2006/10/25

Two wrongs don't make a right

João Miranda opina no Blasfémias que o tratamento juridico americano dos "unlawful alien combatants", que teve como desenvolvimento recente o Military Commissions Act, não difere muito de outros processos juridicos participados pelos EUA na História, e que os recentes desenvolvimentos não representam nenhum particular "sinal de declínio da democracia liberal nos EUA", referindo como exemplo concreto os Julgamentos de Nuremberga que, como sabemos, "julgaram" os principais responsáveis nazis da Segunda Guerra Mundial.

Compartilho inteiramente da opinião respeitante aos Julgamentos de Nuremberga. A justiça dos vencedores não foi (e dificilmente alguma vez será feita) num tribunal, e o referido julgamento foi, em grande parte, tão somente um gigantesco alibi para se executar aqueles que já estavam executados à partida, num triste espectáculo de suposta "Justiça". O que faltou de coragem cresceu em termos de proclamação de "superioridade moral". Para a História ficará, contudo, a sinceridade de Churchill, posteriormente toldado pelo desejo de espectáculo do seu aliado americano, que pretendia e defendia tão somente uma execução sumária dos responsáveis nazis, consequência e direito histórico que, para o bem ou para o mal, sempre assistiu os vencedores sobre os vencidos.

Em vez disso, consumou-se o festival do "direito natural", do julgamento de pessoas por normas residentes na cabeça dos seus julgadores e que, naturalmente, não podiam conhecer violar. Por procedimentos ad hoc que se repetem em realizações posteriores dessa intenção festivaleira da Justiça, como o TPI para a antiga Jugoslávia ou o julgamento em curso de Saddam Hussein.

Mas em relação à presente deriva americana, há alguns pontos que não poderão escapar à análise, e que fazem duvidar da certeza de João Miranda em relação ao declínio dos EUA como democracia liberal, principalmente ao deixar passar ao largo sinais que vão progressivamente emergindo nas recentes decisões relativamente à problemática do terrorismo e dos combatentes estrangeiros irregulares.

Um primeiro sintoma claro é o crescente compromisso da separação de poderes, em que o poder executivo do presidente se arroga crescentemente a ganhar poderes tipicamente atribuídos ao poder judicial. Nuremberga foi, apesar de criado por decisão executiva, território largamente abandonado ao campo judicial. Em grande parte, a acção do poder executivo limitou-se à decisão da sua criação. Na recente decisão, é fácil constatar a diferença quando o poder de classificar pessoas como "alien enemy combatantes", ou combatentes estrangeiros irregulares passa a ser uma competência essencialmente presidencial. Ou, mais grave, quendo este ganha poderes interpretativos sobre as Convenções de Genebra, podendo pessoalmente qualificar o que são violações "graves" ou "não graves" desta.

Um outro sintoma é uma progressiva militarização da Justiça. Para o bem ou para o mal, os referidos "julgamentos" internacionais foram presididos por juízes civis (mais concretamente por uma mistura de juízes militares e civis, com larga predominância dos segundos). A tendência recente de substituir o natural protagonismo dos colectivos civis por colectivos militares cujos membros, lembremo-nos, gozam de uma hierarquia rígida e respondem ao presidente como seu Comandante-em-Chefe, em questões que claramente se afastam dos domínios da guerra convencional e da disciplina interna que estão sobre sua alçada e se imiscuem em questões de direitos civis e da repercursão do direito internacional no ordenamento interno jurídico americano é, quanto a mim, claramente preocupante.

Outra questão, que claramente marca a distinção com Nuremberga, é que, enquanto este foi um tribunal eventual, que se criou, exerceu o seu mandato e posteriormente se extinguiu, as recentes decisões americanas procuram estimular uma policy geral e duradora em relação a uma determinada questão, longe de circunscrita temporalmente aos eventos recentes. Não estamos a falar em decisões pontuais, mas em precedentes tomados em questões como o respeito dos EUA dos tratados e convenções a que se aceitou submeter (por sua vontade, muitas vezes por sua iniciativa, e em muitos casos para benefício em grande parte seu), a validade de instituições centenárias como o Habeas Corpus, direitos civis ou questões essenciais do equilíbrio e separação de poderes no estado americano. Assim como ficou claro em toda a evolução da questão o facto de o poder judicial, nomeadamente do SCOTUS, ter sido claramente colocado em cheque em termos do seu poder quase de fim-de-linha e de topo de cadeia no ordenamento político americano, substituido por um claro aumento da discricionaridade do poder presidencial e do aumento da sinergia com os militares.

Por último, fica o relevo da questão para os cidadãos americanos. Se (para já), parece claro que grande parte das decisões se aplicam somente a estrangeiros, persistem as dúvidas relativas a algumas das questões que levantam, relativamente por exemplo a mecanismos de prova, de interrogatório/tortura e aos direitos relativos ao aconselhamento jurídico em algumas situações que, aparentemente inicialmente residuais (como por exemplo no caso do auxílio ou colaboração de cidadãos americanos com combatentes estrangeiros irregulares), poderão no futuro, e no seguimento do crescimento das discricionaridades e do atropelamento dos princípios de estado como pessoa de bem e dos direitos cívicos que progressivamente se verificam, vir previsivelmente a descambar.

4 comentários:

Carlos Guimarães Pinto disse...

Estava a vêr que nenhum especialista em direito da casa comentava esta :)

Migas disse...

A questão da aplicabilidade a cidadão americanos pode facilmente acabar da mesma forma que a legislação equivalente (em termos de poderes de detenção sem acusação) no Reino Unido. Se inicialmente a lei aprovada previa essa detenção para estrangeiros, rapidamente evoluiu para qualquer pessoa (no RU o poder arbitrário foi atribuido ao Home Secretary).

Mas antes de declarar derrota dos direitos, liberadades e garantias, fico à espera de futuros "rulings" do SCOTUS.

JLP disse...

Carlos,

Atento sim, mas especialista não! A especialização está reservada à SMP e ao JB.

Mas não pude deixar de dar a minha opinião, mais ou menos informada.

Abraço.

JLP disse...

Migas,

"Se inicialmente a lei aprovada previa essa detenção para estrangeiros, rapidamente evoluiu para qualquer pessoa (no RU o poder arbitrário foi atribuido ao Home Secretary)."

Sem dúvida que isso será um passo ténue, e previsivelmente fácil de tomar (se e quando for necessário) à mistura de muitos discursos de "unamericanism".

"Mas antes de declarar derrota dos direitos, liberadades e garantias, fico à espera de futuros "rulings" do SCOTUS."

Eu também tenho esperança. Tem a maioria das vezes no passado demonstrado que sabe intervir no tempo e na medida certos, com ponderação e acutilância. Mas mesmo assim, esta questão do terrorismo e dos combatentes irregulares está a "provocá-lo" em várias frentes, e já demonstrou que este foi relativamente derrotado no ruling anterior.

Além de que temo que, por melhor que esteja estabelecido o sistema de "checks&balances", este também tenha lacunas (que as tem) que se tornem insanáveis e que diminuam o âmbito da acção do tribunal.