2006/10/25

Do Direito, Parte I

Algures no post anterior, o João fala de um "festival de Direito Natural" relativamente ao que se passou em Nuremberga. Evidentemente, o sentido da expressão é pejorativo, e parece remeter para uma distopia arbitrária onde, à custa de bizarras efabulações morais, se chegasse a decisões perfeitamente insindicáveis e enraizadas em coisa nenhuma. No fundo, qualquer coisa que, completando um percurso circular, partiria da justiça crua dos vencedores para a ela chegar de novo em última instância, mais não fazendo do que transvestir, pelo caminho, a dionísiaca lei da selva com a ilusão apolínea da moral.
Ora, não posso deixar de comentar essa concepção que, a meu ver, labora em erro, trazendo à praça pública do Small Brother uma discussão que entre nós leva já alguns anos.
O Direito positivo é fácil de representar: trata-se, grosso modo, do direito em vigor numa determinada comunidade num momento também ele determinado. Para o conhecer basta fazer uma ideia geral do que constitui fonte de Direito no território em questão e analisar o seu conteúdo. Trata-se, assim, do Direito instituído, independentemente de poderem aqui caber não apenas as normas estatalmente impostas como também normas geradas pela própria comunidade (como os costumes).
E o Direito Natural? A esta pergunta não há uma resposta tão simples. Mas é fácil formular a pergunta a que temos de responder se queremos tomar uma posição acerca da existência e importância de um Direito Natural. Uma formulação possível para essa pergunta é esta: "O fundamento da legitimidade de uma norma jurídica está nela própria – na circunstância de se afirmar como norma jurídica de acordo com o processo previamente definido para a criação de norma jurídicas num determinado Estado a um determinado tempo – ou, pelo contrário, está na sua conformidade com valores/ideias/conceitos que estão algures para além dela?"
Pondo as coisas de outra forma, numa forma que é o corolário e a explicitação da questão anterior: "Eu acredito que uma norma é legítima (e deve ser cumprida) apenas porque foi aprovada de acordo com o processo legalmente estabelecido, ou acredito que é legítima porque nas opções que incorpora está de acordo com princípios de justiça?".

À partida, pareceria que, sob pena de regressarmos ao caos primordial, não se poderia admitir ao cidadão a colocação destas questões fundamentais. Mas nós estamos aqui para questionar e, assim sendo, tentaremos pensar no plano dos princípios e não no plano das consequências. O súbdito não deve fechar os olhos à (in)justiça das normas que o regem, apenas por reconhecer que algumas normas sempre terão de existir. Nem sequer por reconhecer que a sua justiça pode ser diversa da justiça do vizinho. Talvez que, se pertencemos a determinada classe social, as novidades fiscais deste Governo nos pareçam justas, ao passo que o nosso vizinho do baixo vocifera contra elas. No plano das opções comezinhas, do IVA a 17 ou do IVA a 21%, das SCUTs e das portagens, pode parecer que a discussão está prejudicada à partida.
Mas voltemos a Nuremberga. Estamos no Palácio da Justiça, e olhamos de frente para Goering. Não pretendo discutir aqui a legitimidade do Tribunal, a isenção dos juízes, a validade das condenações. Pretendo, tão-somente, dar corpo e cara às perguntas que formulei no geral.
Admitamos, por facilidade de raciocínio, que em momento algum do processo nacional socialista havia sido violado o processo legislativo; suponhamos, por exemplo, que o próprio foi sendo (legalmente) alterado de forma a facilitar a aprovação das leis mais aberrantes da História. Esta circunstância isenta de culpas aqueles que se sentam no banco dos réus? Que espécie de argumentação defende a Humanidade de leis iníquas regularmente aprovadas? Por exemplo, uma lei que defenda a aniquilação de uma minoria será substancialmente legítima, quando seja formalmente impecável?

São estas perguntas – as perguntas apenas, por enquanto – que gostaria de deixar aqui para minha estreia aqui no Small Brother. Gostava de realçar que este tema se prende intrinsecamente com outros temas que gostaria de tocar no blog, como o da legitimidade do princípio democrático na aprovação de leis que afectem direitos do indivíduo e a questão da margem de apreciação dos juízes. A seu tempo, também eles virão. Por agora, apenas renovo o agradecimento pelo simpático convite que me foi dirigido para entrar nesta casa de liberdade.

6 comentários:

JoaoMiranda disse...

O problema de Nuremberga é exactamente ao contrário. Ou seja, não é o facto de os réus terem sido julgados de acordo com princípios de justiça contrários à legislação. O problema foi eles terem sido julgados em violação de princípios de justiça com base em legislação criada pelos vencedores. Parte das acusações basearam-se em actos que ninguém na comunidade internacional considerou crime, nem antes nem depois de Nuremberga. Os chamados crimes contra a paz e de conspiração para tomar o poder foram e são a prática comum de muitos governantes sem que isso tenha criado um sentimento geral de injustiça. Antes pelo contrário. Todas as potencias vencedoras que instituiram Nuremberga estiveram envolvidas antes e depois em actos semelhantes sem que ninguém se tenha lembrado sequer de propôr um tribunal.

Mesmo os casos mais extremos de crimes contra a humanidade e crimes de guerra repetiram-se antes e depois sem que os mesmos tenham levado à criação de tribunais.

Ora isto prova que Nuremberga é um julgamento artificial que nada tem a ver com justiça. O precedente que criou foi a imposição de alguns idealistas à realidade que por isso mesmo nunca ganhou raízes.

SMP disse...

Bem, eu frisei que não pretendia com este post discutir a legitimidade de Nuremberga, mas tão apenas aquela crítica ao Direito natural que estava implícita numa parte do post anterior. Ainda assim, a frase do João Miranda "O problema foi eles terem sido julgados em violação de princípios de justiça com base em legislação criada pelos vencedores." é discutível. Claro que, se considerarmos como princípio de justiça absoluto o princípio nullum crimen nulla poena sine legem, ous eja, a garantia de que nenhum acto poderá ser considerado crime, nem punido, a menos que definido como tal em lei anterior, entramos num caminho com duas saídas apenas: ou, efectivamente, consideramos todo o Direito positivo insindicável á luz de conceitos de justiça,e matamos a discussão; ou consideramos que naquela "previa legem" se inserem princípios gerais de Direito internacional comum, qualquer coisa como o denominador partilhado pelas nações civilizadas, e começamos a entrar em terreno escorregadio.

Se não é a esse princípio que o JM se refere quando diz que a legislação dos vencedores violou a justiça, pode-se ainda pensar num problema adicional, que é o de eventualmente se ter realizado um julgamento que, por motivos vários (por exemplo processuais) tenha acusado os réus de crimes diversos daqueles pelos quais verdadeiramente a comunidade internacional sentia necessidade de os julgar. Em relação a estes últimos, não creio, por mais que se diga, que tenham tido paralelo nas histórias dos vencedores, pelo menos depois da II Guerra.

JoaoMiranda disse...

««ou consideramos que naquela "previa legem" se inserem princípios gerais de Direito internacional comum, qualquer coisa como o denominador partilhado pelas nações civilizadas, e começamos a entrar em terreno escorregadio.
»»»

Qual era, na época, o denominador partilhado pela França, Inglaterra, EUA e URSS?

- conspiração para iniciar guerras: URSS, EUA, França e Inglaterra

- iniciação de guerras de agressão: URSS, EUA, França e Inglaterra

- crimes de guerra: URSS e provavelmente Inglaterra e EUA

- Genocídio: URSS

SMP disse...

JB: só aparentemente, a meu ver (e mesmo aí…) é que a questão se encontra resolvida a favor do Direito Natural. Como costumava dizer o meu professor de Filosofia do Direito, “o positivismo é a filosofia espontânea dos Juristas”. À mesa do café, somos todos jusnaturalistas, mas quando o cliente nos entra porta adentro tornamo-nos ferozes juspositivistas e tudo o que não está estampado em letra de lei não existe para o Direito.
O que, a meu ver, nem sequer é um paradoxo: o binómio jusnaturalismo/juspositivismo, como tentei exprimir no post, perde o sentido à luz de assuntos corriqueiros para só à beira dos abismos jurídicos reganhar alguma cor. De qualquer forma, mesmo aí onde se jopga o justo e o injusto, o bem e o mal, o direito e o torto, conheço muitos juristas que abominam o direito natural.
Quanto à segunda parte do teu comentário, “segundo o Direito Internacional, os Estados não podem invocar legislação interna para se eximir à responsabilidade internacional”, o problema é justamente o da fluidez das normas internacionais que se aplicaram (?) aqui. Se se tratasse de um tratado internacional, não estaríamos aqui, provavelmente, a ter esta discussão. Mas apelou-se à validade de normas que, logo pela sua configuração, nos remetem para uma área no mínimo pantanosa: normas que não são escritas, para as quais não foi instituído um guardião específico, normas cuja validade e aplicabilidade a um Estado não depende do seu consentimento e que não têm sanção determinada a priori.

Anónimo disse...

Independentemente de Nuremberga ter sido um festival de Direito Natural, Nuremberga teve diversas vantagens. Os acusados eram conhecidos e foram claramente apresentados, perante um tribunal e perante todo o mundo. As acusações contra eles foram claramente apresentadas. Tiveram ocasiões (eventualmente imperfeitas) de se defender, e alguns acabaram de facto por ser absolvidos. O esquema do julgamento não terá sido muito perfeito, mas foi certamente melhor do que os processos de Moscovo, em 1938 na URSS estalinista.

Ora, aquilo que o João Miranda pretendeu justificar com esta menção a Nuremberga, foi algo que não tem semelhança nenhuma com Nuremberga. Pretendeu justificar o arbítrio estatal total sobre os seus prisioneiros de guerra.

Luís Lavoura

SMP disse...

jb:

O que levaria a que teriam de desrespeitar o direito interno para poderem respeitar o direito internacional.

Mas isso sucede efectivamente, talvez não com os indivíduos enquanto tal (embora eu ache que a questão de o indivíduo ser ou não sujeito e destinatário de DI dava pano para mangas) mas, por exmeplo, com os titulares da função judicial. Dou-te um exemplo: um Estado é condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por uma determinada legislação que vigora no seu território estar em desconformidade com as suas obrigações à luz da Conv. Eur. dos Direitos do Homem. O Tribunal Europeu, de acordo com os contornos que tem à luz da Convenção, não lhe ordena medidas concretas, mas cabe ao Estado, face à condenação, tirar as devidas ilações e nomeadamente reformar a legislação. Não o faz.
O que faz o juiz que se vê perante um caso que cai na previsão da legislação internacionalmente ilícita? Aplica-a, e faz o seu Estado incorrer em responsabilidade internacional? Não a aplica, e viola a lei interna a que deve respeito, imiscuindo-se, ademais, no poder legislativo, de forma que pode ser considerada uma violação da separação de poderes?