purposes stated in Article 1, shall act in accordance with the following Principles.

1. The Organization is based on the principle of the sovereign equality of all its Members.

[...]

4. All Members shall refrain in their international relations from the threat or use of force against the territorial integrity or political independence of any state, or in any other manner inconsistent with the Purposes of the United Nations.

[...]

7. Nothing contained in the present Charter shall authorize the United Nations to intervene in matters which are essentially within the domestic jurisdiction of any state or shall require the Members to submit such matters to settlement under the present Charter; but this principle shall not prejudice the application of enforcement measures under Chapter Vll.
A Carta das Nações Unidas, salvo algumas disposições anacrónicas herdeiras do ter sido criada no seguimento do desfecho da II Guerra Mundial, foi assinada como um documento entre estados soberanos e iguais, como se pode verificar na sua redacção acima. Com a infeliz excepção da existência do Conselho de Segurança, o documento naão estabelece nem permite que se estabeleçam diferenças qualitativas entre estados, nem possibilita a compartimentalização de estados em "bons" e "maus".

No caso em apreço, se vejo como eventual causa e justificação de reação das NU ao abrigo da Carta a ameaça objectiva, feita e reiterada, do Irão sobre a existência do estado de Israel (nº 4 do artº 2º), dificilmente aceito que a existência de um programa nuclear, mesmo com objectivos militares, no Irão possa merecer semelhante enquadramento. A decisão soberana do Irão de explorar recursos nucleares ou de constituir um arsenal nuclear é um direito soberano que lhe assiste, e o facto da sua existência (que não do seu uso sobre terceiros) não pode constituir fundamentação para juízos de valor entre estados, sendo mais que os próprios EUA são detentores de um arsenal ímpar do género, e existem outros países envolvidos na polémica em situações tão ou mais precárias, como o próprio estado de Israel que não subscreve o Tratado de Não-Proliferação Nuclear nem permite inspecções internacionais ao seu arsenal.

A existência e adopção deste género de double-standards, ainda mais sustentados em suposta aplicação de direito internacional, terá sido porventura um dos cancros que infecta a própria credibilidade desse direito e que inquinou o panorama das relações internacionais no último e no presente século.

Durante décadas a comunidade internacional, signatária da mesma Carta, viveu na ameaça das ogivas reais soviéticas, controladas por um poder totalitário.

O direito internacional não pode ser a ferramenta conveniente dos que podem contra os que não podem. Os EUA, sem dúvida, podem, como o têm vindo a demonstrar. Agora atirar poeira para os olhos das pessoas e utilizar os mecanismos de direito à medida dos seus objectivos para obrigar todos os outros, meus senhores, não.

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